Caixa 19, de Claire-Louise Bennett: o percurso de um experimentalismo trôpego

Por Amanda Fievet Marques


Claire-Louise Bennett. Foto: Patrick Bolger


 
 
Publicado em 2021 com o título Checkout 19, o romance da escritora inglesa Claire-Louise Bennett saiu neste ano pela Companhia das Letras como Caixa 19, com tradução de Ana Guadalupe. O romance é extremamente irregular quanto à qualidade de sua composição. Ele se constrói com uma narrativa não-linear — embora existam fios que se entremeiam, e motivos que retornam — das reminiscências da narradora-escritora.
 
Desde o primeiro capítulo, “Uma grande bobagem”, fica claro que a repetição e a digressão são os grandes procedimentos estruturais. A repetição opera, aqui, tanto como explicitação do hábito da narradora, leitora desde menina, que conta e reconta seus costumes juvenis de leitura na casa de seus pais, seus verões no pátio a ler, seu fascínio pelos livros proibidos de sua mãe, quanto como recurso formal. Repetições lexicais, verbais, que ora conferem um tom de oralidade à narrativa, ora realizam um princípio digressivo — como quem falando de uma coisa, desemboca noutra. A repetição, nesse caso, ainda não é sinônimo de mesmice nem de monotonia.
 
A autora consegue imprimir nesse capítulo inicial rudimentos de um ritmo da língua falada à escrita, e é perspicaz em extrair da repetição algo novo, uma divagação outra com a qual atrair o leitor, que é, aqui, seu maior interlocutor. Há momentos contemplativos, inclusive, que se esgarçam até a alucinação, em que imaginação e realidade parecem se imbricar indissoluvelmente. Em um de seus verões a ler na grama, a narradora observa um besouro pousar na capa do Fedro, de Platão, e já não sabe mais se o besouro estava sobre o livro ou se, ao contrário, o livro havia gerado o besouro: “E de certa forma a gente não saberia dizer, né, se o besourinho era de agora ou daquela época. Não, na verdade não. Nem quando ele acabou caindo da capa e voltou a besourar na grama” (p. 18).
 
No segundo capítulo, “Centelha brilhante”, a narrativa se desloca da casa para a escola. Primeiro, sobre o desinteresse dos colegas de classe pela leitura. Em seguida, sobre o fascínio que sobre eles exercia o laboratório de ciências, onde aprontavam “diabruras”. Nesse momento, a narradora tece uma feroz crítica a posteriori, tingida de certo determinismo, há que se ponderar. Segundo ela como todos ali já estavam fadados ao fracasso, só lhes restava um deboche festivo: “O futuro deles já estava traçado no menor pedaço de papel do mundo. Assim como tinha acontecido com seus pais e os pais dos seus pais e os pais dos pais dos seus pais e daí por diante” (p. 21).
 
Ela também rememora seus professores. Os que gritavam e golpeavam as mesas não são nem nomeados, nem descritos. Mas, a partir do pacífico Aitken e seus blazers de tweed, eles ganham contornos. Quem mais importará será o sr. Burton, que aparece en passant na página 25, mas retorna do meio para o final do capítulo. Não se sabe o que sr. Burton lecionava, mas tendo em vista que o leitor está diante de uma narradora-escritora, não é difícil supor que seja seu professor de inglês.
 
Sabe-se que o sr. Burton carrega o traço distintivo de toda criatura amada, uma diferença essencial: “Ele era muito diferente dos outros professores e suas aulas não era como as outras, ele era divertido e suas aulas eram divertidas e animadas e engraçadas” (p.  41). Mas, não se trata de um enamoramento banal da aluna pelo professor, nesse caso, pois no dia em que sr. Burton falta e é substituído por outro, é diante dessa ausência, que a narradora sente a necessidade de registrar, ao mesmo tempo que prolifera cenários imaginários com o professor, ora se vestindo, saindo de carro, com outras mulheres: “O rosto dele estava na mente dela” (p. 49).
 
A escrita surge, assim, como “algo espontâneo, saído do nada, algo secreto” (p. 50). Mas, também como algo que ela havia criado, que ela possuía, que ela era (cf. p. 59). Por isso, o encontro com o sr. Burton tem a potência de uma força diferencial que convoca na narradora todo o seu pendor à literatura, e por isso que escrever, para ela, é repetir esse encontro, ainda que de outras formas, por outras vias: “sinto uma necessidade de relembrar esse momento […]. Não só para relembrá-lo, mas pra escrevê-lo, de novo. De novo. Escrever de novo” (p. 59).
 
O terceiro capítulo, “Será que você poderia trazer suas aves para dentro?”, no melhor dos casos, é um teste de paciência para o leitor, e no pior dos casos, uma provação, uma tortura, um calvário. A não-linearidade, que nos capítulos anteriores, parecia ainda girar em torno de experimentos narrativos interessantes, parece degringolar, como se tagarelar indefinidamente páginas a fio bastasse por si só como ato literário.
 
Após as páginas iniciais em que a narradora relembra a idealização que havia feito de sua vida na universidade, antes de nela ingressar, a narrativa se desloca para um conto extenso — focado no personagem Tarquin Superbus —, aborrecido e artificial que cobre cerca de quinze páginas (cf. p. 66-82) e parece não acabar nunca, pois sua presença oca oscila num vaivém infindável (cf. p. 132-141, p. 143-147). Esse conto não cumpre função nenhuma na narrativa, e parece satisfazer apenas um ideal preestabelecido de páginas que se deve alcançar para publicar um romance. Verborrágico, desorganizado, sem uma única imagem literária de valor, e incapaz de suscitar uma emoção sequer no leitor. A onipresença da voz metalinguística da narradora comentando sua visão das personagens é tediosa, pois além de se comprazer com a criação de imagens forçadas para o que ocorre a Superbus, a ela lhe apraz se contradizer e desmentir as próprias imagens de uma página a outra (cf. p. 146-147), demonstrando sua parca habilidade em conduzir o romance, e seu pouco domínio sobre a estrutura narrativa.
 
Quando decide interromper a narrativa desse conto, e retomar o fio de Caixa 19, o que se segue é uma sequência ininterrupta de referências literárias que compuseram o estofo intelectual da autora. É exatamente a imagem que ela deseja criar, a de quem leu ostensivamente. Um bando de referências aleatórias a autores ora mais ora menos consagrados, que parece despropositada, fatigante.
 
Quando o texto se lança ainda a um pretenso exercício de crítica literária, o resultado é nulo. Para descartar a obra de Henry Miller, ela crê que basta dizer: “achei aquela linguagem exageradamente vulgar insuportável” (p. 102). Como se a língua literária devesse se compor apenas de belas e imaculadas palavras. Em contrapartida, para exaltar a obra de Anaïs Nin, que a narradora considera injustamente esquecida, basta dizer: “a forma como ela escreve me parece especialmente terna” (p. 104). Assim se sucedem páginas e mais páginas de uma afetação exasperante, em que a narradora demonstra uma autoconsciência de seu próprio suposto brilhantismo que, aos meus humildes olhos, não passa de uma hemorrágica presunção.




O quarto capítulo, “Tudo o que há de bom”, e o quinto capítulo, “A gente era o drama”, respectivamente, operam pelo procedimento de repetição ao retomar cenas do segundo e terceiro capítulos. Dessa vez, o procedimento não é bem-sucedido, e as repetições parecem girar em falso, sem trazer nada de novo. No quarto capítulo, a narradora volta à cena com o seu professor de inglês, sr. Burton, a cena inaugural de quando começou a escrever nas últimas folhas do caderno da escola. Ela detalha, pela primeira vez, o tema do conto que havia escrito: “Era uma história muito curta, sobre uma menina que está costurando os vestidos das irmãs à luz de velas num cômodo subterrâneo” (p. 152).
 
No quinto capítulo, é a cena do cliente russo que frequentava o supermercado onde a narradora trabalhava na época da faculdade que é evocada novamente. Ela tenta tingir o quadro banal da ida ao supermercado, dessa vez, com nuances surreais, a saber: “como se a cestinha [do russo] fosse um balde cheio de enguias teimosas e irascíveis que se sacudia perigosamente na sua mão” (p. 163). Mas, a tentativa carece de força literária.
 
A narradora transpõe o russo num palco, como se estivesse num concerto apinhado, e lá ele não faz mais que enfiar “os dois dedos dentro da cabeça da esposa e se surpreende porque a boca da esposa é muito quente por dentro” (p. 166). E o despropósito dessas imagens se alonga por páginas a fio: “talvez ela morra engasgada discretamente com esses dedos na boca” (p. 167). O leitor se pergunta, obviamente, por que Claire-Louise Bennett não decidiu publicar uma plaquete apenas com os dois primeiros capítulos.
 
No sexto e penúltimo capítulo, “A gente era o drama”, dois motivos retornam. O suicídio, que aparece primeiro como fato biográfico de algumas escritoras, enquanto a narradora permanece divagando sobre suas leituras: “Não tenho vontade de ler livros escritos por mulheres que se mataram. Acho que é muito provável que um dia eu me mate e se isso acontecer quero que seja tudo ideia minha” (p. 179). E, ao final do capítulo, quando a narradora vai passar alguns dias em Yorkshire na casa do namorado Dale, encontra ao sair sozinha para passear no vale, um suicidado, um homem que havia se enforcado: “Vi um moço enforcado numa árvore. Seu cabelo escuro estava preso num rabo de cavalo” (p. 205).
 
O segundo motivo que se repete é o do estupro que a narradora sofreu pelo mesmo namorado: “e o Dale entrou em mim e fiquei de olhos abertos porque se fechasse os olhos o mundo exterior ia sumir” (ibid., p. 192). Segundo ela, essa cena a teria atormentado e, enquanto escritora, teria tentado registrá-la inúmeras vezes: “Toda vez que tentava escrever sobre o que aconteceu depois acabava ficando forçado, porque o que aconteceu depois foi um choque, e por ter sido um choque minha cognição se fragmentou” (p. 204). São temas delicados, evidentemente, mas a meu ver, não há nenhuma intensidade no estilo da autora que reverbere o choque supracitado, de modo que mais uma vez sua linguagem plana não impressiona, falha ao emocionar pelo excesso de palavrório e platitudes.
 
No sétimo e curto último capítulo, “Mulher do nada”, a narradora conta fragmentos de sua mudança a Londres. Quando no sótão de uma casa grande, começa a escrever enquanto se alimenta de cream cracker, queijo cheddar e vinho, estabelece-se uma continuidade entre o final e o começo do romance, já que as histórias que ela relembra ter escrito no sótão, são as histórias dos primeiros capítulos do livro que estamos lendo — como uma mise en abyme, vemos agora o livro dentro do livro, e o procedimento de repetição se estende ao seu limite formal.


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Caixa 19
Claire-Louise Bennett
Ana Guadalupe (Trad.)
Companhia das Letras, 2025.
232p.

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