O amante detalhista, de Alberto Manguel


Por Pedro Fernandes 



“A totalidade não deixa espaço para o desejo”. A constatação do narrador de O amante detalhista explica claramente sobre o tema principal de sua narrativa. Descrita de maneira errônea por grande parte das leituras como a história de um voyeur, consideração que despreza mesmo a sinopse oferecida na divulgação da obra ou mesmo a explicação, certamente motivo para a nota, do próprio narrador, quem assim explica: “Vasanpeine não era um expectador. Era um ator à espera do sinal para entrar em cena”.  

Anatole Vasanpeine, é um solitário homem de existência anódina qual as paredes da catedral Notre-Dame-la-Grande, da qual é vizinho, que começou muito cedo a trabalhar na casa de banhos de Poitiers. O narrador, herdeiro da estirpe dos grandes enciclopedistas, decide, motivado pela leitura de um ensaio de um tal Terradillos reanimar essa “vida desperdiçada”. Não é, ao que parece, o contato com este texto o elemento principal da investigação, mas um interesse pela chamada gente comum, sempre colocada no rol dos esquecidos e ausente portanto do raio de atenção dos interessados pela história. Isto é, a motivação encontra eco em observações segundo as quais no insignificante esconde-se o melhor da história e é aí onde se instala o ficcionista.  

O conhecimento enciclopédico de Alberto Manguel, quem é, depois da morte de Umberto Eco, o último das grandes mentes construídas e alimentadas pelo alvor cultura do livro, permite a reconstrução da vida possível de Anatole Vasanpeine em duplo corte ficcional – um procedimento que o mais simples leitor logo levará a associar ao trabalho de outro do reino dos livros, o conterrâneo Jorge Luis Borges, de quem Manguel foi, quando jovem, discípulo e muito próximo. Para fundamentar a história desse homem comum francês, o trabalho primordial do escritor argentino foi construir uma catedral de referências, ainda que sejam transmutações de títulos efetivos, de natureza ficcional: os diários de Vasanpeine, alguns outros registros de sua existência, como um caderno que deveria ser um herbário produzido na formação escolar básica, a menção ainda que apenas de suspeita de que Vasanpeine foi estudante de ar questionador num relato do padre que teria sido o professor de catecismo, uma fotografia cedida por pesquisador interessado na arte experimental desenvolvida pela personagem principal da narrativa...  

Quer dizer, uma amplitude dos procedimentos clássicos de se contar uma história, os de que a situação narrada é produto de um registro realizado por alguém ao qual o narrador teve acesso de alguma maneira. Tal procedimento, evidentemente que, contemporaneamente nas mãos de Manguel, se reveste de outras qualidades das originais e comuns; no passado e para outros escritores este é um recurso que participa na construção da verdade da narrativa e agora, além desse critério, sobretudo na obra em questão do escritor argentino, se mostra como um complexo jogo verbal e criativo: um fechamento intertextual e hipertextual segundo o qual a literatura de agora é produto de um exercício acurado de manipulação das criações já oferecidas por outros criadores. Nisso, é preciso considerar que o diálogo da ficção com um aparato igualmente fabricado é a mais pura ironia; parece querer significar que mesmo esse potentado da realidade como a verdade absoluta e invulgar não passa de uma ilusão. O que sobra no final de tudo são os rastros que outras vozes tentarão perfazer e apresentar como verdade, qual procede o narrador de O amante detalhista.  



Dentre as características que irmanam todos a principal delas está na cadeia das manias e das obsessões. De maneira que não seria muito afirmar que são elas as que favorecem o andamento dos povos, se pensarmos que todas as criações, mesmo a artística, sobretudo esta, são seus produtos. O interessante é que, apesar de ser esta uma qualidade comum a todos, todos desempenham algum nível de curiosidade por saber quais são as manias e obsessões alheias como se fosse isso um caso alheio a quem se interessa. De alguma maneira, é essa a condição assumida por esse narrador: descobrir quais manias e obsessões podem esconder uma figura como o pacato Anatole Vasanpeine. Apesar de não sobrar registros a respeito, o narrador tem a liberdade de perscrutar através das poucas possibilidades documentais a ele oferecidas. Nesse interstício imiscui-se a carne nuclear da ficção, o seu caráter de inventio

Assim, aliado ao anonimato a virtude do comportamento alheado aos lugares mais caros da sociedade de seu tempo – duas guerras e Vasanpeine não se envolve em absolutamente nada, nem mesmo em comentar nas poucas páginas de seu diário as situações do conflito, só para citar um exemplo – é janela na qual este narrador se instaura para se perguntar quem, afinal, foi essa personagem. E a mania que o define é a de colecionador, depois da descoberta da fotografia através de um sebista japonês, igualmente anônimo que chega a Poitiers, o sr. Kusakabe, de registros de partes do corpo da gente que visita a casa de banhos onde trabalha. Esse narrador vem dizer que, no silêncio mais absoluto e aparente, paira uma fazer que justifica a existência mais anódina.  

Vesanpeine em tudo se aproxima, embora se distanciem em parte do que significam cada um, de uma figura criada pela literatura de José Saramago, o Sr. José, de Todos os nomes e, ainda de outro grande rol de inúteis lembrados pela ficção – Bartleby de Melville, Bouvard e Pécuchet de Flaubert, entre outros. A tarefa da personagem de O amante detalhista justifica sua conformidade com a condição anódina. O trabalho favorece primeiro a construção de todo um campo possível de intervenção a partir de um gosto subjetivo e depois a materialização disso em imagens que, por sua vez, reinventam o hobby anterior de todos, a escrita. Possivelmente esse acurado interesse pelo acaso da imagem, pelo que resulta da justaposição de causalidades, justifica a própria condição escritural, que no fim é o que dá enforme ao livro que se desenvolve. Tanto é verdade que, a escrita desse narrador de Manguel prima igualmente pelo fragmentar, pelo que nasce da relação entre fragmentos e pelo detalhe. Nada escapa e as lacunas possíveis da narrativa (o vazio em branco entre um registro fotográfico e outro) são (como observa o próprio Vensanpeine) pontes para a existência do que se narra. 

Então, o que ama esse homem comum de Poitiers, capaz de se comover apenas pela morte do seu incentivador indireto, o sr. Kusakabe, e da morte dos pais guardar apenas certa sensação de passagem? Aparentemente ama a ninguém, nem mesmo a si. O hobby satisfaz apenas o gosto involuntário pela imprecisão. Seu amor é pela incompletude. O amor é incompletude. Justaposição de detalhes ocasionais. Estes são maneiras de desejar. Ao construir um conjunto variado de fotogramas sua tentativa é a de não obedecer à ordem da idealização platônica, esta que, na visão do narrador / ensaísta que perscruta sobre Vensanpeine, constitui a ruína do amor porque alimenta-se de uma ilusão possível de desfazimento tão logo esta, uma bolha, encontre qualquer circunstância pontiaguda. É por isso que a idealização significará o total fracasso do intento dessa personagem. Sua obsessão responde apenas por alimentar seu desejo. Se este é detalhe ocasional, este é a maneira mais autêntica do que se chama amor. Voltamos a ponto de partida. 

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