Literatura e necessidade

Por Pedro Fernandes



“E por causa dessa qualidade eterna, dessa imponderabilidade, eu vejo que, para a humanização, a arte está no mesmo caminho da mística ou da fé religiosa; ambas as experiências são independentes da razão; são experiências; a beleza é uma experiência e não um discurso.” Tomaremos dessas palavras da poeta Adélia Prado como epígrafe a este texto.

A literatura contemporânea passa por uma fase em que pelo conglomerado e aclimatação das estéticas, temáticas e formas eclode uma produção que reitera, ou pelo menos deveria reiterar, o olhar do leitor perante novas dimensões. No calor dessa fase, reaparece a pergunta já clássica que sempre esteve presente e permanece mais viva ainda quando desse momento pós-engagée, levado a cabo pelos escritores nas décadas anteriores. É a comum pergunta que prima por uma “função” da arte e seu caráter reside de algo que fora muito em voga ainda na Idade Média, em que, sob os escafandros da Igreja, primava-se por uma arte cuja missão devia se equiparar a de uma “pedagogia da fé”. Evidente que, a proposta do engagée estava bem distante desse tal propósito pedagógico, mas vinga algo em comum entre ambas: a “função”.

Sem fugir da questão, é possível entrever que a literatura contemporânea, mais que a literatura doutra época, traz à guisa uma linguagem do cotidiano, primando pela revaloração do que foi silenciado e imprimindo uma visão outra que busca rever os modelos construídos pelas ideologias e postos como os de ordem para as sociedades humanas. Isso parece ser o suficiente para que possamos desenvolver aqui um raciocínio em torno desse caráter de “função” da literatura.

É bem verdade que, o propósito de uma não-função, conforme foi moeda corrente aos ligados ao hermetismo advindo de figuras como Pound e Mallarmé, carece de uma leitura mais acurada frente essa “noção cor de rosa da função” delegada a literatura. Essa “noção cor de rosa” é aquele com que sonha o senso comum, na visão quase que unânime do “só leio aquilo que traz uma contribuição pessoal”. Por isso que as auto-ajuda estão logo à entrada das livrarias e das listas dos mais vendidos. Mas o raciocínio é falho, porque até bula de remédio traz uma contribuição pessoal e, no entanto, é o que mais detestamos ler.

O fato é que, pensar em “função” por essa lógica “Best-Seller” não cabe aqui; a literatura não resiste a ela. O caráter da arte reside para além dessa vã filosofia do senso comum. Necessitamos de nos deslocar para o campo dos atos instintivos. Só por através do instinto, essa coisa silenciosa que atua como escape nos momentos inesperados dos atos humanos, que é o fio tênue que nos separa do humano que somos e do bicho que poderíamos ser e que nos é necessário porque dele depende nossa própria existência, é possível encontrar uma resposta, ainda que invadida pelo campo das possibilidades, para o que seria essa “função” da literatura.

Pelo território insondável dos instintos se é possível encontrar o entendimento para o caráter volitivo da fé, do belo e do próprio instinto. Logo, o que parece preponderar é uma “necessidade”. A fé, o belo e o instinto são elementos a nós necessários para ser o que somos. Basta que prescrutemos com um olhar planar das sociedades pré-históricas passando a todas as comunidades humanas, as menos e mais desenvolvidas, as iletradas e as letradas, as de centro e as de periferia, em todas, tais elementos da fé, do belo e do instinto são experiências inerentes. Também aí reside a arte.

Do mesmo modo que, não há explicação que caiba aqui. São necessidades; necessidades sabemos que existem, não se questiona. Nesse trato com a linguagem, uma das faces da literatura, o delegar “função” é luta vã, como já nos advertia Drummond: “Chega mais perto e contempla as palavras./ Cada uma/ tem mil faces secretas sob a face neutra/ e te pergunta, sem interesse pela resposta,/ pobre ou terrível que lhe deres:/ Trouxeste a chave?”

Somos todos Sísifos, amarrados pelos laços virtuais e vitais a subir e descer colinas com esse fardo de linguagem; somos todos Dédalos, presos nos labirintos com Minotauros virtuais a que a palavra nos reservou. “Tudo, na palavra, se nos desliza e escapa”, me disse a poeta portuguesa Maria Tereza Horta. Não há como precisar funções, sequer captar um close, uma imagem ainda que fria; o que fabricamos são borrões, ecos de ditos que são infinitamente repetidos, de par em par, como novidades.

Explicar e delegar função à necessidade e ao instinto são tarefas fadadas ao fracasso; por extensão, a literatura, como arte, trajeto em abertura, fratura sem ligação linear, é também algo inexplicável, habitante de uma cidade invisível, evocando As cidades invisíveis de Ítalo Calvino. E só. Existem e só. Com várias funções, as que quisermos inventar. Talvez o entendimento da “função” exista apenas no propósito da não-função do hermetismo poético: é que em sendo múltiplas, as funções existem, ao passo que são nenhuma.

É por isso que, a fim de escapar desse jogo de imprecisões, foi que criamos a esfera do discurso, para se assim conseguiríamos espreitar algo de palpável. E só por essa esfera é que encontramos juízo de dizer alguma coisa, delegar alguma função. A função de humanizadora conforme nos ensinou Antonio Candido. Essa parece ser a função-mestra. Mas ainda assim falhamos. A literatura, assim como as necessidades e os instintos, se dá pelo inusitado e não é algo que se deixa servir às linhas do discurso somente. “De vez em quando Deus me tira a poesia. Olho pedra e vejo pedra mesmo”. Diz-nos Adélia Prado. Está, portanto, para além de todo e qualquer relativismo dos que criamos ou viermos criar, afinal, como definir em expressões exatas essa tal função humanizadora? Isso é matéria para um outro momento.

* Este texto foi publicado no Caderno Domingo do Jornal De Fato, em 04 de outubro de 2009, p. 14.


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