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Figl-Migl. Foto: Guy Johansson |
I
A abertura deste poderia ser uma
expressão como “os anos passam, os bons livros ficam”, porém cada vez mais
vemos livros sendo proibidos, tirados de circulação, censurados e até
destruídos. Então será que os bons livros de fato ficam ou apenas
estão
ficando? Esse apagamento do passado parece marcado pela suspeição e pelo medo,
como uma tumba que, aberta, pode revelar algum tipo de maldição ou vírus
desconhecido. Em certo sentido, podemos dizer que é uma parte importante do
trabalho dos intelectuais a preservação dessa fortuna cultural que se encontra
em constante xeque.
No entanto, aceitar a ideia de uma
literatura canônica sem quaisquer ressalvas seria ignorar as importantes
discussões que vêm sendo feitas nas últimas décadas acerca das bases
excludentes desse conceito. Diversas culturas são excluídas disso que se
convencionou chamar de cânone, criado como uma espécie de legitimação do domínio
cultural eurocêntrico. O século XXI trouxe consigo fortes críticas a essa
questão e, em alguma medida, já podemos perceber certo desconforto com esse
passado cultural, ainda que isso se manifeste de maneira muito diversa entre
estudiosos de literatura do século XIX, por exemplo.
Claro que isso deve muito à
incompatibilidade entre os valores contemporâneos e os antigos; ou seja, hoje
em dia uma pessoa de sensibilidade saudável certamente sente-se mal ao ler
sobre um escravizado sendo maltratado apenas pela cor de sua pele, enquanto
isso era considerado normal pela maioria em outros tempos. Também é preciso
levar em conta que a ânsia pelo novo, um dos motores da modernidade, rejeita a
convivência com o passado, por sua vez tomado como descartável justamente por
já não ser novidade. Porém, a nosso ver, há algo mais que também se esconde por
trás dessa rejeição, algo talvez menos intenso, mas ainda assim presente.
Por mais que precisemos reexaminar
esse passado pelas lentes do presente, é imprescindível que a postura não seja
de rejeição, mas de compreensão, de busca por entender os caminhos que foram
tomados para que chegássemos ao que vemos hoje. Em termos literários, seria um
erro deixar de levar em conta que nossas obras contemporâneas nasceram e devem
muito a todo esse material cultural que o passado nos legou. Não se trata de
uma perspectiva que vê o sistema literário como uma progressão linear, afinal
qualquer recorte sincrônico mostrará diversas tendências literárias e disputas
internas em operação. Nesse sentido, a busca pela compreensão da complexidade
da nossa herança cultural é uma das mais prementes tarefas na educação estética,
especialmente no que esse legado tem de contraditório, suas aspirações e,
claro, limitações. Talvez mais importante que isso seja que o seu
reconhecimento nos permite, não aceitar o passado violento da nossa história, mas
reconhecer as manifestações contemporâneas dessa tensão entre passado e
presente. E é justamente neste ponto que gostaríamos de nos deter.
Embora haja muitos casos brasileiros
que poderíamos escolher, optamos por atravessar o oceano para buscar, na
Rússia, um caso duplamente interessante de como se manifesta artisticamente
isso que vínhamos discutindo até aqui. Trata-se do conto “Pálido anjo” («Бледный
ангел»), da escritora russa contemporânea Figl-Migl (lê-se “Figlh Miglh”). Dizemos
duplamente interessante, pois, em primeiro lugar, demonstra que não se trata de
uma crise apenas local, da nossa cultura brasileira, e sim muito mais ampla,
internacional, senão típica da contemporaneidade. Em segundo, porque nesse
conto passado e presente se misturam e dão origem a uma nova forma.
Antes de passarmos para a discussão
do conto em si, parece-nos imprescindível começar pela apresentação da própria
autora, uma vez que ela é praticamente desconhecida no Brasil.
II
Ekaterina Aleksándrovna Tchebotarióva
(1970 – ) nasceu em São Petersburgo e se dedica à escrita de ensaios e de
ficção, especialmente em prosa. Sua obra ficcional pode ser inserida na vertente
pós-moderna, cujos principais iniciadores em solo russo foram Sacha Sokolov e
Vladimir Sorókin. Embora Figl-Migl não tenha sido traduzida para o português
ainda, ela já publicou cinco romances, que foram recebidos de maneira bastante
positiva. Um deles,
Lobos e ursos (
Волки и медведи), recebeu o
prêmio russo Bestseller Nacional em 2013 e o seu
Filicidade (
Щастье)
1
tornou-se uma espécie de livro cult, muito lido e adorado pelos leitores.
Sem sabermos dessas informações,
talvez a primeira característica que nos chame a atenção é o uso do pseudônimo
Figl-Migl. Apesar da sonoridade engraçada, não se trata de um som aleatório,
pois tem significado em russo: é uma forma bastante antiquada de se referir a
brincadeiras, truques. Assim, o
nom de plume poderia ser traduzido como
“traquinas”, “traquinagens” ou algo do tipo. Assim, essa escolha é muito
acertada, pois já adianta ao leitor que a obra seria, e de fato é, marcada pelo
humor, pela brincadeira; e suas obras ficcionais de maior fôlego são sátiras,
distopias ou paródias. Contudo não estamos diante de uma coletânea de anedotas,
mas de uma ironia bastante fina e até certo
non sense.
Ainda no tópico do pseudônimo, vale
ressaltar que por muito tempo não se soube quem era essa autora. Quando começou
a escrever, em 1995, Figl-Migl era apenas uma pessoa desconhecida do grande
público que colaborava com revistas literárias, e chegou a publicar dezenas de
ensaios, contos e até dois romances antes de ter sua identidade revelada.
O mistério só foi resolvido em 2013,
quando romance
Lobos e ursos venceu o prêmio já mencionado. A cerimônia se
tornou um verdadeiro acontecimento cultural, pois a essa altura a autora já
havia publicado três romances, diversas novelas e ensaios, e eis que finalmente
haveria um rosto para esse nome tão curioso, afinal, a pessoa deveria
comparecer à cerimônia para receber o prêmio. Todos aguardavam ansiosamente
pelo momento da entrega, e, quando chegou a hora, uma mulher morena alta,
magra, de cabelos morenos, vestido bege e grandes óculos escuros (que se
tornariam uma presença frequente em suas fotos) levanta, recebe o prêmio e sai
o mais rápido possível, sem dizer seu nome ou falar com a imprensa. Com o
tempo, Figl-Migl afirmou que sua relutância em tornar pública sua identidade se
dava por não querer que sua obra fosse lida a partir de seu gênero, o que em si
é muito significativo. Essa cerimônia dá início à aproximação da autora com
seus leitores, e graças a isso que hoje temos diversas informações sobre a sua
vida pessoal e visão de mundo, que nos ajudam a compreender sua obra.
III
Como uma autora que se filia ao Pós-modernismo
russo e que se dedica principalmente às sátiras, poderíamos supor que Figl-Migl
fosse rejeitar o passado cultural em favor de uma busca pela novidade, porém
sua obra nos indica uma relação mais complexa, mais dialética com esse
material. Isso fica bastante claro, a nosso ver, em seu interessante “Pálido
anjo” (“Бледный ангел”), conto publicado no “Cantinho esnobe” da revista
Nievá
(2006, n. 7), integrando um conjunto de título “Vinhetas para Dostoiévski” (“Виньетки
к Достоевскому”).
É importante frisar que, além dessa
menção evidente ao escritor russo do século XIX, há também a inversão do título
“Anjo pálido” (“Ангел бледный”), cântico de Valérii Briússov em louvor a um
anjo idealizado e inacessível. Apesar das interessantes conclusões a uma
análise contrastiva entre “Pálido anjo” e “Anjo pálido” possa chegar, não nos
deteremos sobre esse assunto por uma questão de espaço. Diremos apenas que, ao
inverter o título, Figl-Migl talvez aponte para o narrador-personagem do seu
conto e o rotule como um ser diametralmente oposto a essa idealização
religiosa, o que condiz com o tom da narrativa e com a descrição do
protagonista, como veremos adiante.
A menção feita a Dostoiévski no
título que encabeça as “Vinhetas” indica uma intenção da autora em dialogar com
esse passado cultural e seu capital simbólico, pela menção direta do autor de
Irmãos
Karamázov. Todavia não nos bastaria aceitar isso como um dado, pois é
possível que ele não se concretize de fato na obra. Por isso, nosso primeiro
passo será o de averiguar se esse projeto da autora se concretiza na obra.
Felizmente, isso é fácil no caso de “Pálido anjo”.
O conto se abre com uma frase
bastante específica (“No começo de julho, fazia um tempo terrivelmente quente,
à noite, saí do meu cubículo”)
2, que certamente seria reconhecida
por um leitor ávido da obra de Dostoiévski como a primeira frase de Crime e
castigo: “No começo de julho, fazia um tempo terrivelmente quente, à noite, um
jovem rapaz saiu do seu cubículo”. Apesar de notarmos uma mudança do foco
narrativo, que passa da terceira para a primeira pessoa, a semelhança é muito
grande para ser mera coincidência. Essa proximidade é reforçada praticamente a
cada linha e, por isso, fica evidente que o conto de Figl-Migl estabelece um
diálogo próximo com o romance protagonizado por Raskólnikov.
Quanto ao próprio conto de
Figl-Migl, poderíamos dizer, em linhas gerais, que “Pálido anjo” não tem uma
trama propriamente dita, pois não há um acontecimento marcante — como o
assassinato da velha usurária em
Crime e castigo. Pelo contrário, quase
não acontece qualquer evento relevante. O protagonista sem nome vaga por uma
cidade, que se supõe ser São Petersburgo a partir das poucas referências
geográficas presentes na obra. Porém, ao contrário do tipo
flâneur
oitocentista, o narrador-personagem de “Pálido anjo” não observa nem descreve o
seu ambiente, com o qual parece quase não ter relação, como se nota pelo
excerto: “Porém não saía por dias a fio e não queria trabalhar, sequer queria
comer, só ficava deitado, ficava ali deitado de propósito, por rancor. E ficava
pensando…”.
Esse descolamento da realidade
material geralmente implica a aproximação do universo interno do personagem e,
de fato, “Pálido anjo” é marcado por essa psicologização da narrativa (como
ocorre em alguns pontos de
Crime e castigo, por exemplo). Porém, isso só
se aplica em certa medida, pois a linguagem utilizada é extremamente
fragmentada, o que impede a percepção de uma linearidade discursiva ou mesmo de
um fluxo de consciência como em James Joyce ou Clarice Lispector. Isso se dá,
em parte, pela escrita do conto ter sido feita a partir de retalhos do romance,
porém o efeito estético predominante nos parece indicar menos a insuficiência
da própria linguagem para exprimir o ritmo dos pensamentos do que para uma
crise da autopercepção, trazida para o primeiro plano quando o narrador afirma
que seria atormentado pela ideia de que estaria enlouquecendo.
Poderíamos dizer que parte do
conflito, se é que há algum, é estabelecido dentro do próprio personagem, isso
é, entre ele e sua consciência, que o atormenta constantemente com uma
ansiedade difusa e pensamentos autodepreciativos, como encontramos no seguinte
excerto: “Escuta, eu disse para mim mesmo, você é um bom rapaz, mas você, além
de todos os seus defeitos, também é um mulherengo, eu bem sei, e ainda é dos
mais sujos. Você é uma porcaria nervosa e fraca, você é caprichoso e não
consegue refrear-se em nada — e é isso que eu chamo de lama, porque levará
direto à lama”. Em parte por esse constante embate psicológico, o personagem
está sempre às voltas com sua fraqueza física, ora beirando o desmaio ora
praticamente entrando em torpor.
À luz disso, podemos encontrar uma
espécie de síntese dessas questões abordadas por Figl-Migl na última frase do
conto: “O presente é uma preocupação sem objeto e sem objetivo, e o futuro um
sacrifício incessante pelo qual não se ganha nada — é isso que o mundo tinha
reservado para mim”. E, embora a frase também tenha sido retirada de
Crime e
castigo — das últimas páginas, aliás —, ela aponta para algo muito
diferente do que se nota em Dostoiévski. Não encontramos um Outro que sirva de
alento para os sofrimentos, pelo contrário, a relação com os outros é fonte de
mais tormento para o narrador: “Eu trocaria tudo no mundo para ficar sozinho,
mas eu mesmo sentia que não passaria nem um minuto sozinho”. Também não há
qualquer espécie de redenção do personagem, sequer seria possível, uma vez que
não há do que se arrepender, não há crimes, apenas castigos.
IV
Como já foi apontado pela crítica
especializada diversas vezes, o processo de criação desse conto transita entre
os procedimentos — para usar a terminologia russa — do
artesanato (
ремесла)
e do
pastiche (
пастиш). Isso significa que a autora recorta
trechos da obra original e os justapõe (pastiche), criando um texto novo; além
disso, esses excertos são modificados, alterados aqui e ali para caberem melhor
na narrativa que está sendo construída (artesanato). O leitor brasileiro pode
ter reconhecido certa semelhança com os procedimentos literários que Gilda de
Mello e Souza encontra em
Macunaíma e que a fundamental crítica
literária chamou de
variação e
suíte em seu célebre
O tupi e o
alaúde.
3 É interessante notar que a presença do procedimento
literário nos mostra uma semelhança estética nada óbvia entre as obras de Mário
de Andrade e Figl-Migl. Todavia, se observamos essa presença a contrapelo,
poderemos notar que há uma diferença profunda entre os dois no material
utilizado como fundamento para essa relação com o passado cultural.
Enquanto Mário de Andrade busca
incorporara ao seu texto elementos da cultura popular, das narrativas
etiológicas de povos indígenas, de lendas caipiras etc., Figl-Migl não segue o
caminho do Modernismo meio primitivista de Mário, buscando talvez as antigas
epopeias (
bylina) ou contos populares, e prefere parodiar justamente
Dostoiévski, um clássico da sua própria literatura nacional. E certamente há
nessa escolha de material para uma profunda análise, que nos toca fazer de
maneira bastante resumida: a presença do autor de
Crime e castigo pode
ser lida como um indício da, razoavelmente assente, filiação de Figl-Migl ao
Pós-modernismo russo.
4
Outra forma de compreender essa
escolha nasce do próprio capital simbólico de Dostoiévski, um autor que
produziu evidente impacto na história da literatura russa e cujas reverberações
são encontradas em praticamente todos os sistemas literários em que se nota sua
presença. É seguro supor que os autores russos contemporâneos, preocupados em
produzir literatura erudita, tenham de lidar com a sombra lançada pela obra
monumental de Fiódor Dostoiévski. Em certo sentido, portanto, a reiterada
derrisão dessa figura nos demonstra uma relação tensa entre o que se escreve
hoje e essa “expectativa” de se dar continuidade a essa tradição do Realismo
oitocentista russo.
Também é possível entender a escolha
desse autor como objeto de paródia pode ser encontrada em uma das principais
vertentes da fortuna crítica de Dostoiévski, que o vê como um autor moralista,
ou seja, um pensador preocupado com as questões morais do seu tempo e que as
introduz em suas obras literárias. O problema central é que algumas das conclusões
a que ele chega, muitas vezes, não são bem recebidas na contemporaneidade, já
traumatizada pelas Guerras Mundiais. Por isso, é comum que se rejeite certo
didatismo em Dostoiévski, tomando-o por idealização excessiva, como ocorre com
a ideia de irmandade plena entre os homens (
соборность). E uma das
formas artísticas de se apontar para essa incompatibilidade pode ser justamente
a paródia.
Por fim, podemos afirmar que a
relação entre presente e passado cultural é claramente posta em cena no conto
de Figl-Migl e, como dissemos, de uma maneira bastante tensa. Ao mesmo tempo em
que “Pálido anjo” é escrito a partir de
Crime e castigo, e portanto simbolicamente
nasce a partir dele, o diálogo que estabelece é de profunda oposição. Dessa
forma, o diálogo estabelecido por Figl-Migl nos faz repensar a solenidade que
expressões como “literatura canônica” ou “literatura clássica” têm em seu bojo.
Ainda assim, demonstra que o passado cultural não foi de todo descartado, nem
tem suas imperfeições e defeitos apagados, e sim revolvido, como solo que se
prepara para uma nova safra.
Notas
1 É interessante notar que o
neologismo em russo é bastante ambíguo, podendo significar uma escrita
oralizada de “felicidade” (счастье) ou uma derivação da escrita simplificada de
“agora” (сейчас / щас). Dessa forma, é preciso que o tradutor lusófono tem
diante de si uma dificuldade para transpor esse título.
2 A tradução dos excertos citados é
nossa, feita a partir da versão original já citada.
3 A nosso ver, essa semelhança
encontra respaldo, mas evitaremos um rumo excessivamente acadêmico, deixando a
discussão sobre essa semelhança para uma outra oportunidade.
4 Um dos exemplos mais imediatos, e
mais acessíveis ao leitor brasileiro, dessa tendência artística russa é
Dostoiévski-trip
(
Достоевский-трип, 1997), de Vladimir Sorókin, publicado aqui pela
Editora 34 em tradução de Arlete Cavaliere. A peça experimental utiliza
textualmente os principais personagens de
O idiota, e suas
características são gradualmente intensificadas até chegarem a um paroxismo
insustentável.
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