A forma da água, de Guillermo Del Toro

Por Pedro Fernandes



Guillermo Del Toro amplia seu catálogo de criaturas fantásticas. Agora, dá vida a uma forma de vida meio transitória entre o peixe e o homem, sustentado por duas ideias, a científica, de que toda a vida desde a origem veio da água e a do imaginário mítico, que atribuiu durante muito tempo a existência em lugares remotos da terra de seres desconhecidos e condenados ao desconhecimento porque o império do medo tem o grande poder de, muitas vezes, nos afastar da grande descoberta e é um dos principais gestores do pré-conceito, esse que tornado preconceito destrói e mata o que não pertence à ordem determinada como normal.

O universo fabuloso e recorrente nas narrativas fílmicas do diretor mexicano não está, como também lhe recorrente, apartado da realidade comum; ao longo de seus trabalhos é perceptível que sua compreensão de fantasia não está dissociada do trivial e isso é, sem dúvidas, um dos elementos que contribuem para reduzir o fosso desleal forjado entre realidade e ficção como se essas fossem duas coisas distintas. Del Toro aos poucos tem se tornado um adepto do que em literatura se compreende pelo moderno fantástico, a percepção de que o incomum participa do comum. Aliás, a fonte das criações do cineasta, considerando seu contexto de origem, estão muito próximas do real maravilhoso latino-americano. 

Assim, a criatura enclausurada num laboratório de estudos aeroespaciais e capturada nos rios da América do Sul, integra parte no amplo projeto desenvolvido nos Estados Unidos dos anos sessenta para, à frente dos soviéticos, saírem à frente na descoberta de manutenção do homem fora de nosso planeta. O calor do embate entre estadunidenses e sovietes, político e científico, e consequentemente entre capitalismo e socialismo, para citar um só dos elementos envolvidos na disputa, de um período que a história registrou como Guerra Fria perpassa toda a trama de A forma da água. O nascimento do capitalismo em sua forma mais danosa, por exemplo, está em toda parte na narrativa, seja no consumo de novos bens, seja na representação da tradicional família como as mostradas pela propaganda, seja ainda nas reiteradas cenas em que a invenção tecnológica ganha algum contorno.

É um país integralmente sensível a todas as promessas fundadas pelo progresso técnico-científico. Só para citar um exemplo, numa das cenas, o filho do agente policial Strickland, pergunta ao pai se no futuro existirão mochilas voadoras ao que ele responde positivamente. Também é um contexto no qual a disputa entre países, que mais tarde se revelaria como pura imaginação ou neurose coletiva, inaugura o medo da extinção da espécie, este, por sua vez, resquícios do assombroso poder de destruição demonstrado por este próprio país no fim da Segunda Guerra Mundial. Isto é, todos os elementos externos à fábula – se formos de maneira vulgar separar os acontecimentos entre o histórico oficial e o imaginado – corroboram para sua existência, o que garante ao filme uma perfeita unidade narrativa.

A denúncia sobre as novas estratégias de consolidação do capitalismo não é oferecida apenas pelo engate dos elementos de consumo e da tecnologia. Está ainda nas crises que o tal progresso traz com o apagamento dos modelos agora tornados antigos. O vizinho de Eliza é um pintor de retratos que com o consumo da fotografia e do vídeo para a propaganda perde espaço no mercado e sente-se um inválido socialmente; também o cinema se torna obsoleto devido a ascensão da televisão e do videocassete. Do interior, do tema da crise para o cinema, a narrativa de Guillermo Del Toro aproveita para, muitas vezes, de modo metaficcional, propor uma homenagem ao cinema; Hollywood passava pelo período dos grandes musicais, produções que serviram ao interesse do Estado de manutenção de uma determinada visão que se mantivesse sempre desviada dos vários conflitos conduzidos na coxia do que se mostrava. Não bastasse isso, a repetição desse modelo de fazer cinema, muitas vezes esvaziado de um sentido próprio, porque também indiretamente panfletário, completava, por outro lado, o estado de crise.

A inserção contínua dos musicais na narrativa de Del Toro – tão contínua que chega a ganhar forma no interior da própria trama, através da viagem imaginária entre Eliza e a criatura do laboratório onde trabalha, cumpre ainda um gesto de homenagem do cinema a um passado que, do ponto de vista atual, nos faz compreendê-lo, por nostalgia ou por reconhecimento, e fora as críticas que se faça, como uma época fundamental para a história do cinema hoolywoodiano.

Como se isso tudo ainda fosse pouco, a história de A forma da água se completa por várias histórias de amor: do amor fraterno que reanima o valor supremo da amizade ao amor erótico, que vivido imaginariamente, poderá ou não se realizar num futuro. Dos primeiros, o exemplo são os amigos que rodeiam a simples vida de Eliza, uma muda que faz serviços de faxina no laboratório comandado pelo doutor Hoffesteller, o elo para com o embate entre estadunidenses e soviéticos: o vizinho Giles e a companheira de trabalho Zelda.

Do amor erótico, destacam-se a história frustrada entre Giles e o atendente num café onde compra diariamente tortas de limão, e a de Eliza e a criatura que está prestes a fazer parte dos planos dos estadunidenses de colocar em órbita um ser terrestre. Bom, a história oficial explica ao leitor do plano não realizado – na corrida espacial, todos sabem, não foram os estadunidenses os que fizeram o feito de levar o homem em órbita –  e a narrativa fílmica nos apresenta parte (ficcional) dessa versão. 

A maneira como Del Toro engendra o acontecimento amoroso principal, o entre Eliza o ser de dimensões extraterrestre, é bastante emblemática, porque é uma história de amor vivida apenas pelos gestos. Numa época em que muito se discute sobre o amor, a história entre os dois, nos diz que o amor é meio trânsito entre imaginação e atitude. É um gesto, não uma declaração. Nesta mesma linha narrativa, uma vez este texto falar de homenagem ao cinema, o cineasta faz também outra incursão metaficcional que é a celebração da já clássica cena de Alien, com desfecho romântico e, mesmo, cômico quando depois de sua realização.

No interior das histórias que formam parte de A forma da água é ainda singular a maneira como a narrativa atenta para o valor humano dos que estão à margem: suas cumplicidades e seus gestos de ativa participação na chamada engrenagem  oficial do mundo. Este é um filme bastante sensível aos silenciados e negligenciados pela ordem dominante. Uma possibilidade, inclusive de subversão dessa ordem através de um elemento muito desacreditado nesta era de dispersão e de fragmentariedades – líquida para absorver o conceito sociofilosófico ao contexto líquido da narrativa fílmica – a unidade em torno de um propósito.

A história de amor principal só alcança o lugar que alcança pela coleção de outros gestos de amor. O amor-ação é, de alguma maneira, um apelo político: a realidade só é desviada de seu virulento, danoso ou mortal se pela ação coletiva dos que a fazem, do contrário, isto é, sem a ação, tudo é mesmidade, ou como de maneira humorística nos diz Del Toro, um amontoado de tortas na geladeira.

Este amor entre as personagens principais do enredo se contrapõe, em valores e em sinceridade, ao amor entre o agente Strickland e sua esposa, estes que formam, aparentemente, o casal idealizado das histórias de amor comuns. Eliza se percebe na fera e esta se percebe nela enquanto criaturas solitárias e incompreensivas no mundo. Uma moderna releitura de a Bela e a Fera, sem os elementos idealizados do universo de fadas engendrado por Walt Disney, resumiria a história de amor proposta por Guillermo Del Toro. Mas, tudo vai ainda mais além, porque é uma celebração contra a pior de nossas tragédias, a da incompreensão, recusa, negação e ódio ao diverso, pela subversão da intolerância. Em tempos de movimentos que recuperam o lado vil de nossa história, contrapontos são mais que necessários, são fundamentais. 

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