Feito bestas, de Violaine Bérot
Por Sérgio Linard
![]() |
| Violaine Bérot. Foto: Massimiliano Minocri |
“Os senhores são homens, mas tentem imaginar o que acontece, os dedos, o sexo, que penetram quando você não quer. Tentem imaginar. Você está lá, no seu trabalho, um dia normal, com o colega de sempre, a mesma rotina, e, de repente, sem saber por quê, sem conseguir enxergar o que pode ter acontecido, o que pode ter desencadeado aquela fúria, mas o colega gentil te derruba sobre a escrivaninha, te joga, esmaga sua cabeça no meio das pastas, sussurra no seu ouvido, não se mexa, sua puta, não diga nada, não quero ouvir um pio, e você não diz nada, é claro[...]”
O romance Feito bestas, de Violaine Bérot, discorre sobre uma triste temática sempre atual, mas tem algumas realizações que poderiam ter melhor exploração para garantir aproveitamento convincente e adequado para o excelente conteúdo que se tem em mãos. A história, registre-se, é ambientada nos Pirineus quando uma menina com aproximadamente seis anos de idade fora encontrada em uma gruta, vivendo “sozinha”. Desconfia-se que, de algum modo, ela estivesse sob cuidados de um homem-menino denominado Urso pela maioria dos personagens que tomam a voz narrativa durante a história.
Além dessa narrativa principal, versos livres de um poema cujo eu-lírico são figuras místicas intercalam os catorze capítulos do romance como que comentando o que acaba de ser lido, dando margens a uma aura fantástica dentro da narrativa. Após essa criança ter sido encontrada, o delegado inicia a investigação e o que lemos desde o começo são as inquirições deste investigador com moradores daquela região.
Aqui temos contato com o primeiro e talvez único problema formal presente no romance. Para cada capítulo, uma nova personagem se coloca como “narrador” ao responder às perguntas — sempre subentendidas — do delegado. No entanto, a dicção de todos é a mesma. Há uma mudança mais substancial apenas quando a farmacêutica, por conta própria, presta seu depoimento. Todos os outros personagens têm falas parecidas, com períodos entrecortados e curtos. Mas a qualidade do conteúdo faz com esse detalhe seja facilmente contornado, especialmente mediante a estratégia coesiva de fazer com que os capítulos seguintes se relacionem com os anteriores a partir de uma complementaridade dos discursos, um caminho que faz com que a leitura seja mais fluida, fácil, e, logo, mais “envolvente”.
Na dedicatória do texto que se tem em mãos, o leitor encontrará uma breve explicação da autora afirmando que o texto lido faz parte de um projeto maior de escrita, trazendo, desde já a possibilidade de que a história esteja incompleta ou funcione como um embrião para o desenrolar de algo maior que poderá aparecer em outras narrativas. Isso não é afirmado, mas uma vez que a escritora entendeu como importante registrar tais informações, podemos partir do princípio de que há um reconhecimento prévio de que este romance que ora lemos não está com todo o seu projeto narrativo finalizado.
De fato, o leitor poderá fechar a contracapa do livro com alguns questionamentos mais básicos sobre o desfecho da história e de alguns subenredos. Mas, registre-se, isso não diminui a qualidade do texto literário, afinal, quantas narrativas conhecemos que ainda hoje as perguntas daí desentranhadas nos assombram? Vários, certamente. Esse sentimento de incerteza e de questionamentos, no caso de Feito bestas é, certamente, intencional, porque, lembremos, as perguntas do delegado inquisidor estão todas subentendidas fazendo com que estejamos nós mesmos ocupando o espaço dele na narrativa.
Desse modo, a escrita proporciona na forma a exata experiência que o conteúdo aponta: da curiosidade. Como uma criança de seis anos de idade sobreviveria sozinha em uma mata selvagem? Como este infante foi para no lugar onde fora encontrado? Há algum adulto por trás disso? As histórias e lendas da vila sobre casos similares, são, pois, reais naquele universo? Todos estes questionamentos que perseguem o leitor também são feitos, indiretamente, pelos depoentes-narradores e intrigam a leitura, instaurando um universo de narrativa policial com traços de fantasia.
Como afirmado anteriormente, as pequenas inconsistências no aspecto formal não são suficientes para que a leitura deixe de ser interessante e o livro, por sua vez, sinaliza uma autora com bastante potencial inventivo/criativo para o qual nossa atenção deve ser destinada. Talvez, e em caso positivo isso seria um ganho, Feito bestas seja, repetimos, o começo de uma história que ainda será finalizada. Mas, por agora, podemos julgar apenas o que temos em mãos e, por isso, olharemos mais atentamente para alguns detalhes dessa história de conteúdo excelente.
Na maioria das sociedades, a defesa dos direitos básicos dos infantes e de suas existências com as singularidades do ser criança talvez seja o único ponto em comum. No entanto, também parece comum o fato de que esse discurso apenas sinalize mais uma hipocrisia do que de uma demanda perseguida com o respeito e a atenção que merece. É esse tipo de contradição que a narrativa busca explorar. Uma criança foi encontrada e imediatamente o grande suspeito de toda a celeuma é um menino chamado “Urso” e visto pelos do povoado como um utilitário.
Aquele jovem, filho de Mariette, pode ser lido como uma pessoa com algum nível de deficiência para maioria dos habitantes do povoado e é, por assim sê-lo, tratado apenas como alguém capaz de fazer curas em animais e somente para isso ele interessava. Os relatos de seu mutismo ou até mesmo uma busca por se saber em quais circunstâncias de vida o jovem crescia, jamais foi uma preocupação assinalada pelos moradores. Agora, quando ele parece envolvido neste crime de abrigar na floresta uma outra criança, tem-se, pois, um culpado ideal. “Não vejo a hora de o senhor liberá-lo, de o senhor deixá-lo voltar, porque tenho uma vaca que tá com um corte feio que desce até o olho, e eu queria muito que o urso visse[...]”
Por se tratar de uma história de enredo popular que emula um teor oral, por ser conduzida pelos depoimentos dos personagens ao delegado da cidade, o leitor não terá dificuldades para concluir a leitura a um ou dois fôlegos. Há, ainda, uma técnica narrativa da coesão por repetição em que as vozes místicas de alguns poemas que intercalam a história principal ou, também, de relatos posteriores que retomam trechos de relatos anteriores e que facilitam o tecer dos fios da obra. Uma forma da trama que, neste caso, é pertinente para a aura de suspeição sobre todos os relatos que são lidos a cada capítulo.

Por exemplo, a relação entre o “Urso” e o personagem do pequeno excerto acima já fora aventado por outro depoente, gerando desconfianças para a relação entre ambos. É por meio dessas construções que a narrativa de Bérot ganha destaque e se consolida como, pelo menos, interessante, porque deixa claro que a sua literatura não estará preocupada com respostas aos anseios da própria leitura ou da história que se narra.
Nós
as fadas
não roubamos os bebês
não.
Nós
as fadas
só fazemos esperar
Praticamente todos os capítulos, conforme dissemos, aparecem intercalados por versos em primeira pessoa como os lidos acima. É por meio destes versos que as figuras místicas das fadas de uma maneira narrativa, mas um pouco enigmática, deixam claras algumas respostas para perguntas ou suspeitas que aparecem no capítulo anterior. Contudo, as respostas, por estarem dispostas de um modo não-linear, não integram efetivamente uma confirmação para as expectativas geradas. As coesões do texto por meio desse misticismo reafirmam, portanto, mais ainda, a intenção de que a dúvida seja a condutora da história; as perguntas, pois, parecem não interessar tanto quanto as proposições de respostas. O que interessa é a construção de uma aura que veladamente desvela a bestialidade humana. Algo que os versos das fadas que observam esses gigantes confirmam e criticam.
Dessa feita, vê-se que a autora intenta chamar atenção para detalhes que embalam seu texto e não para uma conclusão concreta e específica para a grande questão que se faz desde o começo da história. Há, pois, uma narrativa que demonstra como os humanos podem agir feito bestas (a tradução do título desta obra para o português europeu foi Como animais) diante de realidades que fogem de um padrão que, queiramos ou não, é apenas fictício, ainda que busque se impor como real.
Uma vez que o leitor é colocado na posição de inquisidor, é ele também atua como uma fera que, em busca da grande resposta, não percebe que faz perguntas equivocadas. Com uma muito sutil e refinada ironia, o romance demonstra como o humano age de modo animalesco diuturnamente e enxergar como bestificados aqueles que agem, desse modo, feito bestas. São como feras em uma selva que olham para outra parte desta mesma selva e dizem que há, naquele outro lado, uma ausência de humanidade. Essa, talvez, seja a grande resposta de Feito bestas: o humano bestializa-se e isso é o seu “normal”.
______
Feito bestas
Violaine Bérot
Letícia Mei (Trad.)
Mundaréu, 2025
Mundaréu, 2025
104 p.

Comentários