Planvs ad coeli lilia
Por Eduardo Galeno
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A segunda freira. Chaucer. MeisterDrucke. |
A hagiografia nem seria um gênero. (Às vezes, pensando no nome pelo qual ela insere sua estrutura, seu discurso e sua prática, sinto que seja.)
O que me dá, certamente, uma conclusão, e prefiro começar o texto assim, é que a forma hagiográfica não pode ser exposta à penúria da biografia (ver o ensaio de Flora Süssekind que exagera a proposição referida). O viés do elogio, isto é, da sutileza em resguardar a autoridade, mas ao mesmo tempo a humildade, é o que reparte. Ao contar a história dos santos, não se conta nada além da ascensão (mesmo, por exemplo, que eles tenham vivido uma vida de pecado anteriormente). Tudo é sobre o Amor, a clausura da revelação e do domínio sagrado, tudo é sobre como um santo pode salvar os outros fiéis (e, quem sabe, os gentios). Hegel cita que o saber não subtrai a substância divina, já que ela própria se designa a se mostrar conhecimento. Essa é a tese que a dialética hegeliana interpõe. O mais lógico se delimita em como a promessa pode ser efetiva se se projeta no caminho da consciência, da ciência.
Chaucer escreveu vários e vários contos, antes de permitir a adesão à narrativa sobre Cecília, mártir do cristianismo, em que demonstra seu desprezo imenso a todas as castas sociais pregadas em vício. A Cantuária, apesar dos temas diferentes, ficou para a literatura num clássico de brincadeiras, chistes, risos e comédias (lembremos que Pasolini a pôs refletindo o erotismo protorabelaisiano no filme de 1972). Mas é, pelo menos segundo as potestades dali, mais um conluio programático dos exempla do que outra coisa. A interpretação modernista de Eliot é muito capaz de totalizar o sentido que as linhas do livro têm para nossa visão: no começo de The Waste Land, o poeta deságua na subversão do prólogo de Chaucer. Subversão dá fato aqui à experiência de, semioticamente, se distanciar. Aí entra a contradição do Eliot classicista.
Tiago de Varazze, na Legenda aurea, é importantíssimo para a narração não apenas porque Chaucer traduz em versos os feitos de Cecília, mas igualmente porque corresponde a deixar sua crítica evadir as parcelas do clero, da nobreza e da plebe. O assunto é generalizado, total, beirando o pessimismo (qualquer escatologia é pessimista?). No século XIV, era fácil pensarmos no fim do mundo. Fazendo parte do corpo orgânico, as letras funcionavam como escopo metafísico dos justos e dos bons, cujo ponto último era sempre retroceder e lutar contra a corrupção e as doenças morais do homem. A marca impessoal e absoluta parece residir ali, mas não da mesma maneira que nós conhecemos. Para termos uma ideia, a santidade de More, o autor de Utopia, que foi para o Índex da Igreja em 1559, fora transplantada por causa de sua execução, cometida por Henrique VIII. More, defensor e um fervoroso católico, escreve seu magnum justo sob a pena da lei natural. Se até um ficcional autóctone pagão a segue, por que cristãos em sociedade não o fazem? Isso é um traço subautoral, que está a toda hora na correlação com a escrita revelada.
Submisso à verdade: o profundo ânimo de Geoffrey C. Para efetivá-lo, já no início do poema o autor vai esbanjar a humilitas conscientemente contra a soberba. A introdução, em conjunto com a invocação de Maria, daria um fim ao mundo do grandioso palavreado sublime da retórica. Isso quer dizer, acho, que as palavras que se usam durante a estadia focada na vida do santo não são normais no senso semiótico. Elas esbanjam sempre um excesso.
E a todos os que lerem o que escrevo,
Peço que me perdoem, por favor,
Por meu estilo simples, sem floreio,
Pois copio as palavras de um autor
Que à santa dedicava seu louvor;
A causa, afinal, é honesta: louvar, louvar bem, uma serva que é ampliada pela paixão à Verdade. Só a partir dessa finta os cortes em relação à retórica vão esclarecendo. Como tinha dito, qualquer palavra religiosa sobre o mistério é pesada. Não porque a beleza sensorial a sustenta, mas justo porque expande o Belo, considerado enigmático, para a coisa humana. Um dos pontos cruciais, nos termos das práticas letradas, da transição da antiguidade para a idade medieval é a literalidade da segunda. Nietzsche consegue exemplificar, no âmbito moral, o básico da contradição entre o alto greco-romano e a submissão humilde do cristianismo.
No gênero humilde, o verbo se liga à matéria sem floreio. Na realidade, o tratado das temáticas cristãs na literatura quer copiar a experiência de Jesus na cruz. Antes das orações do conto, é muito de bom tom que Chaucer sustentasse essa via. Com economia e prudência, ele encontra saída, em suma, em praticamente uma técnica de argumentar: a amplificação. Nela não podemos obter a essência da hagiografia para além do efeito de engrandecer os feitos. Vemos essa necessidade tão clara nos epítetos que Chaucer procura para o nome “Cecília”.
Para abarcar a vida, não é nada indiferente que ela seja ampliada até um irrealismo, perseguido pela própria língua inaugurada por fora da ação.
A donzela era um sol de bons exemplos,
Constelação de pura sapiência,
De todas as virtudes a excelência.
Aqui, a amplificação por atributos em imagens exacerbadas dá pequenas mostras de função metafórica (que em nada nega o anseio pelo fora!). Os versos seguram a bondade máxima de Cecília e incitam a sua afecção. O motivo que apreende a conduta se põe à mercê da eternidade da figura que, bem explicado por Bakhtin nos escritos da Estética da criação verbal, cristaliza negando os resíduos de época e de lugar. É uma coisa que é preenchida de maneira complexa pelos poetas que eram cristãos e debatiam temas seculares.
Particularmente, acredito que o Agostinho das Confissões dê a melhor resposta. Em forma aberta, ele soube que a retórica aristotélico-ciceroniana apresentava a elocução que os tempos de império clamavam, mas somente a sua decadência poderia abrir espaço para o estilo novo do Evangelho. No momento que,
Ela diz: “Logo explico essa questão.
Três partes tem a humana sapiência:
A invenção, a memória e, enfim, razão.
A divindade, em una refulgência,
Também tem três pessoas e uma essência”.
“Prefeito, o teu poder não interessa.
Pois o poder mundano é vacuidade:
Uma bexiga inchada, eis a verdade;
E quando de uma agulha ela é picada,
Explode, e dela já não resta nada.”
Cecília destrói um modo de ver.
Não podes ver? Tateia o “deus” então.
“É uma pedra!”, dirá tua própria mão.
E nisso consiste sua força de modelo. Mesmo Cecília julgada e assassinada, a história que a freira enuncia monta um simples discurso: se espelhem nela. O tom que fez os irmãos Tibúrcio e Valeriano é o mesmo que Chaucer também tenta fazer. Cecília, ao contrário dos heróis de guerra da Grécia e de Roma, não vale mais que uma morte sem compaixão. Destinada aos piscatores et abiectissimi [pescadores e reles], parte da escrita chauceriana é evangélica por natureza: excipit omnes populari sinu [recebe todos em seu seio comum], emulando as escrituras e os Pais da Igreja.
***
O resultado é conceber a hagiografia no Conto da outra freira como misto. Misto entre apologia e arte, religião e poesia, acaba por operar na hora da baixa Idade Média. É fascinante como ligava externamente uma sociedade em plena ebulição (perceba os desvios inerentes de um Dante em volta do que pensa sobre a relação entre o poder retórico-jurídico e o poder espiritual). Apesar dos tropos que caíram com Hugo, segue possível acompanhar com paixão a realidade vivida por Chaucer e, principalmente, por sua obra. A disputa pela vulgaris eloquentia representa a quintessência da luta por uma nova ideia que nasceria nos rincões intelectuais dos reinos da Europa.
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