Por Henrique
Ruy S. Santos
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
— Fernando Pessoa, “Tabacaria”
 |
J. M. Coetzee. Foto: Edwina Pickles |
Todo ato de leitura, especialmente a leitura atenta, aquela
que se debruça sobre um texto para produzir algum tipo de interpretação
materializada, é um ato carregado de tensões e embates. Embates suscitados por
um jogo de forças entre o que o texto por si propõe e o que nós, como leitores
de outros livros (sim), mas também (talvez ainda mais) recipientes atordoados
de informação, ofertamos como nossa bagagem. A equação, a esta altura, já traz
consigo um certo cheiro de coisa empoeirada: obra em si + experiências do
leitor = leitura. Para além das infinitas problematizações que cada termo dessa
equação pode levantar, é ao resultado da soma que minha atenção aqui se volta
brevemente. Em que medida essa leitura que se dá como resultado desses embates
pode ser tida como minha? Até que ponto a obra lida enformou a leitura que
produzi e a partir de que limite a extrapolei, talvez enxertando uma dose pouco
salutar de minha própria experiência no ato interpretativo? E se incorri na
referida extrapolação, até que ponto isso se deu em meu favor, isto é, até que
ponto posso dizer que as experiências enxertadas são de todo minhas? A pergunta
a que quero aportar e com a qual gostaria de iniciar esta resenha é a seguinte:
até que ponto uma vida se mede (se narra, se lê) unicamente pela percepção de
quem a viveu?
Esse salto um tanto brusco entre questionamentos que
averiguam o ato da leitura e questões mais alinhadas, digamos, à constituição
dos sujeitos se assemelha, de certo modo, à experiência de ler Cenas da vida
na província, do sul-africano John Maxwell Coetzee. A edição recém-lançada
pela Companhia das Letras (2025) reúne a trilogia de romances autobiográficos
do escritor, publicados originalmente no decorrer de um pouco mais de uma
década: Infância (1997), Juventude (2002) e Verão (2009).
As traduções ficaram por conta de José Rubens Siqueira e Luiz Roberto Mendes
Gonçalves. Ao dar conta de bons anos da vida do autor de maneira romanceada, o
livro se destaca por um grau de descentramento (cujos níveis variam) que
interpela o leitor a, assim como o autor faz, sair de si mesmo, seja do ponto
de vista do ato da leitura em si, seja de uma perspectiva vivencial e
filosófica de uma forma geral. A primeira marca desse descentramento,
certamente a mais visível logo ao início da leitura, é a opção pela narrativa
em terceira pessoa, em vez do registro em primeira, mais habitual e comum na
narrativa autobiográfica. Daí o termo “autrebiographie” que o escritor
utilizou para classificar esses textos, numa tentativa de acentuar essa
outragem (do verbo “outrar-se”, cunhado por Fernando Pessoa) a que se submeteu
em seus escritos. Os três livros que compõem o conjunto memorialístico são,
ainda, um testemunho em ato desse sair-de-si, uma vez que os livros performam,
em sua concepção criativa, esse movimento.
O lugar nenhum da infância sul-africana
O primeiro livro, Infância, dá conta de alguns anos
da vida do pequeno John Coetzee nos anos 1950, vivendo com os pais na pequena
Worcester e, em seguida, na Cidade do Cabo. Destacam-se aqui, principalmente,
as experiências escolares e a relação tempestuosa com o pai e a mãe. John se
mostra desde cedo um garoto com dificuldades de relacionamento, portador de uma
aflição social pela qual se sente perpassar todo o peso da precária estrutura
social da África do Sul da época, à qual o menino não consegue se sentir
indiferente. Ao trazer no nome heranças tanto africânderes quanto inglesas, o
garoto já se sente, de partida, desajustado, sem conseguir se encaixar em
nenhum grupo, traço de personalidade que levará consigo por muitos anos.
Ainda que não formule o pensamento conscientemente, o menino
parece sentir, em todas as relações, o peso da injustiça e da segregação que
grassam na África do Sul de seu tempo. Esse peso vem à tona sob a forma da
culpa (Coetzee é um garoto branco na África do Sul do apartheid) e de um
desajuste que inviabiliza a convivência amistosa e franca, seja com os colegas
da escola, seja com os familiares. Por todos os lados, acordos e desacordos
tácitos que o menino precisa intuir se quiser se mover com o mínimo de
desenvoltura pela sociedade, e Coetzee, o escritor, cola a narrativa com
maestria ao ponto de vista da criança sem soar infantilóide ou excessivamente
bobo.
É de se esperar que um país e um povo divididos produzam
indivíduos igualmente cindidos. O menino John batalha por criar um espaço único
para si a partir de um material social e familiar absolutamente babélico.
Guarda uma reverência intimidada por suas heranças africânderes ao mesmo tempo
que admira os heróis e as glórias da nação inglesa. O idioma da casa é o
inglês, dominado com maestria pelo menino, mas as conversas dos tios na fazenda
da família de seu pai ocorrem em africânder, e o menino não consegue evitar o
fascínio que as gírias e as obscenidades pronunciadas nessa língua lhe
suscitam. O resultado é uma inadequação generalizada, o sentimento de que não
passaria nos testes necessários para ser considerado nem uma coisa nem outra.
Acentua-se o solipsismo que tanto o marca e que o menino entende ora pelo viés
de um certo aristocratismo de quem se sente distinto de todos, ora pelo viés
oposto da anormalidade de quem se sente inferior e incompleto.
“Por falarem inglês em casa e por sempre ser o primeiro da
classe em inglês, ele se
considera inglês. Embora seu sobrenome seja africânder,
embora o pai seja mais
africânder que inglês, embora ele mesmo fale africânder sem
sotaque inglês, jamais
poderia passar por um africânder. Seu vocabulário de
africânder é escasso e frágil; existe
um denso mundo de gírias e expressões dominadas pelos
verdadeiros meninos
africânderes — do qual as obscenidades são apenas uma parte
— a que ele não tem
acesso” (Coetzee, 2025, p. 133).
A África do Sul da infância se mostra desde sempre uma
espécie de não lugar para o garoto, uma terra que exerce um fascínio inevitável
do ponto de vista humano (a variedade cultural, linguística, religiosa), mas
cujas arbitrariedades e violências representam uma mancha moral de que é
preciso inevitavelmente fugir se se quiser viver com alguma paz de consciência.
A posição da criança diante da sociedade se dá sempre por vias negativas, num
movimento de retração que o isola cada vez mais de tudo e todos. O intrigante
da narrativa é que nada disso é percebido explícita e conscientemente pelo
garoto, mas apenas intuído e pressentido. É apenas mais tarde, no segundo
livro, que esses dilemas se apresentam à consciência do personagem como
questões deliberadamente formuladas, ainda que não resolvidas. O escritor não
perde de vista aquela dialética que media as relações entre o indivíduo e a
sociedade, o particular e a totalidade. Se o texto cede ao ponto de vista
infantil, optando por olhar o mundo pelos olhos da criança, há uma
impessoalidade subjacente que permite ao leitor o vislumbre do todo para logo
perdê-lo de vista novamente em favor da visão parcial.
O leitor aprende desde cedo a desconfiar de cada frase do
texto, não porque carregam mentiras, e sim porque as verdades são muito mais
complicadas do que parecem. Se o pequeno Coetzee se queixa consigo mesmo de que
“entre todos aqueles meninos, ele é o único em quem corre [uma] perversa
corrente erótica; entre toda aquela inocência e normalidade, ele é o único que
deseja” (Coetzee, 2025, p. 65), o leitor sabe que o personagem está apenas se
afundando cada vez mais em seu solipsismo precoce e que a afirmação não
corresponde à realidade de meninos cada vez mais próximos da puberdade. Mas o
leitor também percebe que essa é a percepção de um garoto inserido em uma
sociedade extremamente alienadora e opressiva, sem que o narrador precise
intervir com explicações.
Na sua raiva de menino desajustado, sua relação com os pais
e o irmão se torna em várias medidas turbulenta. Do pai ressente o alcoolismo e
uma certa desistência da vida; a relação com o irmão é quase inexistente, uma
constante, aliás, dos três livros, em que pouco ouvimos falar do Coetzee mais
novo. O vínculo com a mãe, por sua vez, é uma das melhores coisas deste
primeiro livro, carregado de ambiguidades e de contradições que o menino mal
consegue entender. Para ele, incomodam o amor e os cuidados excessivos que a
mãe lhe despende. O carinho e a proteção maternas que ela direciona a ele lhe
sobrevêm como um peso, como mais um dos elementos que tecem um halo de culpa ao
redor dele, com feições, nesse caso, visivelmente cristãs. Não há saída
visível: “Jamais será capaz de retribuir todo o amor que ela despeja sobre ele.
A ideia de uma vida inteira subjugado por uma dívida de amor o enfurece a ponto
de não querer beijá-la, de recusar-se a ser tocado por ela” (Coetzee, 2025, p.
55). O menino pressente, como típico adolescente, que se integrar à sociedade
passa, em grande parte, por ser capaz de abrir mão da proteção da mãe e de
certos confortos físicos e emocionais que o constituem, por mais que tente
repeli-los.
Já se delineia aqui um traço fundamental de todas as partes
desta trilogia (e arriscaria dizer de outras obras de Coetzee também): a
completa ausência de idealização de seus personagens, incluindo especialmente a
si mesmo enquanto personagem. Por mais que conceda espaço à própria visão de
mundo do menino, que em muitos aspectos se julga especial e diferenciado (em
alguns setores, o menino parece realmente se destacar), o leitor atento percebe
que se trata de uma criança demasiado comum, com uma forte tendência ao
autoisolamento e ao ensimesmamento, entretanto vivendo num lugar e num período
completamente incomuns, interagindo com forças sociais e com um passado (e
presente) colonial muitíssimo complicado. São essas forças que para sempre o
marcam, ainda que se desloque geograficamente.
A poesia da mediocridade
Juventude, o segundo livro da trilogia, nos mostra
Coetzee no início de seus 20 anos, recém-formado em uma Faculdade de
Matemática, tentando levar a vida adulta e dar os primeiros passos como
escritor em Londres. Se o personagem se sentia uma figura inadequada em sua
terra natal, a África do Sul, a Inglaterra também está longe de ser um lugar
onde se sinta acolhido. No lar dos colonizadores, Coetzee é apenas mais um
estrangeiro, mais um refugiado alerta que está tentando escapar do contexto
tumultuoso de seu país de origem. Além das primeiras relações com o sexo
oposto, sempre marcadas por uma frieza que se manterá pelo restante da
trilogia, surge aqui um diálogo mais explícito com as principais influências
literárias presentes na formação do escritor. Autores como T. S. Eliot, Ezra
Pound, Pablo Neruda e Ford Madox Ford exercem sobre o jovem Coetzee um fascínio
que vai além das letras. O aspirante a escritor sul-africano procura nessas
figuras a excepcionalidade de suas personalidades na tentativa de entender o que
faz do artista uma figura tão acima de todos os outros e de que modo ele mesmo
pode vir a ser um.

O principal mote deste segundo livro é, portanto, o embate
do protagonista com esse mito romântico do escritor como gênio distinto. Por
todos os lados ele passa a procurar a inspiração definitiva, aquele momento de
suprema epifania em que as portas da percepção se abrirão e ele enfim se
tornará um grande escritor, um exímio transfigurador da experiência. Para ter
acesso a esse tipo de revelação, é preciso deixar para trás as preocupações
demasiado mundanas da política sul-africana e do apartheid. Tampouco há
espaço para cultivar relações interpessoais que não tragam nenhum tipo de ganho
que, em última instância, possa ser convertido para o fim que tem em mente. A
própria opção pelo curso de Matemática aponta no jovem John o apego pelo
abstracionismo e pelo “pensamento puro”. Diante desse entusiasmo, as
turbulências políticas da África do Sul, como disse, são uma distração de que o
personagem precisa fugir, entretanto apenas para se deparar, em Londres, com o
peso da vida prática da qual não há escapatória: arrumar um emprego, uma
moradia etc. É sintomático que suas primeiras experiências de trabalho sejam
como programador, emprego no qual aparentemente consegue se cercar pelos
cordões de isolamento das frias operações lógicas, apenas para descobrir que
suas funções têm relações importantes e imprevistas com os esforços ingleses no
âmbito da Guerra Fria. A política se imiscui em tudo, por mais que se tente
fugir dela.
O caso do personagem parece ser o do jovem intoxicado de
literatura e de devaneios românticos, o jovem cuja visão de tudo e de todos ao
seu redor é mistificada por um véu de idealização através do qual cada
experiência precisa ser arrebatadora e exageradamente intensa. Seu temperamento
melancólico só se acentua à medida que, contra esse ideal do escritor em sua
torre de marfim, se instala a mais pura e simples mediocridade de sua vida
cotidiana. Sem amigos, sem namoradas, ele tenta (último golpe dos vaidosos)
fazer da própria tristeza o corcel que o arrebatará da vida ordinária aos
píncaros sublimes da grande arte. Quando essa obsessão por transcendência ocupa
o centro da narrativa, o romance perde força, especialmente em comparação com Infância,
a primeira parte. Longe da África do Sul, é como se o texto perdesse um pouco
daquela qualidade dialógica que imbuía cada linha de um significado dúbio,
mediado pela relação entre o indivíduo e a totalidade social. Impera no lugar a
visão cada vez mais estreita e vacilante de seu protagonista confuso, com um
texto que abunda em orações interrogativas.
Ainda assim, é interessante observar a manutenção de um
estilo particular em Coetzee. O projeto mantém, nas três partes, uma estrutura
de descontinuidade, cujo efeito afasta a ideia de um romance biográfico em
moldes proustianos, em que os acontecimentos vêm à tona a partir de associações
específicas que se presentificam na vida de um sujeito que relembra. Na escrita
do autor africano, ainda que se mantenha a linearidade temporal, prefere-se a
narração direta dos fatos à indicação explícita de sua sucessão. A preferência
pelo presente como tempo da ação, aliada a um uso ubíquo do discurso indireto
livre, cria uma intimidade palpável entre o leitor e o personagem.
Cada acontecimento, na medida em que se singulariza numa
linha temporal linear mas descontínua, é vivido como único, como igualmente
importante na vida do personagem. Não uma consciência que presentifica o
passado a partir de um ponto de vista que se coloca à frente da experiência,
analisando-a com um sorriso cínico (aqui também longe de Proust), mas uma
consciência que dá autonomia ao vivido por entender que cada momento tem a sua
verdade. A literatura de Coetzee em Cenas da vida na província, mas
também em um romance como Desonra, por exemplo, não se estrutura
nitidamente como uma literatura de causas e consequências, mas simplesmente
como uma sucessão de consequências cuja grande causa está sempre a se
desenrolar sub-repticiamente a partir do turbulento contexto político sul-africano,
que jamais se perde de vista, por fazer parte constituinte de seus personagens.
“E qual o desfecho dessa falta de calor, dessa falta de
coração? O desfecho é que está sentado sozinho na tarde de domingo no quarto de
cima de uma casa no fundo do campo de Berkshire, com corvos crocitando no campo
e uma névoa cinzenta no céu, jogando xadrez sozinho, ficando velho, esperando a
noite cair para, sem nenhuma culpa, fritar suas linguiças para comer com pão no
jantar. Aos dezoito anos, podia ter sido um poeta. Agora não é um poeta, nem um
escritor, nem um artista. É um programador de computador, um programador de
computador de vinte e quatro anos num mundo em que não existem programadores de
computador de trinta anos. Trinta e um é velho demais para ser programador; a
pessoa se volta para alguma outra coisa — algum tipo de empresariado — ou se
mata” (Coetzee, 2025, p. 358-359).
O grande passo que John Coetzee gostaria de dar para se
tornar um grande escritor, aquele que ele imaginou como o momento da grande
virada de sua vida, envolve, na verdade, o reconhecimento da mais pura
banalidade do ato da escrita. O caminho é, na verdade, o inverso: não são
grandes pessoas que fazem grande literatura, é a grande literatura que faz
grandes pessoas. É a trajetória que Cenas da vida na província como um
todo parece construir. Talvez menos que o simples relato de uma vida, trata-se
do testemunho em ato de um escritor tomando pleno domínio do seu ofício,
chegando à conclusão de que por mais que se deem voltas e voltas em torno de si
mesmo, o verdadeiro grande passo é sempre um salto radical em direção ao outro,
um exercício de alteridade. Não é tanto o personagem John Coetzee que aprende
algo novo a cada livro, mas a própria concepção de literatura que parece se
modificar, para o bem ou para o mal.
Autrebiographie
Chega-se assim ao terceiro e último livro, Verão, o
livro em que o autor dá o maior salto imaginativo da trilogia, criando uma
moldura ficcional muito mais nítida que nos outros livros. Nesta última parte,
um homem inglês apenas chamado de Mr. Vincent está conduzindo várias
entrevistas e reunindo material para escrever uma biografia do falecido
escritor John Maxwell Coetzee, primeiro a ganhar duas vezes o Man Booker Prize
e vencedor do Nobel. As pessoas entrevistadas são principalmente mulheres que
tiveram algum tipo de relação com Coetzee, seja relações amorosas ou apenas de
amizade, mas há também o relato de um colega que trabalhou com Coetzee durante
o período em que este deu aulas na Universidade da Cidade do Cabo.
A temporalidade abarcada é a da década de 1970, quando o
escritor voltou à África do Sul para morar com seu debilitado pai, já depois da
morte de sua mãe. Além das entrevistas, são apresentados alguns fragmentos de
Coetzee reunidos por Mr. Vincent em sua pesquisa e que, na visão do biógrafo,
provavelmente integrariam a terceira parte de seu projeto autobiográfico. Essa
alternância entre os relatos das pessoas entrevistadas, sempre de pontos de
vista muito particulares, e os fragmentos no estilo mais enxuto e direto de
Coetzee dá ao texto uma vivacidade não vista nos outros livros. Atesta, acima
de tudo, o pleno domínio de diferentes registros narrativos por parte do autor,
que precisa manejar, aqui, as particularidades de diferentes personagens sem
perder de vista o enquadramento ficcional a que o livro está submetido.
O retrato de Coetzee que emerge dessas diferentes visões é
extremamente sincero, sinceridade que, do ponto de vista do próprio Coetzee,
parece flertar com a autodepreciação. Para todas as mulheres entrevistadas com
quem Coetzee teve alguma relação, o escritor era um homem extremamente frio,
desajeitado, desprovido de qualquer ardor ou sensualidade. O que talvez seja
ainda mais duro: para todas as pessoas que relatam seus momentos vividos com o
autor, ele parece ter ocupado um lugar apenas de coadjuvante, sem grande
importância em suas vidas. Nesse sentido, talvez a narrativa mais contundente
seja a da brasileira Adriana Nascimento, por quem Coetzee parece ter nutrido
uma paixão não correspondida. Adriana era uma bailarina que, junto com o
marido, havia ido parar na África do Sul em fuga do Regime Militar brasileiro
na década de 1970. Já no país africano, seu marido, trabalhando como segurança,
sofreu um terrível ataque a machadadas de assaltantes. Após o ataque, Mário, o
marido, fica em coma por um bom período antes de morrer no hospital. É nesse
período em que seu marido está em coma que Adriana conhece Coetzee, que é
professor de inglês de sua filha mais nova.
Adriana é uma das personagens mais marcantes de toda a
trilogia. A maneira dura e altiva com que responde às perguntas de Mr. Vincent
faz uma figura pouco digna não só de Coetzee, mas também da própria África do
Sul, lugar que para ela representa a tristeza da morte do marido e o abandono
do exílio. Muito mais preocupada em cuidar das filhas e manter a casa de pé
depois da ausência de Mário, Adriana é sempre ríspida contra as investidas
amorosas que Coetzee faz. Várias das cartas que ele a envia apenas joga fora ou
guarda sem ler.
“Mr. Vincent, a seus olhos, John Coetzee é um grande
escritor e um herói, eu admito isso, senão por que o senhor estaria aqui, por
que mais estaria escrevendo esse livro? Para mim, por outro lado — desculpe
dizer isso, mas ele está morto, então não vou magoar os sentimentos dele —,
para mim ele não é nada. Ele não é nada, não foi nada, só uma irritação, um
estorvo. Ele não era nada e as palavras dele não eram nada. Estou vendo que
está chateado comigo porque estou fazendo ele parecer um bobo. Mas para mim ele
realmente foi um bobo” (Coetzee, 2025, p. 550-551).
Sophie Denöel, uma professora francesa que teve um breve
relacionamento extraconjugal com Coetzee, também faz afirmações similares: “Sei
que ele tem muitos admiradores; ele não ganhou o prêmio Nobel por nada; e é
claro que o senhor não estaria aqui hoje, fazendo essa pesquisa, se não achasse
que ele é um escritor importante. Mas para falar a sério por um momento,
durante todo o tempo que estive com ele, nunca tive a sensação de estar com uma
pessoa excepcional, com um ser humano verdadeiramente excepcional (Coetzee,
2024, p. 595).
O que se concretiza é o caminho que os outros dois livros, Infância
e Juventude, vinham delineando, isto é, a percepção de que, muito mais
do que a narrativa de uma sucessão de experiências ordinárias, é a literatura
de um escritor que diz muito mais sobre ele. Para Coetzee, é sua capacidade
imaginativa e o alcance de sua alteridade que verdadeiramente mostram a
humanidade por trás de uma superfície desagradável a quase todos. Num universo
literário de uns anos para cá tão marcado por um certo umbiguismo inexpressivo,
é exemplar o caminho que Coetzee encontra para falar de si mesmo. No lugar de
submeter a ficção aos próprios desígnios, perdendo de vista o trabalho com a
forma literária (atitude dos que se acham importantes demais), valoriza o
esforço imaginativo e uma perspectiva descentralizada. Sincero acima de tudo,
Coetzee aposta, como os grandes, na imortalidade.
______
Cenas da vida na província (Infância, Juventude, Verão)
J. M. Coetzee
José Rubens Siqueira; Luiz Roberto Mendes Gonçalves (Trads.)
Companhia das Letras, 2025
624p.
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