Zanguézi, de Velimir Khlébnikov, o futurista dos futuristas
Por Rafael Bonavina

Quando falamos das vanguardas literárias russas (ou soviéticas), talvez o primeiro nome que nos venha seja o de Vladimir Maiakóvski. Essa relação quase imediata entre os dois pode ser explicada, em grande medida, pela importância fundamental que esse autor tem para o desenvolvimento da literatura brasileira desde a segunda metade do século XX.¹ De um ponto de vista mais ligado à crítica literária, temos as declarações de Antonio Candido, em “Notas de crítica literária: um poeta e a poesia” (1943); o manifesto do Concretismo paulista, intitulado “Plano-piloto para a poesia concreta” (1958/1961), assinado pelos irmãos Campos e Décio Pignatari. E muitos anos antes, ainda na década de 1930, Mário de Andrade escreveu seu ensaio “Poesia proletária”, em que toca, de passagem, no nome de Maiakóvski.
A essa altura, o leitor já deve estar se perguntando por que o título fala de um russo com nome impronunciável, se aqui estamos falando de outro russo com nome esquisito. A questão é que, como dissemos no início, ao falarmos das vanguardas literárias russas, o nome que vem primeiro, em geral, é o de Maiakóvski. Porém, se perguntássemos a esse autor quem é o nome mais importante desse movimento, ele certamente diria que é Velimir Khlébnikov. E isso não seria por modéstia, qualidade que dificilmente se poderia atribuir ao autor de obras como o poema “Algumas palavras sobre mim mesmo” (Несколько слов о себе самом) ou a peça inacabada Vladimir Maiakóvski: uma tragédia (Владимир Маяковский: трагедия), em que ele figura como um dos personagens.
Na verdade, não é preciso supor, pois esse poeta escreveu o ensaio necrológico “V. V. Khlébnikov”, dedicado à análise da obra khlebnikoviana e seu significado para a cultura russa, e o trata nos seguintes termos:
“Morreu Viktor Vladimirovitch Khlébnikov.²
A glória poética de Khlébnikov é incomensuravelmente menor que sua importância.
De cada cem que o leram: cinquenta chamam-no apenas de grafômano; quarenta o leram por entretenimento e foram surpreendidos, porque não encontraram nem um pouco disso; e só uma dezena (os poetas-futuristas, filólogos da OPOIAZ) entenderam e amaram esse Colombo dos novos continentes poéticos, agora povoados e cultivados por todos nós.
Khlébnikov não é um poeta para os consumidores. Não se pode lê-lo. Khlébnikov é um poeta para o criador. […]
Khlébnikov é um mestre do verso.”³
As duas primeiras frases do excerto já apontam para o profundo respeito nutrido por Maiakóvski, mas é na metáfora de Colombo que se esconde o verdadeiro motivo de sua admiração: Khlébnikov descobriu novas formas de expressão para a poesia russa, desbravou um território até então desconhecido e que passa a integrar o repertório cultural não só russo, mas mundial. De fato, sua poesia era — e continua a ser — extremamente experimental em sua forma, em sua própria linguagem.
Como era autor de uma obra “esquisita”, não conseguiu se inserir de maneira satisfatória no sistema literário soviético, que nascia sob a égide do Realismo Socialista. Para sintetizar a questão da forma — aliás, muito candente nestes nossos dias —, os críticos partidários buscavam prescrever certas características à arte, acreditando que, assim, estariam produzindo a “arte proletária”. Entre esses traços necessários, alguns são relevantes para a nossa discussão, como o conteúdo politicamente engajado e a simplicidade formal, ambos pensados para que a arte fosse compreendida pelas massas recém-alfabetizadas do país e as educasse politicamente segundo as diretrizes do PCUS. Porém os resultados dessa prescrição eram, muitas vezes, obras de pouquíssima qualidade e hoje se encontram esquecidas tanto pelo público leitor quanto pela crítica especializada. Isso se deve, em grande medida, ao conteudismo formalmente pobre, que tornava as obras pouco atraentes de um ponto de vista artístico; e do didatismo da abordagem de problemas sociais complexos, estruturais, que eram apresentados de maneira muito simplificada e, em casos mais extremos, pecava pelo maniqueísmo.
A poesia de Khlébnikov não se enquadrava nessas duas condições. Sua linguagem era trabalhada poeticamente a um nível que poucos escritores na história da literatura conseguiram alcançar. Quanto ao conteúdo, esse autor também não buscava apresentar didaticamente os problemas sociais daquele momento, embora a inovação artística que esse autor opera em sua poesia seja mais revolucionária e vanguardista do que muitos romances panfletários produzidos na época. Ainda assim, os críticos partidários rejeitaram a obra de Khlébnikov por a considerarem “formalista” ou “burguesa”. Então o poeta se viu obrigado a viver às margens do sistema literário soviético e a levar uma vida muito difícil. Por fim, foi vítima de uma doença avassaladora que o levou em menos de um mês — muito por consequência das más condições em que vivia.
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Como vimos no caso de Maiakóvski, o profundo apreço de alguns críticos literários mais progressistas e poetas de vanguarda não foi suficiente para tirar Khlébnikov desse segundo plano da poesia “exportada” pela URSS ao Ocidente. E, aqui no Brasil, o caso não foge muito dessa regra, exceto pela publicação da primorosa tradução de “Encantação pelo riso”, feita em conjunto por Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman. Embora seja difícil mensurar o impacto de um texto desse tipo, podemos afirmar seguramente que ele não só foi importante para a vanguarda artística da sua época, o que se nota por exemplo pela versão musicada por Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção,⁴ mas continua sendo até hoje um dos melhores exemplos de transcriação.
Ainda assim, Khlébnikov continuou sendo quase desconhecido pelo grande público leitor brasileiro e pouquíssimo discutido publicamente pelos acadêmicos e críticos literários. Por essa razão, é verdadeiro motivo de festa quando se publica uma nova tradução desse autor. E para isso que estamos aqui: para comemorar que o professor Mário Ramos apresentou sua nova tradução de Zanguézi, a obra-prima de Khlébnikov.
É importante ressaltar que, embora essa tradução tenha sido lançada em livro neste ano, ela nasce da longa trajetória acadêmica do tradutor, que se dedica há mais de vinte anos ao estudo da poesia russa, com especial atenção para as vanguardas. Há mais de uma década, Mário Ramos é professor do curso de russo da Universidade de São Paulo e ministra as disciplinas de Poesia Russa, entre outras ligadas à literatura desse país. E foi justamente com sua tese de doutorado, Zanguési, de Velimír Khlébnikov: a utopia da obra de arte como síntese perfeita do universo,⁵ defendida em 2007, que Mário Ramos começou sua relação com Zanguézi.
A princípio, o leitor pode achar que os quase vinte anos de preparo podem ser um pouco excessivos, todavia é preciso considerar o grau de experimentação da poesia de Khlébnikov, que impede a mera tradução de uma palavra pela outra; aliás, muitas das palavras sequer existem, como veremos. Zanguézi desafia até mesmo os limites da tradução criativa, pois os procedimentos literários utilizados são tão radicais que, em alguns momentos, não é possível apenas traduzir, é preciso transcriar; isso é, operar o mesmo procedimento em nossa língua. Uma empreitada que só poderia ser feita, tomando as palavras de Maiakóvski em seu ensaio já citado, não por um mero leitor, mas por um “produtor”, e não é à toa que Mário Ramos seja ele mesmo tradutor e poeta, fazendo parte daquela dezena de leitores que compreendem a poesia de Khlébnikov.
Como dissemos, a tradução de Zanguézi é um processo de quase vinte anos de franco retrabalho. A primeira versão apareceu na tese de doutorado de 2007, traço que se sente, por exemplo, nas notas e comentários do tradutor, com explicações bastante detidas sobre particularidades culturais, linguísticas e semânticas das palavras originais. Ao confrontarmos os dois textos, nota-se que há diferenças bastante significativas entre eles, trechos que foram reformulados e mesmo escolhas tradutológicas alteradas. Não diríamos que uma versão é melhor que a outra, mas, a nosso ver, a versão mais recente está mais polida, sendo mais fluida, sonora e livre quando precisa sê-lo e, ao mesmo tempo, truncada e estranha quando o original nos apresenta uma linguagem poética rugosa, quase de trava-línguas.
Em relação ao projeto editorial, o livro lançado pela Editora Nauta nos parece ser pautado por um esforço de conciliar o interessante conteúdo analítico da tese de Mário Ramos com um público mais amplo, menos especializado. Talvez por isso foram retiradas algumas das notas e comentários que se encontravam na versão original, quando essas poderiam ser excessivamente acadêmicas ao leitor interessado apenas em ter contato com a obra de Khlébnikov. Isso não significa, no entanto, que se tenha jogado o livro sem qualquer contextualização; pelo contrário, as explicações fundamentais para a compreensão do livro continuam presentes. Além de ter sido acrescido um ensaio do próprio tradutor sobre a obra de Khlébnikov, escrito em tom claro e acessível.
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Falamos muito sobre o livro, mas pouco dissemos da obra em si, então tentaremos apresentar, ainda que brevemente, algumas considerações sobre Zanguézi. Para isso, nos parece mais produtivo partirmos de um texto a que o leitor já tem acesso e só depois passarmos para a novidade. Dessa forma, começaremos pela já citada “Encantação pelo riso”, na tradução de Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman.
Por mais obscuro que Khlébnikov tenha sido no passado, hoje em dia ele é um autor amplamente conhecido pelo público russo. São encontradas, sem dificuldade, diferentes declamações na internet, em tom solene, engraçado, acompanhadas ou não de música etc. Em uma nota à parte, durante uma viagem à Rússia, tivemos a oportunidade de presenciar uma brincadeira entre nativos feita com esse poema: um russo declamava o texto com diversas entonações engraçadas e todo tipo de caretas para tentar fazer os outros rirem. E era impossível não fazê-lo. O humor, claro, deve muito à comicidade da própria declamação, mas isso não resume toda a sua potência. Em grande medida, a graça surge da própria linguagem do texto, da sua forma, e é nesse aspecto que nos deteremos.

Nesse sentido, o título “Encantação pelo riso” (Заклятие смехом) sintetiza a questão, já que a segunda palavra do original — terceira no título em português — se encontra no caso instrumental, o que indica a forma pela qual a ação é realizada. O riso surge já no título como a varinha de condão que será usada para enfeitiçar o leitor; e a promessa é cumprida, pois ao longo de todo o poema nos deparamos com diferentes neologismos formados a partir da raiz russa para “riso” e de diversos processos de prefixação e sufixação. Dessa forma, o riso se torna ao mesmo tempo instrumento e material com que o poeta trabalha, como se Khlébnikov usasse um martelo de pedra para esculpir uma estátua de mármore.
Além disso, fazendo jus à ideia de encantação, a linguagem do poema é profundamente marcada pela presença de imperativos. A grande maioria dos versos começa com variações da ordem “ria!”, porém, claro, de maneira mais esteticamente trabalhada que mera ordem.
Além disso, fazendo jus à ideia de encantação, a linguagem do poema é profundamente marcada pela presença de imperativos. A grande maioria dos versos começa com variações da ordem “ria!”, porém, claro, de maneira mais esteticamente trabalhada que mera ordem.
A questão é que Khlébnikov, imbuído do princípio estético conhecido como linguagem transmental (заум), busca comunicar-se com o leitor para além da própria língua russa, fundando uma forma de comunicação que transcende os limites desse idioma. Paradoxalmente, isso se dá por meio da própria estrutura da língua russa, das cargas semânticas de raízes e das suas diversas partículas e desinências. Dessa forma, nascem inúmeras palavras novas que, no entanto, são compreensíveis ao leitor por carregarem em si o cerne semântico das antigas.
Para deixarmos um pouco o campo das abstrações, vejamos como isso ocorre, de maneira mais prática, na tradução de Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman.
Ride, ridentes!
Derride, derridentes!
Risonhai aos risos, rimente risandai!
Derride sorrimente!
Risos sobrerrisos — risadas de sorrideiros risores!
O procedimento descrito acima fica mais evidente no terceiro verso do excerto, na palavra “Risonhai”, que, evidentemente, não existe, ou ao menos não existia até então. A nosso ver, essa palavra é formada a partir do adjetivo “risonho”, que perde o morfema que indica o gênero do substantivo a que se refere (-o), torna-se um verbo de terminação “ar” (risonhar) e depois é conjugado conforme o imperativo da segunda pessoa do plural (risonhai vós). Como se pode notar, já nessa palavra se esconde um processo muito refinado de inovação formal da linguagem, mas o radicalismo de Khlébnikov não para aí. A palavra “risandai” passa praticamente pelo mesmo procedimento do anterior (riso + forma de verbo no imperativo), porém com a soma de um infixo “andar”, que recupera o infixo russo (-овать) que tem o sentido de uma ação em processo. Dessa forma, o neologismo de Campos e Schnaiderman dá a ideia de um verbo para designar a ação de “andar rindo”, ou melhor, surge o comando “ande rindo por aí!”, porém condensado em uma palavra.
Para evitar uma discussão muito aprofundada do original russo, basta-nos dizer que cada uma dessas palavras, das classes gramaticais escolhidas, e mesmo das raízes encontram respaldo no poema original, evidentemente. A minúcia linguística de Khlébnikov é trabalhar a palavra poética em nível morfológico, nas mais mínimas unidades de composição da palavra. Ao mesmo tempo em que estranha essas palavras inusitadas, assim como ocorre na tradução de Haroldo de Campos, o leitor consegue compreender seu significado, mesmo sem fazer uma análise morfológica. E, assim, ele restaura a novidade ao signo linguístico, tão desgastado ao longo dos séculos de uso; ou para usar uma terminologia da época, fazia ressurgir a palavra por meio do estranhamento.
Passemos agora para Zanguézi. Dada a sua extensão de mais de cinquenta páginas, essa obra não poderia ser resumida a um único procedimento literário, e isso também se aplica ao poema, mesmo tendo poucas linhas. A questão é que Zanguézi é marcado por um sistema imbricado de procedimentos que se tensionam e se sobrepõem, ora despontando um sobre os demais, ora outro predomina. Por isso, separamos um ponto em que o processo de formação de neologismos nos permite a aproximação de “Encantação pelo riso” com mais facilidade, evitando um desvio muito longo.
Vejamos, então, um exemplo na tradução de Mário Ramos.
Vai, poderói!
Marcha, poderói! Possarda, possardor!
Possaz, eu podo!
Poderudo, eu posso! Podei, eu podo!
Aqui, nota-se que as bases das variações são as raízes: “poder”, como em “poderói” ou “poderudo”; e sua conjugação “posso”, que surge em “possardor” ou “possaz”. Assim como no poema que acabamos de ver, essa raiz é transformada a partir de novas terminações, conjugações e sufixos, dando origem a palavras que, embora nunca tenham existido em suas línguas, são facilmente compreensíveis para o leitor atento. Tomemos a sua primeira ocorrência como exemplo (“poderói”), que em russo é a palavra “mogatyr” (могатырь).
No original, esse neologismo é formado a partir da flexão do verbo “motch” (“poder”, “ter a capacidade”) e do substantivo “bogatyr” (богатырь), nome de um tipo de herói medieval com potência sobre-humana, muito encontrado no folclore russo. O neologismo, então, mistura as duas palavras e dá origem a uma nova acepção, algo como “alguém com a potência de um bogatyr”. Como se pode notar, a transposição da palavra original seria impossível por meio de um processo tradicional de tradução, afinal, ela de fato não existe em russo. É preciso que o tradutor primeiro a analise, destrinchando-a em suas partículas morfológicas para só então pensar em como lidar com o campo semântico mobilizado por Khlébnikov.
Soma-se a esse problema que essa palavra depende de um elemento cultural típico do folclore russo, e que não faz parte do repertório brasileiro. Como, então, se poderia traduzir essa palavra? A solução encontrada pelo professor da USP segue um caminho bastante parecido com o utilizado para a confecção da “Encantação pelo riso”, e que a nosso ver seria o mais acertado mesmo: a recriação do procedimento estético dentro do nosso sistema linguístico. Assim, Mário Ramos recria a palavra “mogatyr” a partir das suas unidades mínimas: traduz o verbo “motch” pelo seu equivalente em português, “poder”; sintetiza a ideia de “bogatyr” dentro do nosso repertório cultural, chegando a “herói”; e depois aglutina as duas traduções, formando o neologismo “poderói”, significando algo como “alguém que tem a potência de um herói.”
E só falamos de uma única palavra, ainda há dezenas e dezenas de páginas para se recriar… Fica evidente, portanto, o grau de minúcia, de paciência exigidos para se fazer uma boa tradução de Zanguézi. Sem contar a potência criativa que se faz necessária, pois a explicação a posteriori é muito mais simples do que a descoberta das bases sobre as quais se operará.
Se antes parecia estranha a longa trajetória de Mário Ramos com esse livro, agora o que espanta é que tenha levado apenas vinte anos. Ainda mais se levarmos em conta que, antes mesmo de começar a empreitada, é preciso aprender a língua russa em um nível muito avançado, além do evidente refino linguístico do próprio português. A nosso ver, Khlébnikov estava correto em buscar novos sentidos a partir dos neologismos, pois nos parece necessário inventar uma palavra para tentar definir a dificuldade de se transcriar Zanguézi em qualquer outro idioma, pois ela é mais que hercúlea, é verdadeiramente poderóica.⁶
Notas:
1 Para uma discussão mais aprofundada sobre o tema, ver o artigo “Água, cimento e brita: um Maiakóvski de concreto”, que tivemos a oportunidade de publicar pela RUS — Revista de Literatura e Cultura Russa. Disponível aqui.
2 Trata-se do verdadeiro nome desse autor que usava o pseudônimo de Velimir Khlébnikov.
3 Tradução nossa. Disponível aqui.
4 Disponível aqui.
5 Disponível aqui.
6 Aos interessados, o livro está à venda e pode ser adquirido diretamente com a editora, através do site.
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