O macaco e a essência, de Aldous Huxley


Por Pedro Fernandes



Diferentemente do livro de Pierre Boulle, em que os macacos descobrem a selvageria do homem e inicia uma revolução que os obrigará a repensar sua condição, não há neste livro de Aldous Huxley nenhum macaco revolucionário. O título da obra, aliás, não chega a ser um atributo próprio do seu autor; O macaco e a essência é o roteiro de um filme concebido por uma certa figura interessada pelas narrativas cinematográficas e abandonado por Hollywood entre toneladas de textos enviadas ao berçário do cinema estadunidense. A única notícia dada pela narrativa que abarca este datiloscrito encontrado casualmente pelo roteirista Bob Briggs, quando o caminhão de descartes deixa voar pela rua umas quantas brochuras das que serão incineradas, é que William Tallis está morto.

Assim, o livro de Huxley se apresenta como uma transcrição do texto de William Tallis; a importância que o roteirista atribui a essa brochura, logo, se evidencia pela escolha do escritor inglês em nomear seu romance pelo mesmo título do fictício texto desse autor californiano. Este recurso do escritor inglês se reveste do mesmo valor daqueles exercícios tomados sobretudo pelos romances clássicos; rotineiramente, em obediência aos princípios da verossimilhança, estas obras estavam preocupadas com a verdade de seus relatos e com a imparcialidade dos seus narradores. O texto dentro do texto nesta que foi uma das últimas obras do autor de Admirável mundo novo assume, entretanto, outra condição. É uma espécie de estratégia do romancista em se utilizar de um certo afastamento da mesma fórmula de escrita que o sagrou escritor. Ao atribuir o registro distópico a este Tallis, Huxley estabelece uma alternativa de ruptura com os modelos pré-estabelecidos com os quais organizou outras obras. Isto é, estamos ante uma estratégia que condena a fadiga criativa e propicia o alargamento das possibilidades criativas em relação à estruturação do romance de ficção científica.

No caso de O macaco e a essência, o roteiro de Tallis, a narrativa funciona como uma espécie de previsão futurista a partir do tempo em que se situa Bob Briggs, este que é historicamente marcado por uma convulsão de situações e uma apatia generalizada em torno das situações históricas em curso. Na abertura da narrativa de O macaco e a essência, o romance de Huxley, dentre os acontecimentos recordados pelo narrador está o assassinato de Mahatma Gandhi e a frieza com que esta situação é filtrada pelas pessoas e pela mídia. Ou seja, a selvageria que Brigs encontrará no roteiro de Tallis se constitui de um aprofundamento dessa condição cujos sinais são bastante evidentes na realidade da qual a personagem participa. É um motivo, aliás, para toda sorte de descrença que esta narrativa fílmica institui ao representar uma humanidade que padece uma longa travessia marcada pelo levantamento autoritário dos modelos que se apresentam imbuídos da salvação da humanidade – designadamente o progresso e a política, esta tratada nesta distopia a partir da disseminação no território que construiu um modelo de ser e estar no mundo a partir da ideia de avanço tecnológico de uma forma de nacionalismo que recupera os cenários catastróficos das grandes guerras.



Para quem conhece outras narrativas distópicas de Aldous Huxley, O macaco e a essência, é a obra de um aterrador pessimismo; não há aqui qualquer alternativa ante a sanha perversa do homem de se manter preso à autodestruição. O universo futurista da narrativa se passa numa ocasião quando parte da humanidade foi dizimada, mas os sobreviventes, ao invés de desenvolver qualquer condição capaz de responder por um recobrar dos sentidos para o desenvolvimento de um alternativo modelo humanista continua a praticar os rituais que reforçam seu estatuto de selvageria, o mesmo que os levou à condição em que se encontram. É como se a única sentença a prevalecer fosse um atestado de impossibilidade de saída de um círculo vicioso centrado no gosto primitivo pela usura e dominação dos mais fortes sobre os mais frágeis e a custo de doses cavalares de racionalidade rasa e apoiada numa espécie de transe cujas características recobram o dissenso dos tomados pela força das ideologias. É evidente que este mundo aterrador de Huxley / Tallis não é universal; o contexto é muito específico para pensarmos dessa maneira. Mas, isso significa alguma luz no fim do túnel? Ao que parece nenhuma; se considerarmos que neste percurso os do mundo onde resta alguma civilização são tragados por esse em decomposição ou ainda pior passam a, naturalmente, fazer parte dele.   

Dessa maneira, a obra de Huxley se situa num zênite bastante caro para uma contemporaneidade em que o culto cego às parafernálias tecnológicas, para citar um exemplo dos vícios propiciados pelo modelo capital, nos tem feito possessos do espírito individualista que tomava os habitantes do universo romanesco de Bob Briggs incapazes de corresponder por um sentimento a altura do significava a morte de um líder cujo único crime era almejar um mundo mais igualitário para todos. Se olharmos muito de perto do cenário imaginado para o roteiro de Tallis, nossa essência tem sido transformada em servos cativos Belial: a normalização das intolerâncias, o apagamento pela violência dos que se apresentam diferentes aos olhos dos poderes dominantes, o apego gratuito aos reducionismos que nos realinha com os velhos discursos de natureza fascista, são apenas alguns dos exemplos. O mundo de bestas determinado por Tallis é apenas uma repetição pela ficção dos horrores justificados por nomes diversos.

Na Califórnia apocalíptica encontrada pelo botânico neozelandês Poole, Belial é o nome atribuído aos habitantes à força que estaria interessada desde os tempos imemoriais em colocar homens contra homens e fazer prevalecer o desentendimento e o desejo cego mobilizador das massas coletivas em torno de crenças possíveis de levar a humanidade a autodestruição depois de um apagamento da lucidez e dos sentidos que determinam o outro nosso semelhante. No território dominado por essas massas de submissos ao reconhecimento definitivo de um poder do qual não têm mais forças para questionar e lutar imperam a escravidão, o esconjuro, a organização sistematizada de uma máquina de domínio, um misticismo cego que favorece a retomada de determinados discursos como os atentam contra a mulher enquanto representantes de todo mal e corrupção na terra ou pregam a necessidade de construção de uma raça pura e da abominação de todas as situações julgadas pelo moralismo como perniciosas para a humanidade.

O macaco é, do reino animal, o que mais se parece conosco. São as feições, os modos e os gestos que uma vez recobram tanto de nós ao ponto de se assumir enquanto o outro estranho de nós. Mas, vistos de perto, o que prevalece – e talvez por isso nos assuste – é a animalidade e a selvageria. Não que estas duas condições nos coloquem em relação superior a eles, mas porque, sem que saibamos, guardamos as mesmas pulsões que neles nos assustam. Somos o que somos porque produtos de diversas frentes que investiram (e investem) contra o selvagem e o animal; a razão é nosso disfarce que é estranhado pelo reconhecimento no macaco do que essencialmente somos. É assim que se sente o estrangeiro Poole neste inferno de seguidores de Belial – em contato com sua própria essência, esta que mostra ao botânico, por aproximação, ao estágio primitivo do homem. Note o leitor que o título dessa obra não insinua uma compreensão sobre a essência do macaco / homem. A essência é apresentada à parte, como se fosse um elemento que se mostra não como elemento constitutivo do macaco, mas exterioridade, à maneira como enxergamos os traços que nos colocam em xeque ante o macaco; à maneira como nos mostramos nus de humanidade e servis da animalidade.

Com O macaco e a essência Huxley atenta contra todo o excesso de paixões e o perigo delas para nossa própria condição. À beira de todos os sentidos estão suas contrariedades porque ao contrário do que nos têm feito acreditar a cultura ocidental, a dicotomia não significa o encerramento total dos opostos, mas uma zona em contato cuja a linha que separa a frente do verso é tão tênue que uma é capaz de dizer o que a outra condena e vice-versa. Eis então um texto que é também um alerta indispensável para o desvario dos sectarismos e por isso fundamental sempre, porque disso nunca nos afastamos totalmente, do contrário, continuamos seduzidos como animais se seduzem pelo brilho da luz que pode significar sua sentença de morte.


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