Abdulrazak Gurnah, Prêmio Nobel de Literatura 2021

 

 
“O que quero dizer é que não conheço uma grande verdade que deseje ansiosamente divulgar, nem vivi uma experiência exemplar que ilumine as nossas condições e as nossas épocas.”
 
“Tenho tempo nas minhas mãos, estou nas mãos do tempo, por isso posso muito bem responder por mim próprio. Mais cedo ou mais tarde, temos de contar com isso.”
 
— De By the Sea, Abdulrazak Gurnah

Abdulrazak Gurnah. Foto: Pako Mera.


 
Muitas coisas fizeram a decisão da Academia Sueca sobre o Prêmio Nobel de Literatura de 2021 marcar um retorno a certa linha tradicional que constitui a história do galardão — e justamente quando essa tradição soma 120 anos. A primeira coisa foi manter o anúncio anual depois de uma suspensão em 2018 quando uma série de escândalos obrigou a dissolução do comitê responsável; no ano seguinte, com o mundo inteiramente assolado pela pandemia do corona vírus, os cerimonias adquiriram o tom paliativo adotado por sociedades do mundo inteiro. Tudo isso, entretanto, forma parte, em grau diverso da fatalidade das coisas; nem foi a primeira ocasião dessas interrupções ou modificações.
 
O elemento principal foi a retomada de eleger um escritor tomando como mérito específico seu trabalho literário e, por extensão, o reconhecimento de um escritor tomado por um compromisso civil e ético num mundo que agora julgamos cada vez mais raro de figuras assim. Parece redundante, mas as escolhas dos últimos anos foram um tanto problemáticas, desde a eleição de um letrista, passando por uma jornalista, ou certa inclinação aos modismos ideológicos que sopram fortemente pelas mãos do próprio modelo capitalista, profundamente engajado na criação de tipos lucrativos — ou lacrativos.
 
Alguns jornais se apressaram em ler a decisão da Academia em 2021 como sua maneira de atender a um filão do mercado editorial, o da literatura pós-colonial — mas, não é verdade. Essa impressão, embora injustificável em qualquer época, talvez servisse quando o júri decide premiar a escritora estadunidense Toni Morrison. O que se retoma com Gurnah, é o fio de um debate cujo reconhecimento se abre muito antes da ocasião de 1993 e a decolonialidade passa muito distante do discurso de uma moda comercial. É justamente o contrário: esta se instaura como força do capital interessada na redução, assoreamento e vulgarização do decolonial, tal como fez a outras expressões do literário.
 
Junta-se a isso, o delicioso elemento da surpresa: Abdulrazak Gurnah não constava nas mornas e repetidas listas de especulação e apostas que há décadas oferece apenas uma ou duas variações na ordem dos mais quistos. É, por isso, um escritor que, neste lado do Atlântico, só muito tardiamente se descobriu a existência da tradução de uma obra sua para o português. Nesse caso último, o prêmio cumpre talvez seu melhor papel: colocar em evidência uma obra e os leitores em contato com uma literatura ainda insuficientemente ou não iluminada.
 
O romancista nascido em Zanzibar, em dezembro de 1948 foi distinguido por “sua visão inflexível e compassiva sobre os efeitos do colonialismo e o destino dos refugiados no abismo entre culturas e continentes.” É o quinto escritor do continente africano a ganhar este prêmio desde a sua criação em 1901, depois do nigeriano Wole Soyinka (1986), do egípcio Naguib Mahfuz (1988) e dos sul-africanos Nadine Gordimer (1991) e J. M. Coetzee (2003) — veja o final da post. No arquipélago formado por duas ilhas ao largo da Tanzânia, na costa leste da África, se tornou o segundo filho ilustre — antes, existiu Freddie Mercury, o conhecido cantor e compositor da banda de rock Queen, que, como Gurnah também migrou para Londres ainda na adolescência empurrado pela Revolução Civil de 1964.
 
Após a libertação pacífica do domínio colonial britânico em dezembro de 1963, uma série de eleições parlamentares resultou num governo de minoria árabe; a maioria africana aliada ao partido de esquerda Umma, inconformada, saqueia a polícia e depõe o sultão. Inicia-se o regime de Abeid Karume, sempre sob o risco de sabotagem, visto que, o governo britânico via com alguma preocupação certa retomada comunista, visto que Karume, além do apoio da esquerda estabelece relações de simpatia com o bloco da China, da Alemanha Oriental e da União Soviética. Como esperado em todo regime, este se funda na opressão e perseguição dos considerados seus inimigos ou capazes de executar o mesmo tratamento que o levou a poder. Muitos cidadãos de origem árabe precisaram partir para o exílio forçado: Abdulrazak Gurnah pertencente ao grupo étnico vitimado e depois de terminar os estudos se vê obrigado a deixar a família e fugir do país.
 
O escritor só retornará a Zanzibar em 1984, o que ainda o permitiu reencontrar seu pai pouco antes da morte. Mais tarde, ingressa na Universidade de Kano, na Nigéria, e inicia uma sólida carreira acadêmica que se estabelece e finda na Universidade de Kent em Canterbury, onde foi professor de Inglês e Literatura, atuando ativamente como pesquisador interessado nos estudos pós-coloniais, focalizando principalmente em obras de escritores como Wole Soyinka, Ngũgĩ wa Thiong’o e Salman Rushdie — isto é, obras que tematizam questões caras aos trânsitos decoloniais, uma preocupação, como se lê no comunicado da Academia Sueca que se integra ao seu próprio trabalho literário, ancorado no impasse cultural vivido do entrechoque entre dois mundos diferentes.
 
Sólida é também a vida literária de Gurnah: além de contos, publicou dez romances, reconhecidos variadamente em importantes nomeações. Embora o suaíli tenha sido sua primeira língua, essa obra que começa a se fazer quando tem 21 anos no exílio foi escrita em língua inglesa. E se, para muitos leitores, como os de língua portuguesa, o desconhecimento de seus livros até agora é quase total, também na sua terra natal, na língua suaíli, o fenômeno se repete. Antes disso, uma literatura em suaíli era praticamente inexistente quando o agora Prêmio Nobel inicia suas primeiras incursões pelas letras. Foi a poesia árabe e persa, possivelmente As mil e uma noites, assim como as suras do Alcorão, a fonte inicial e significativa para Gurnah. Além, é claro, da firme tradição da língua inglesa, de Shakespeare a V. S. Naipaul. Posto isto, deve-se notar que rompe conscientemente com o convencional, derrubando a perspectiva colonial para evidenciar o plano dos seus povos originários.
 
As primeiras avaliações de tal inesperado prêmio vieram do Reino Unido. A crítica literária Maya Jaggi comentou que Gurnah, a quem entrevistou pela primeira vez para o The Guardian em 1994, “é um escritor poderoso e cheio de nuances cujo lirismo elíptico neutraliza os silêncios e as mentiras da história imperial imposta quando criança na África.” Destaca que “seu trabalho, tão sutil quanto sólido, explora em profundidade os complexos problemas da cultura mercantil que deixou como legado as atrocidades do colonialismo britânico e alemão, especialmente durante a Primeira Guerra Mundial, e os ‘atos aleatórios de terror’ que experimentou como negro na Grã-Bretanha.”
 
Além disso, como reconhecido pelo júri do Nobel, “em suas obras, Gurnah se esforçou para evitar a nostalgia onipresente por uma pré-história mais primitiva da África colonial. Sua própria formação é uma ilha culturalmente diversificada no Oceano Índico, com uma narrativa atenta aos períodos de escravidão e às várias formas de opressão impostas das potências coloniais”. O comunicado do júri intelectual da Academia assegurou acompanhar há algum tempo a obra do escritor tanzaniano e embora “a sua escrita pertença à época do seu exílio, também pertence ao lugar que teve de abandonar, o que significa que a memória é de vital importância para a gênese de sua obra.”
 
Histórias de exílio e errância**
 
O primeiro romance de Abdulrazak Gurnah, Memory of Departure, publicado em 1987, trata de um levante fracassado e nos mantém no continente africano. O talentoso jovem protagonista tenta se dissociar da praga social do litoral, na esperança de ser colocado sob as asas de um próspero tio em Nairob. Em vez disso, é humilhado e devolvido à sua família destruída, tiranizada por um pai violento e alcoólatra e com uma irmã forçada à prostituição. Em seu segundo trabalho, Pilgrims Way, lançado no ano seguinte, Gurnah já explora a multifacetada realidade da vida no exílio por meio de Daud, um jovem que enfrenta o clima racista de sua nova pátria, a Inglaterra.
 
Depois de tentar esconder seu passado, o amor por uma mulher o leva a recontar as memórias traumáticas da agitação política na Tanzânia que o forçou a fugir. O romance termina com a visita de Daud à Catedral de Canterbury, onde reflete sobre os paralelismos entre os peregrinos cristãos que visitaram o lugar no passado e sua própria viagem à Inglaterra, usando antecedentes históricos e literários como interlocutores em questões de identidade, memória e parentesco. Sua obra seguinte, Dottie (1990), é o retrato psicológico experiente de uma mulher negra de origem imigrante que cresceu sob o racismo normalizado da Inglaterra dos anos 1950. O silêncio de sua mãe a priva de suas origens e, ao mesmo tempo, ela se sente desenraizada no país onde nasceu. Por isso, tenta criar seu próprio espaço e identidade por meio dos livros e histórias; a leitura lhe dá a chance de se reconstruir.
 
Uma lacuna na literatura do escritor seria seu romance Paradise (1994), que lhe renderia o Prêmio Booker e que ele desenvolveu a partir de uma viagem de pesquisa à África Oriental alguns anos antes. Inspirado por Josep Conrad, Gurnah leva seu jovem herói, Yusuf, para o coração das trevas num romance envolvente de aprendizagem em que colidem diferentes mundos e sistemas de crenças. Situado no contexto da violenta colonização da África Oriental no final do século XIX, o protagonista abandona a mulher que ama para se juntar ao exército alemão que ele despreza, roubando o leitor do final feliz usual do gênero.
 
Um passado que se repete
 
O último romance de Gurnah, Afterlives, publicado em 2020, continua de onde terminou Paradise. Estamos no início do século XX, em plena colonização alemã da África Oriental, que duraria até 1919. Hamza, um jovem que lembra o Yusuf do romance anterior, é forçado a ir à guerra contra os alemães. Depois de terríveis vicissitudes, consegue escapar, mas quando volta para casa no litoral, não encontra família nem amigos.
 
Os caprichosos ventos da história regem o livro e, como em Desertion, acompanhamos a trama por várias gerações, até o plano irrealizado dos nazistas de recolonização daquela região do continente. Gurnah usa a mudança de nome novamente quando a história muda de rumo e o filho de Hamza, Ilias, torna-se Elias sob o domínio alemão. O desfecho, chocante e tão inesperado quanto alarmante, repete uma mensagem recorrente no livro: o indivíduo está indefeso se a ideologia reinante, no caso o racismo, exige submissão e sacrifício.
 
“Gurnah é conhecido por descentrar a história europeia: uma decisão estrutural que também é politicamente poderosa”, opinaram no The Guardian sobre este romance, o que aos olhos da crítica Maaza Mengiste “considera os efeitos geracionais do colonialismo e da guerra, e pede-nos que consideremos o que resta depois de tanta devastação. O que pode ser salvo quando uma das consequências do colonialismo é a exclusão deliberada de uma perspectiva africana dos arquivos? Como é que nos lembramos, se não sabemos o que foi apagado?”
 
Para reafirmar sua decisão, o júri da Academia conclui que “a dedicação de Abdulrazak Gurnah à verdade e sua aversão à simplificação são surpreendentes. Seus romances partem de descrições estereotipadas e abrem nossos olhos para uma África Oriental culturalmente diversificada e desconhecida para muitos em outras partes de o mundo.” E finalizou dizendo que “no universo literário de Gurnah tudo está mudando: memórias, nomes, identidades… Isso provavelmente porque seu projeto não pode ser concluído em nenhum sentido definitivo. É uma exploração interminável impulsionada pela paixão intelectual, e igualmente proeminente agora, no recente Afterlives, como quando ele começou a escrever décadas atrás como um humilde refugiado de 21 anos.”

Ligações a esta post:

Notas:

* As frases que abrem este texto são da tradução para o português de By the Sea (Junto ao mar), de Fernando Dias Antunes, editada em 2003 pela Difel. 
 
** Este texto considera parte da apresentação conduzida pelo El Cultural; a partir de agora, os dois segmentos finais é a tradução livre do texto que pode ser lido aqui.

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