Por Luis Fernando Novoa Garzon
No lançamento de Bacurau (2019), o que ficou manifesto naqueles
anos de bolsonarismo alçado ao núcleo do Estado brasileiro, foi a sensação de
desentalar um grito abafado, uma pequena vitória nas telas antevendo vitórias
maiores adiante. Este filme fora uma desforra estética, uma narrativa
vingadora, (“livro vingador”, como Euclides da Cunha definia o sentido singular
de Os sertões). Confirmados e até mesmo superados muitos dos cenários
distópicos apresentados no filme, o que perdura e merece revisitação é a bravura
do entendimento da necessidade de resistir. Frente ao pacto faustiano de nossas
elites entregando água, territórios e povos ao usufruto irrestrito de quem puder
pegar e pagar mais, lá está o bacurau, o pássaro soturno, lá está Bacurau encarnada
como vila de prontidão para defender a vida que ainda pulsa.
No longa-metragem dirigido por Kleber Mendonça e Juliano Dornelles há, portanto, uma solução
tecida na retina, feita de um trançado de memórias, com extensões e
reverberações que poucos se arriscaram a pôr na roda quando de seu lançamento.
Neste presente momento em que a extrema-direita comprova seu enraizamento não
apenas no Brasil, mas nos EUA e Europa, o “modo Bacurau” pode servir de
antídoto às posturas crédulas e passivas que apontam exclusivamente para saídas
institucionais e jurídicas. Com o filme, vemos pelos olhos de periféricos e
sertanejos céticos aos processos formais de representação e por isso
esperançosos com os saberes coletivos experienciados e retidos na memória.
Bacurau revela e torna
perceptíveis os paradoxos de nossa história, de nossa (de)formação. Ali estão
camadas arcaico-modernas indissociáveis, um palimpsesto de revoltas abafadas,
não resolvidas, das tantas coisas que podíamos ser. Diante da política do
esquecimento que prossegue, a despeito da mudança do mandatário presidencial,
não cabe nenhum tipo de silenciamento. Sim, Bacurau é um grito e é muito
oportuno repô-lo, pois se por um lado Ainda estamos aqui (2024), os
agentes da necropolítica seguem nos rodeando e ameaçando.
Se é o despedaçamento do vivido e do lembrado que querem, cá estão
versões de realidades outras, mais inteiras possíveis. Não importa se a versão
apresentada seja a predileta em que cada um se identifique “inteiramente”,
importa é poder discutir e experimentar opções, olhares e caminhos. Bacurau é
uma versão captada por Kleber Mendonça e Juliano Dornelles em sua leitura transversal e pelo avesso
que faz do Brasil. Do mesmo modo, em Som
ao redor (2012), o primeiro longa-metragem do primeiro diretor, a trama deduz a cidade do
engenho, a riqueza fundiária da latifundiária. Na metrópole sitiada, as
rarefeitas zonas urbanizadas são privatizadas e gentrificadas. Aquela rua, sob
ataque especulativo e miliciano na praia de Boa Viagem, é um simulacro do
engenho e dos rios de sangue que moviam seus moinhos.
A associação duradoura entre proposições expansionistas e discursos de
“guerra cultural” revela o quanto foram esvaziados os espaços e as projeções
públicas e o quanto precisamos esboçar, tramar, lembrar e antever. Bacurau é
uma adição ao repertório possível de rebelião que incuba figurativamente uma
revolução popular brasileira.
Ficção científica ou documentário alegórico, tudo se inicia com o
cortejo de Dona Carmelita, matriarca da memória coletiva ressocializada no
ritual. Mas diante do anjo exterminador que atua nos termos de um jogo genocida
voraz, reúnem-se todas as forças para deter a guerra total.
Não estamos diante da desidratação de um suposto Estado de Direito ou de
um desapego a “valores democráticos”. A fórmula constitutiva da retomada de
“posições perdidas” em termos comerciais, geopolíticos e culturais anunciada na
sede do Império (por exemplo o lema Make America Great Again — MAGA) — e que se
generaliza para suas bordas — é a do recurso a “normas abertas” para que os
particularismos possam ser “livremente” normatizados como o interesse geral.
Por isso cabe dar vazão a imaginários utópicos e literalmente palpáveis,
em que afetos e sensibilidades importam. A ordem, por ser “de fato”, não quer
dizer que seja válida, o que está aí, quem disse que será?
Por isso as canções ou a sonoridade têm papel tão crucial na filmografia
de Kleber Mendonça. O cancioneiro popular brasileiro do século XX era, segundo
Wisnik (2012), “o lugar que melhor abrigava o Brasil. [...] ali [...] a vida
brasileira podia se reconhecer em canções [...] que nos deram essa sensação
[...] de participar de uma mesma experiência”. Oras, se somos capazes de nos
cantarmos, logo existimos; logo podemos cantar o que podemos ser.
Nestas canções, em extinção e ressurgentes ao mesmo tempo, exige-se “uma
audição concentrada do que está sendo dito e cantado e da relação do que está
sendo dito com a própria música”, como diz Nestrovski, (2012). São evocações,
na interpretação de Fernando Barros e Silva, de “vestígios de estranha
civilização” que “os escafandristas virão explorar”, parafraseando a canção de
Chico Buarque “Futuros amantes” (1993): “alguém há de ouvir a canção que
afundou no mar” (Barros e Silva, 2009, p. 27).
Em Bacurau, a música de abertura, “Não identificado” (Caetano
Veloso, 1969), diz o que antecede e procede do levante popular cinegrafado: “Eu
vou fazer uma canção de amor/ Para gravar num disco voador./ Uma canção,
dizendo tudo a ela,/ que ainda estou sozinho, apaixonado./ Para lançar no
espaço sideral./ Minha paixão há de brilhar na noite/ No céu de uma cidade do
interior”.
Em lugar não-identificado, disputar os sentidos do vivido é disputar os
sentidos do que pode ser vivido. O passado é um repertório infindo de atalhos
para outros futuros que deve ser revolvido no cerzir de conversas, relações,
lampejos de sonhos e pesadelos. Ao reinterpretar as interpretações de Canudos,
nave-mãe de quase todas nossas utopias, Joana Barros propõe “reescrever essa
história e essa tradição de luta e vida não através de uma avenida reta, mas de
pequenas veredas nas quais nos perdemos e aprendemos a nos encontrar
coletivamente” (2019, p. 33). Os caminhos pontilhados por Kleber Mendonça e Juliano Dornelles em
Bacurau por isso continuam sendo um convite para traçar e retraçar nossa
história.
Ligações a esta post:
>>> No ano de lançamento de Bacurau saiu aqui a primeira resenha do filme.
Referências
O FIM DA CANÇÃO: Luiz Tatit, Zé Miguel Wisnik e Arthur Nestrovski.
Direção de Daniel Augusto. Brasil: 2012. São Paulo: Selo Sesc SP, 2012. [DVD].
(76 min.), colorido.
BARROS, Joana. Desenvolvimento e narrativas do atraso: a campanha contra
Canudos e as veredas da resistência. In BARROS, JOANA, PRIETO Gustavo,
MONTEIRO, Caio (orgs). Sertão, Sertões: repensando contradições.
Reconstruindo veredas. São Paulo: Editora Elefante, 2019
BARROS E SILVA, Fernando. O fim da canção (em torno do último Chico). Serrote,
São Paulo, v. 3, 2009.
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