O estabelecimento da solidão: Ernest Hemingway e Edward Hopper

Por Ricardo José Quiroz Álvarez 


Edward Hopper, Nighthawks.



Certa vez, conversando com um amigo sobre a solidão, ele me apontou que existe uma distinção na língua inglesa que permite que esse termo seja entendido de duas maneiras diferentes: loneliness e solitude. Embora ambas as palavras sejam traduzidas como “solidão”, em sua língua original elas não poderiam ser mais diferentes. A primeira expressão designa um caráter melancólico, isolado e sentimental; a segunda, por outro lado, está associada à solitude e ao estoicismo. No entanto, essa distinção linguística é um tanto ambígua se tentarmos aplicá-la, por exemplo, às pinturas do pintor estadunidense Edward Hopper. Como podemos definir a solidão que habita tantas de suas obras? Is it loneliness or is it solitude? Poderíamos fazer a mesma pergunta sobre alguns dos personagens contemporâneos de Hopper: o escritor Ernest Hemingway.

As pinturas de Hopper contêm um estranho hermetismo. Uma abordagem semiótica que interprete os signos constantes nas obras do artista admitiria que não é possível determinar a natureza das solidões retratadas. Esse mesmo desconforto, decorrente da tensão ambígua entre melancolia e solitude, também se apresenta quando se tenta abordar os contos de Hemingway pela primeira ou segunda vez. As imagens comuns na obra de Hopper — as gigantescas janelas, as mãos delicadas que servem tanto para ler quanto para fumar; os rostos com olhar perdido e os espaços claustrofóbicos, ainda que bem iluminados — são transformadas na narrativa de Hemingway em cafés noturnos, hotéis no meio do nada onde a comunicação é impossível e diners onde, um dia, a morte bate à porta.

O conto “Um lugar limpo e bem iluminado” é talvez o texto de Hemingway que melhor se relaciona com as pinturas de Hopper. Nesse conto, dois garçons sentam-se e observam enquanto o único cliente no local, um velho sentado sob a sombra da noite, se deixa consumir pelo alcoolismo e pela tristeza. Eles sabem que ele tentou suicídio em mais de uma ocasião e debatem se o deixam ficar ou se o convidam para ir embora. Finalmente, o cliente termina sua bebida e retorna para casa. Nesse momento, após sua partida, a solidão na narrativa triplica: o que inicialmente era vislumbrado no isolamento do velho começa a se espalhar para os dois garçons do restaurante, que eventualmente se sentem invadidos e assustados por sua solidão. A imagem final do conto mostra o mais jovem dos garçons chegando em casa, onde é forçado a lutar contra sua insônia até o amanhecer.

Um efeito semelhante ocorre ao observar Nighthawks (1942), talvez a pintura mais icônica de Edward Hopper. Nela se retrata quatro pessoas sentadas em um diner estadunidense no meio da noite: o barista que atende no local, um casal sentado no canto mais distante da pintura e um cliente anônimo de costas para o observador. Embora a pintura retrate um grupo confinado em um ambiente social, nenhum desses personagens parece estar conversando entre si. O barista, de aparência curvada e tímida, não dialoga com seus clientes; o casal mantém um olhar vazio para o nada, e o outro personagem mantém uma distância fria dos demais habitantes da pintura. Nesta pintura, a solidão também se multiplica; os personagens estão isolados do mundo e uns dos outros.

Ambos os artistas retratam momentos mínimos em que a solidão é palpável e lúcida, mas são imagens ou cenas que escondem mais do que revelam. Ao discutir a Teoria do Iceberg — termo cunhado por Hemingway para descrever a técnica que usava para escrever histórias: ⅞ partes de toda a história estão debaixo d'água —, é enfatizado acima de tudo o aspecto mais estrutural aludido pela metáfora em vez da representação que ela propõe. (Ricardo Piglia, em linha muito semelhante, estabeleceria que “um conto é um relato que contém uma história secreta. Não se trata de um significado oculto que depende de interpretação: o enigma nada mais é do que uma história contada de forma enigmática.”) No entanto, ignorar a relação entre a imagem e a metáfora do iceberg é injusto para uma análise da obra literária de Hemingway. Na narrativa desse escritor, os contos são essencialmente isso: imagens, tão voláteis quanto as pinturas de Hopper, que retratam apenas o instantâneo. É a imagem, e não apenas a história, que esconde um enigma e se desdobra através da observação, daí a semelhança que emerge entre os dois artistas. O momento fugaz retratado é um tempo que esconde, em si mesmo, outros tempos; é a imagem do iceberg, não sua narrativa, que se esconde em seu antípoda abismal, e a narrativa nada mais é do que o ato de descobrir essa alteridade à medida que nosso olhar percorre a obra.

Pinturas como Nighthawks ou contos como “Um lugar limpo e bem iluminado” funcionam precisamente porque fazem alusão a momentos e espaços que existem fora de sua estrutura representacional. Essas obras nos forçam a considerar as relações que esses personagens mantêm entre si e com o espaço que os cerca. Suas imagens compelem o espectador a se perguntar o que aconteceu antes, como esses personagens chegaram aqui e, acima de tudo, o que acontecerá com eles em seguida.

O fato de as pinturas e contos desses autores se desenrolarem dessa maneira apenas torna mais difícil determinar que tipo de solidão é retratada: a da melancolia ou a da solitude. Alguns críticos, como o historiador da arte Lloyd Goodrich, observaram que as obras de Hopper contêm “uma quietude, uma sensação de solidão que é pungente e, ao mesmo tempo, serena”. Autores como Vivien Green Fryd, por outro lado, encontram uma “solidão (loneliness) desoladora”. Talvez a verdadeira virtude dessas pinturas seja precisamente a existência de uma ambivalência, uma inquietação resultante da impossibilidade de dizer exatamente o que está acontecendo, o que está sendo representado; uma impossibilidade que se transforma no movimento da interpretação e que não consegue se consolidar nem encontrar respostas definitivas.

Em “Colinas como elefantes brancos”, outro dos contos de Hemingway, um casal de turistas sentado em um café na Espanha chega a um ponto de ruptura em seu relacionamento quando ela engravida e ele lhe pede para fazer um aborto. A solidão na história, que inicialmente é mostrada como um fenômeno compartilhado no qual ambos podem se acompanhar em sua condição solitária de estrangeiros, se transforma durante a conversa, quando os dois se encontram profundamente alienados um do outro. No entanto, a história consiste apenas em uma conversa enigmática em um café e não deixa de ser, como Leonard Michaels define várias obras de Hopper, “um momento pictórico de silêncio e quietude”. O que acontece antes ou depois com o casal ou com a viagem nunca é mencionado; permanece fora do quadro.

Voltando a Piglia, o autor argentino destaca em seu prólogo a Em nosso tempo, de Ernest Hemingway, que este escritor — como Beckett — “não descreviam o que viam, mas sim descreviam a si mesmo no ato de ver”. Não seriam todas as pinturas de Hopper também uma representação do ato de ver? Na narrativa de Hemingway, o espectador se torna aquele grande outro que vê o soldado voltar para casa, o casal conversando no momento da ruptura do relacionamento, o idoso alcoólatra prestes a morrer e os garçons que continuam a servi-lo. Nas pinturas de Hopper, o espectador se torna aquele outro que observa, de sua janela, o quarto de uma mulher olhando para o nada, ou os clientes de um diner ao entardecer. Essa distância implícita no ato de observar é o que permite a ambos os artistas permanecerem herméticos e oferecerem um retrato de uma solidão ambivalente, perdida entre os limites da melancolia e da solitude.

Embora essa distinção nos permita problematizar as obras de ambos os artistas, tentando defini-las, suas obras funcionam justamente pela dificuldade de determinar o que retratam. Hemingway encerra o conto “Um lugar limpo e bem iluminado” dizendo “nada e nada e depois nada e nada e depois nada”, não porque não haja nada a dizer sobre essas obras, mas porque tudo o que se pudesse dizer sobre elas teria que vir do nada, do não dito, daquela ausência que vem da distância de onde a história está sendo narrada e que se torna uma solidão ambígua. Na mesma linha, o escritor Leonard Michaels disse que “Hopper é fascinado pela inacessibilidade dos nossos sentidos. Em suas pinturas enigmáticas, ele nos faz sentir o que não está, o nada, o nada que não está”. Qualquer compreensão do que esses dois artistas representam só pode existir no antípoda do iceberg, no desconhecido, e só pode ser acessada pela sua ponta, pelo visível. Esse mesmo recurso é o que nos faz retornar, repetidamente, a essas obras. O fascínio surge da ausência, da nossa incapacidade de julgar definitivamente o que falta. Nessa mesma linha, Hemingway diria que “histórias em que se deixa tudo dentro não podem ser relidas da mesma forma que aquelas em que se deixa algo de fora”. 

* Este texto é a tradução livre de “El despliegue de la soledad. Ernest Hemingway y Edward Hopper”, publicado aqui, na revista Nexos. 

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