A dissolução da União Soviética não
foi apenas um trauma para os que a vivenciaram e sentiram na pele os vários
efeitos da dissolução de um país. É claro que isso não aconteceu da noite para
o dia, foi um processo histórico que pouco a pouco minou as fundações dessa
sociedade até que o edifício como um todo ruiu. Em outras palavras, a
infraestrutura implodia e levava consigo a superestrutura. Não é à toa que a
transição gerou — e ainda gera — muito debate a respeito das suas causas e
consequências. Como não poderia deixar de ser, o polêmico tema também foi
tratado na cultura, e vemos diversos poemas, romances, filmes e séries que o
desenvolvem.
Um dos casos mais interessantes
feitos nos últimos anos é a série de oito episódios
Slóvo patsaná: krov na
asfálte (2023), dirigida por Zhora Kryzhovnikov. Apesar do seu imenso
sucesso na Rússia e em diversos países pós-soviéticos, a série não conseguiu
atingir o Ocidente com a mesma potência, em muito por causa da grande dificuldade
de acesso. Ainda assim, a legião de fãs já disponibilizou, gratuitamente,
versões das legendas em diversos idiomas de origem europeia, como francês,
alemão e inglês.
Essa empreitada, diga-se de
passagem, não merece ser louvada apenas por permitir o acesso ao seriado, como
também pela dificuldade de sua realização. A tradução audiovisual ainda não
permite que o tradutor use notas de rodapé, então todas as dificuldades devem
ser resolvidas na própria legenda. Some-se a tudo isso que os textos das
legendas não podem ser muito longos para que o espectador tenha tempo de ler
sem perder a ação. Apesar de tudo isso, talvez o maior desafio não seja a mídia
traduzida, mas a linguagem utilizada pelos personagens, cheia de gírias e
expressões populares, entrecortada por rosnados, grunhidos e
realias da
URSS daquele momento, todos elementos de difícil tradução.
Um bom exemplo dessa questão da
linguagem se encontra já no título. A expressão “patsan” é utilizada no jargão
criminal dos anos 1980 para se referir aos demais membros de uma mesma gangue.
O contrário de um
patsan era um
tchuchpan, isso é, alguém que não
participa de nenhum grupo criminoso, um civil por assim dizer. Ao mesmo tempo,
a expressão “dar a palavra de
patsan” (
dat’ slóvo patsaná) também
funciona como uma promessa de que se diz a verdade, algo como uma palavra de
honra, promessa que, rompida, traz sérias consequências ao mentiroso,
geralmente violentas. O título, portanto, poderia ser traduzido como
Palavra
de malandro: sangue no asfalto, apesar de usar uma expressão demasiado
brasileira; outra opção acertada seria
Palavra de homem: sangue no asfalto,
cujo machismo encontra sustentação no universo ficcional da série.
Para resumir a trama de
Slovo
patsaná, a narrativa acompanha a vida de um jovem e promissor pianista
chamado Andrei Vassílev, que mora em Kazan no final dos anos 1980. Se fôssemos
usar os termos contemporâneos, poderíamos dizer que Andrei sofre bullying diário
na escola e fora dela: ameaças, extorsões e espancamentos eram parte de sua
rotina. Cansado de ser tratado como um trapo, Andrei pouco a pouco se afasta
dos seus estudos para se envolver cada vez mais com a gangue Universam, que
também era o nome de uma grande rede de mercados da época. O seu envolvimento começa
quando a professora de inglês de sua escola pede que ele ajude seu colega de
sala, Marat Suvorov, que tinha muita dificuldade com o idioma. Ambos rapidamente
se tornam amigos, e Andrei acaba sendo introduzido à gangue por Marat. Depois
de uma iniciação violenta, o personagem é admitido na Universam e ganha o
codinome Casaco (
pal’tó) por sua roupa muito “quadrada”. A partir daí
vemos uma espécie de trama de formação que leva Andrei de
tchuchpan a
patsan,
ou seja, ele atravessa uma série de experiências e aos poucos se torna um
membro pleno da gangue.
Essa profunda transformação não
ocorre de maneira tranquila, mas angustiante e tensa; Andrei vê sua antiga vida
pessoal dilacerada, uma família instável que desmorona de vez, o desinteresse
pela escola e pela música, verdadeiro sonho do garoto. Uma das cenas da série condensa
a tensão vivida por esse personagem: Andrei está sentado ao piano do
conservatório, a professora lhe pede para tocar uma peça complexa, e ele não
consegue; em parte por não ter praticado, em parte porque havia machucado as
mãos em uma briga de rua. Percebendo a dificuldade do seu aluno, a professora
lhe repreende de maneira bastante severa; ao invés de responder à altura,
começa a tocar “Sedáia notch”, música que ganhou fama, na época, pela versão da
banda Laskovy Mai.
1 A professora, então, expulsa Andrei da sala.
Essa perspectiva nos leva a uma
conclusão bastante esperada: o estilo sóbrio e tradicional do conservatório
contrasta claramente com o ritmo agitado, típico das discotecas dos anos 1980,
a estética nova da jovem banda etc. Há outra forma de compreender essa cena, no
entanto, que mobiliza uma camada mais profunda do plano simbólico. A trilha
sonora de
Slovo patsaná é praticamente composta por músicas da época
retratada na série, o que dá todo um sabor típico daquele momento histórico.
Além disso, a música “Sedáia notch” funciona como tema musical para a amizade
de Marat e Andrei, já que logo no primeiro episódio há uma sequência
relativamente longa em que eles a cantam juntos enquanto brincam e brigam pela
casa de Marat.
Por essas razões, como dissemos, a
cena da expulsão de Andrei sintetiza o drama desse personagem. Suas mãos machucadas
pelas brigas de rua não conseguem ter a agilidade, segundo a professora, para
tocar a música que se espera dele. Tampouco a realidade de Andrei condiz com a
educação clássica que ele almeja, pois Andrei não possui os meios necessários
para praticar o instrumento, e vale ressaltar que a primeira cena do filme é
justamente a de Andrei sentado no escuro com um teclado falso de piano, feito
de papel, esticado sobre uma mesa. Por outro lado, quando ele busca introduzir
nesse cenário a sua própria realidade, simbolizada pela música-tema de sua
amizade com Marat, ela é categoricamente rejeitada. A contradição entre a
cultura oficial, clássica, e a realidade para além do conservatório não se
resolve, deixando Andrei em um crescente tensionamento que só se resolve, em
alguma medida, ao final da trama.
Em meio a essa macronarrativa de
Andrei, acompanhamos diversas outras tramas “menores” que acabam ganhando
imenso protagonismo na série, como a de Vova Suvorov, vulgo Adidas. Ele é o
irmão mais velho de Marat e antigo líder da gangue Universam que foi enviado
para servir ao Exército na Guerra Afegã-Soviética (1979–1989). Tanto a sua
alcunha quanto algumas menções esparsas ao longo da narrativa indicam que o
personagem pode ter sido um atleta promissor, como Andrei e a música, mas Adidas
não busca reatar com esse passado quando retorna da guerra; pelo contrário, o
assunto é comentado apenas de passagem, o que nos leva a crer que o próprio Adidas
tenha desistido de perseguir esse caminho. A nosso ver, a desilusão de Vova nasce
de uma conjunção de fatores sociais (entre eles, a profunda crise econômica
enfrentada pela URSS naquela época) e pessoais, como a falta de treino e os
traumas trazidos da guerra. Ao contrário de Andrei que pouco a pouco toma
consciência da sua situação, Vova parece compreender de maneira muito clara a
sua condição e, ao voltar da guerra, imediatamente retoma sua participação na
Universam, indo encontrar seus colegas ainda com seu uniforme militar, sequer
tirando as medalhas de honra para jogar futebol com eles.
Para além dessa tensão íntima entre
desejo e possibilidade, Vova também luta para se manter à altura das
expectativas de seus pares, afinal todos os jovens da Universam veem nele uma
figura quase mítica, capaz de resolver todos os problemas. No entanto, e apesar
de todos os esforços de Adidas, a gangue parece estar com os dias contados,
estando à beira de ser esmagada por grupos maiores e mais violentos. Em
diversos momentos da série, fica claro ao espectador que Vova tem consciência
da sua impotência diante desse problema e, mais uma vez, ele se vê em uma
tensão insolúvel.
Apesar de ser muito bem construído,
o desenvolvimento da narrativa perde um pouco de força quando se aproxima do
final, pesando demais a mão no drama e recaindo em verdadeiros dramalhões, como
a cena em que a mãe de Andrei, tresloucada pela sua incapacidade de ajudar o
filho, põe fogo no próprio cabelo. Outros pontos, como o desfecho da história
de Vova, acabam sendo um pouco previsíveis e deixam a impressão de remendo no
roteiro. E, de fato, isso aconteceu. Como já foi discutido por diversos
críticos na imprensa internacional, como Polina Chestak,
2 há uma
grande discrepância entre o plano inicial e o que chegou até nós, mudanças que
tornavam o final menos bem-resolvido, por assim dizer, e mais tenso. Apesar da
atenção que o tema recebeu, seria preciso um estudo detido para compreender não
só as divergências entre o projeto e a realização, como a análise detida do
efeito das diferenças.
Aproveitando o tópico dos estudos,
vale ressaltar que a série foi feita a partir do livro
Slovo patsaná: o Tartaristão
criminal dos anos 1970–2010, escrito pelo jornalista Robert Garáev. Esse
livro de Garáev não é uma ficção, mas um livro documental (
dokumentalnaia
kniga), como geralmente é chamado em russo. Trata-se de uma espécie de
estudo sociológico que busca compreender a organização interna do mundo do
crime na antiga República Soviética Socialista Independente do Tartaristão. Essa
pesquisa de Garáev, portanto, aborda o chamado Fenômeno de Kazan, evento
histórico muito complexo em que diversas gangues se organizaram nessa cidade
nas décadas de 1970 e 1980 por uma série de razões que, infelizmente, não temos
espaço aqui para abordar. A questão é que as gangues acumularam um poder
imenso, chegando a ter mais força que o próprio Estado na região.
A série modifica, como geralmente
ocorre nas adaptações, alguns elementos descritos no livro, mas não trai o
espírito de seu fundamento, e é importante dizer que Garáev participou como
consultor na criação de
Slovo patsaná: krov na asfalte. Um bom exemplo
dessas transformações é o crescimento épico da importância da gangue Universam
que, embora de fato existisse, não era tão importante quanto o retratado na
série. Porém buscar em
Slovo patsaná: krov na asfalte uma espécie de
diorama daquele momento histórico é, a nosso ver, menos produtivo que observar
a narrativa como um objeto estético com suas próprias tensões e contradições. E,
nesse sentido, é bastante interessante notar a forma com que é representada a Universam,
pendendo ora para uma romantização da camaradagem entre os membros da gangue,
ora para um brutal realismo da violência e das consequências sofridas pelos
criminosos.
No campo da romantização, são várias
as cenas em que os rapazes são retratados dividindo histórias ao pé de uma
fogueira, fumando, jogando hóquei ou mesmo dançando na discoteca. Um bom
exemplo se dá com a mãe de Andrei, que participa de um jogo de azar e acaba
sendo enganada por um
patsan de grande importância. Ela perde todo o
dinheiro que tinha e um belo chapéu de pele que trazia consigo, e perderia
muito mais, se Marat não tivesse interrompido o golpe aplicado pelos colegas.
Depois de uma série de discussões e disputas de poder, os membros da Universam
(e muito por intermédio do Adidas) conseguem um chapéu parecido e recuperam parte
do dinheiro perdido. Já no extremo oposto, também são várias as cenas de
violência física que
Slovo patsaná nos apresenta: desde brigas de rua
com socos até o uso de armas de fogo, porém mais ao final da série aparece um
exemplo mais interessante. A Universam está se recuperando de mais um baque
sofrido, e a sequência nos apresenta uma série de membros da gangue com diversas
idades que estão se preparando para uma ação. Cada vez que um deles aparece
pela primeira vez na sequência, a imagem fica estática e ao lado do personagem
surge um bloco de texto descrevendo as circunstâncias de sua morte, em geral
violenta, ou de sua prisão. A grande quantidade de epílogos apresentados dessa
maneira e a velocidade com tudo isso acontece cria no espectador uma sensação
de vertigem, como se ocorresse um extermínio dessa juventude empurrada para o
crime.
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