O trágico e. o belo em O homem elefante

Por Juliano Pedro Siqueira

“Os olhos não veriam o sol se não fossem parecidos com o sol e a alma não verá a
beleza se ela não for bela.”

— Plotino (205-270 d.C)




A justa genialidade atribuída a David Lynch geralmente se associa as suas grandes produções da maturidade, como o seriado surrealista Twin Peaks na década de 1990 e filmes como A cidade dos sonhos nos anos 2000. Mas sua profícua imaginação já dava sinais de grandeza dez anos antes, quando dirigiu o extraordinário O homem elefante; talvez seu trabalho menos conhecido.
 
O filme retrata a trágica e bela história de Joseph Carey Merrick (1862-1890), um inglês da Inglaterra Vitoriana que em decorrência da sua deformação congênita era explorado em apresentações circenses como o “espetáculo da aberração”. Merrick desenvolveu uma anomalia física aos três anos de idade, provavelmente o que a ciência moderna classificou de Síndrome de Proteus — crescimento excessivo e desproporcional de tecidos e músculos —, caracterizada por uma aparência horrenda e repulsiva. Na trama, Lynch conta com a atuação iluminada de Anthony Hopkins, interpretando o médico Frederick Treves, o qual proporcionou a Merrick um pouco de dignidade humana e contemplação do belo em meio ao preconceito selvagem que o cingia.

Apesar de ter sido filmado propositadamente em preto e branco — o que trouxe um tom sombrio e melancólico ao drama — o filme mantém o brilhantismo em momentos memoráveis e belos: a exemplo da cena em que Merrick cita em voz retumbante o Salmo 91, suficientemente forte e sensível para arrancar lágrimas do mais frio dos espectadores. Imerso no subsolo da dor e da humilhação, o jovem vivia enclausurado em um quarto úmido e escuro, controlado por um alcoólatra e apresentador de circo que lucrava com suas exibições diante de um público zombeteiro. De repente, Treves, um médico de espírito inquieto e tomado por ímpeto científico, tenta analisar Merrick; e assim o faz, garantindo-lhe um quarto permanente no Hospital de Londres. A presença do jovem atrai curiosos, inclusive o diretor do nosocômio, o Sr. Garr Gomm, que, num primeiro momento, resiste a admiti-lo como paciente, mas em seguida, encanta-se ao saber que o garoto era capaz de se exprimir com fluidez e certa eloquência.

Treves inicia uma verdadeira saga para provar que a anomalia de Merrick não comprometia sua cognição; pelo contrário, permitia-lhe pleno acesso cultural e interação social. Tal descoberta rende ao paciente visitas próceres, envolvendo a alta intelectualidade inglesa, em especial, da rainha Vitória. Sua sorte parecia mudar quando se despojou do tratamento desumano e humilhante a que era submetido, cedendo espaço a trajes elegantes, refeições dignas e contato com ambientes requintados. 

Das sombras à contemplação estética: o desvelar de uma beleza provocante e antagônica, advinda do mesmo mundo abjeto que o rejeitava. Merrick só precisava de um pouco de compaixão alheia, de humanos dispostos a reconhecer sua grandeza como homem, não reduzindo sua dignidade à mera condição física. Enquanto muitos o praguejavam como criatura desprovida de subjetividade e sentimentos, Dr. Treves estudava muito mais que um corpo deformado: analisava a alma de um jovem docilmente trágico, inteligente e sensível à vida.

Mais que um simples drama para comover o público que concorreu a oito estatuetas do Oscar, O homem elefante evoca a beleza trágica da vida. Os maus-tratos, a humilhação, o escárnio e a exploração são tudo que pode rebaixar a existência de um homem a nada; a danação de uma alma que veio ao mundo condenada ao sofrimento. Quem poderia mudar a sorte do pobre homem além da própria fé silenciosa, vivida nos recônditos da alma por meio de gemidos e pensamentos conflitantes? O destino de Merrick apontava para um trágico fim ao condicionar sua vida à extrema miséria. Lançado ao mundo como dejeto e renegado pelos seus, passou a perambular por ruas e abrigos mendigando sobrevivência. Condições tão adversas e inimagináveis, que até mesmo atos de autoaniquilação seriam completamente justificáveis, mas a beleza que lhe era intrínseca, contrariou a herança da maldição genética, fazendo resplandecer sobre si a luz da aurora, encanto esse, até então, desconhecido.

O elemento trágico imiscui-se à beleza em apenas um ato da vida encenada. Joseph Merrick — digno de uma construção shakespeariana —, se lança à vida sem reservas, afirmando-a mesmo diante da tragicidade de que fora protagonista. Para um homem cujas circunstâncias contingentes tenham-lhe roubado momentos tão ordinários — como se casar, ter filhos ou respirar sem dificuldades —, o mínimo dos gestos e experiências soava-lhe magnânimo. Se por um lado, a peregrinação terrena foi breve, sua existência foi intensamente vivida, provocando inveja a qualquer centenário. 

Não é qualquer homem que encara seu lado trágico quando tentam negar-lhe a beleza em face à vida. O desprezado ‘homem elefante’ parece ter abraçado seu amor fati, representando aquele que afirma a vida conjuntamente com seu trágico. Sem atalhos ou ressentimentos, Joseph expressou sua vida de forma visceralmente filosófica até as últimas consequências. Nietzsche defendia uma filosofia extraída das entranhas, elevando o conceito de vida ao seu ápice, celebrando-a como a porção dionisíaca que surge da embriaguez e da dança incontida, sendo a única forma de justificar sua bela tragicidade.

Introduzido na nova realidade, agora o dignatário Joseph Merrick transcende, enfim, ao verdadeiro humanismo. Sua aparência assustadora não precisava mais ser ocultada por trapos asfixiantes nem preso em jaulas feito fera selvagem com trajes de gala, além da fascinação pela elite vitoriana. O homem elefante agora se expõe em teatros, concertos musicais e discursa com profunda comoção. A beleza que brota da sua alma é a afirmação máxima da vida, mesmo quando sua aparência insiste limitá-la. O exagero e a desproporcionalidade corporal não conseguem deformar sua alma, tampouco seu caráter. Merrick emana vida, é um impelido por uma insaciável sede de viver. Ao invés de passar a existência praguejando o próprio infortúnio, espera, como um solitário apostador, a sorte bater-lhe à porta. Quando novos caminhos clareiam parra Merrick, esse os encara com louvor, sem perder, até o último suspiro, a esperança e a fé que lhe são peculiares.

A obra de Lynch soube explorar com maestria o dilema da condição humana, expondo o sentido da existência que transcende as contingências da vida. O malogrado homem cuja vida não tinha nada a oferecer senão dor e penitência, cruzou com a benevolência de um obstinado médico que teve a oportunidade de converter desgraça e tragédia em graça e beleza. Este filme é arte cinematográfica produzindo espetáculo em altíssimo nível, despertando o sentimento de afirmação da vida em face ao acaso. 

O homem elefante consegue transmitir essa força vital em cada detalhe; da agonia desafeiçoada da criatura ao verso declamado de Shakespeare. A beleza evidenciada em várias camadas sutilmente presente na feiura gritante, do coração humilde do jovem ‘elefante’. O homem fazendo daquilo que tentaram fazer dele, algo que transcendesse a mera existência sem propósito, servindo sempre aos interesses maiores da vida. Externamente, Merrick simboliza o fracasso encarnado; contudo, não permite que sua memória sej limitada a sua aparência, mas à beleza irradiada do seu ser. 



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