Deixa disso, camarada, me dá um clássico

Por Rafael Bonavina


Figl-Migl. Foto: Guy Johansson


I
 
A abertura deste poderia ser uma expressão como “os anos passam, os bons livros ficam”, porém cada vez mais vemos livros sendo proibidos, tirados de circulação, censurados e até destruídos. Então será que os bons livros de fato ficam ou apenas estão ficando? Esse apagamento do passado parece marcado pela suspeição e pelo medo, como uma tumba que, aberta, pode revelar algum tipo de maldição ou vírus desconhecido. Em certo sentido, podemos dizer que é uma parte importante do trabalho dos intelectuais a preservação dessa fortuna cultural que se encontra em constante xeque.
 
No entanto, aceitar a ideia de uma literatura canônica sem quaisquer ressalvas seria ignorar as importantes discussões que vêm sendo feitas nas últimas décadas acerca das bases excludentes desse conceito. Diversas culturas são excluídas disso que se convencionou chamar de cânone, criado como uma espécie de legitimação do domínio cultural eurocêntrico. O século XXI trouxe consigo fortes críticas a essa questão e, em alguma medida, já podemos perceber certo desconforto com esse passado cultural, ainda que isso se manifeste de maneira muito diversa entre estudiosos de literatura do século XIX, por exemplo.
 
Claro que isso deve muito à incompatibilidade entre os valores contemporâneos e os antigos; ou seja, hoje em dia uma pessoa de sensibilidade saudável certamente sente-se mal ao ler sobre um escravizado sendo maltratado apenas pela cor de sua pele, enquanto isso era considerado normal pela maioria em outros tempos. Também é preciso levar em conta que a ânsia pelo novo, um dos motores da modernidade, rejeita a convivência com o passado, por sua vez tomado como descartável justamente por já não ser novidade. Porém, a nosso ver, há algo mais que também se esconde por trás dessa rejeição, algo talvez menos intenso, mas ainda assim presente.
 
Por mais que precisemos reexaminar esse passado pelas lentes do presente, é imprescindível que a postura não seja de rejeição, mas de compreensão, de busca por entender os caminhos que foram tomados para que chegássemos ao que vemos hoje. Em termos literários, seria um erro deixar de levar em conta que nossas obras contemporâneas nasceram e devem muito a todo esse material cultural que o passado nos legou. Não se trata de uma perspectiva que vê o sistema literário como uma progressão linear, afinal qualquer recorte sincrônico mostrará diversas tendências literárias e disputas internas em operação. Nesse sentido, a busca pela compreensão da complexidade da nossa herança cultural é uma das mais prementes tarefas na educação estética, especialmente no que esse legado tem de contraditório, suas aspirações e, claro, limitações. Talvez mais importante que isso seja que o seu reconhecimento nos permite, não aceitar o passado violento da nossa história, mas reconhecer as manifestações contemporâneas dessa tensão entre passado e presente. E é justamente neste ponto que gostaríamos de nos deter.
 
Embora haja muitos casos brasileiros que poderíamos escolher, optamos por atravessar o oceano para buscar, na Rússia, um caso duplamente interessante de como se manifesta artisticamente isso que vínhamos discutindo até aqui. Trata-se do conto “Pálido anjo” («Бледный ангел»), da escritora russa contemporânea Figl-Migl (lê-se “Figlh Miglh”). Dizemos duplamente interessante, pois, em primeiro lugar, demonstra que não se trata de uma crise apenas local, da nossa cultura brasileira, e sim muito mais ampla, internacional, senão típica da contemporaneidade. Em segundo, porque nesse conto passado e presente se misturam e dão origem a uma nova forma.
 
Antes de passarmos para a discussão do conto em si, parece-nos imprescindível começar pela apresentação da própria autora, uma vez que ela é praticamente desconhecida no Brasil.
 
II
 
Ekaterina Aleksándrovna Tchebotarióva (1970 – ) nasceu em São Petersburgo e se dedica à escrita de ensaios e de ficção, especialmente em prosa. Sua obra ficcional pode ser inserida na vertente pós-moderna, cujos principais iniciadores em solo russo foram Sacha Sokolov e Vladimir Sorókin. Embora Figl-Migl não tenha sido traduzida para o português ainda, ela já publicou cinco romances, que foram recebidos de maneira bastante positiva. Um deles, Lobos e ursos (Волки и медведи), recebeu o prêmio russo Bestseller Nacional em 2013 e o seu Filicidade (Щастье)1 tornou-se uma espécie de livro cult, muito lido e adorado pelos leitores.
 
Sem sabermos dessas informações, talvez a primeira característica que nos chame a atenção é o uso do pseudônimo Figl-Migl. Apesar da sonoridade engraçada, não se trata de um som aleatório, pois tem significado em russo: é uma forma bastante antiquada de se referir a brincadeiras, truques. Assim, o nom de plume poderia ser traduzido como “traquinas”, “traquinagens” ou algo do tipo. Assim, essa escolha é muito acertada, pois já adianta ao leitor que a obra seria, e de fato é, marcada pelo humor, pela brincadeira; e suas obras ficcionais de maior fôlego são sátiras, distopias ou paródias. Contudo não estamos diante de uma coletânea de anedotas, mas de uma ironia bastante fina e até certo non sense.
 
Ainda no tópico do pseudônimo, vale ressaltar que por muito tempo não se soube quem era essa autora. Quando começou a escrever, em 1995, Figl-Migl era apenas uma pessoa desconhecida do grande público que colaborava com revistas literárias, e chegou a publicar dezenas de ensaios, contos e até dois romances antes de ter sua identidade revelada.
 
O mistério só foi resolvido em 2013, quando romance Lobos e ursos venceu o prêmio já mencionado. A cerimônia se tornou um verdadeiro acontecimento cultural, pois a essa altura a autora já havia publicado três romances, diversas novelas e ensaios, e eis que finalmente haveria um rosto para esse nome tão curioso, afinal, a pessoa deveria comparecer à cerimônia para receber o prêmio. Todos aguardavam ansiosamente pelo momento da entrega, e, quando chegou a hora, uma mulher morena alta, magra, de cabelos morenos, vestido bege e grandes óculos escuros (que se tornariam uma presença frequente em suas fotos) levanta, recebe o prêmio e sai o mais rápido possível, sem dizer seu nome ou falar com a imprensa. Com o tempo, Figl-Migl afirmou que sua relutância em tornar pública sua identidade se dava por não querer que sua obra fosse lida a partir de seu gênero, o que em si é muito significativo. Essa cerimônia dá início à aproximação da autora com seus leitores, e graças a isso que hoje temos diversas informações sobre a sua vida pessoal e visão de mundo, que nos ajudam a compreender sua obra.
 
III
 
Como uma autora que se filia ao Pós-modernismo russo e que se dedica principalmente às sátiras, poderíamos supor que Figl-Migl fosse rejeitar o passado cultural em favor de uma busca pela novidade, porém sua obra nos indica uma relação mais complexa, mais dialética com esse material. Isso fica bastante claro, a nosso ver, em seu interessante “Pálido anjo” (“Бледный ангел”), conto publicado no “Cantinho esnobe” da revista Nievá (2006, n. 7), integrando um conjunto de título “Vinhetas para Dostoiévski” (“Виньетки к Достоевскому”).
 
É importante frisar que, além dessa menção evidente ao escritor russo do século XIX, há também a inversão do título “Anjo pálido” (“Ангел бледный”), cântico de Valérii Briússov em louvor a um anjo idealizado e inacessível. Apesar das interessantes conclusões a uma análise contrastiva entre “Pálido anjo” e “Anjo pálido” possa chegar, não nos deteremos sobre esse assunto por uma questão de espaço. Diremos apenas que, ao inverter o título, Figl-Migl talvez aponte para o narrador-personagem do seu conto e o rotule como um ser diametralmente oposto a essa idealização religiosa, o que condiz com o tom da narrativa e com a descrição do protagonista, como veremos adiante.
 
A menção feita a Dostoiévski no título que encabeça as “Vinhetas” indica uma intenção da autora em dialogar com esse passado cultural e seu capital simbólico, pela menção direta do autor de Irmãos Karamázov. Todavia não nos bastaria aceitar isso como um dado, pois é possível que ele não se concretize de fato na obra. Por isso, nosso primeiro passo será o de averiguar se esse projeto da autora se concretiza na obra. Felizmente, isso é fácil no caso de “Pálido anjo”.
 
O conto se abre com uma frase bastante específica (“No começo de julho, fazia um tempo terrivelmente quente, à noite, saí do meu cubículo”)2, que certamente seria reconhecida por um leitor ávido da obra de Dostoiévski como a primeira frase de Crime e castigo: “No começo de julho, fazia um tempo terrivelmente quente, à noite, um jovem rapaz saiu do seu cubículo”. Apesar de notarmos uma mudança do foco narrativo, que passa da terceira para a primeira pessoa, a semelhança é muito grande para ser mera coincidência. Essa proximidade é reforçada praticamente a cada linha e, por isso, fica evidente que o conto de Figl-Migl estabelece um diálogo próximo com o romance protagonizado por Raskólnikov.
 
Quanto ao próprio conto de Figl-Migl, poderíamos dizer, em linhas gerais, que “Pálido anjo” não tem uma trama propriamente dita, pois não há um acontecimento marcante — como o assassinato da velha usurária em Crime e castigo. Pelo contrário, quase não acontece qualquer evento relevante. O protagonista sem nome vaga por uma cidade, que se supõe ser São Petersburgo a partir das poucas referências geográficas presentes na obra. Porém, ao contrário do tipo flâneur oitocentista, o narrador-personagem de “Pálido anjo” não observa nem descreve o seu ambiente, com o qual parece quase não ter relação, como se nota pelo excerto: “Porém não saía por dias a fio e não queria trabalhar, sequer queria comer, só ficava deitado, ficava ali deitado de propósito, por rancor. E ficava pensando…”.
 
Esse descolamento da realidade material geralmente implica a aproximação do universo interno do personagem e, de fato, “Pálido anjo” é marcado por essa psicologização da narrativa (como ocorre em alguns pontos de Crime e castigo, por exemplo). Porém, isso só se aplica em certa medida, pois a linguagem utilizada é extremamente fragmentada, o que impede a percepção de uma linearidade discursiva ou mesmo de um fluxo de consciência como em James Joyce ou Clarice Lispector. Isso se dá, em parte, pela escrita do conto ter sido feita a partir de retalhos do romance, porém o efeito estético predominante nos parece indicar menos a insuficiência da própria linguagem para exprimir o ritmo dos pensamentos do que para uma crise da autopercepção, trazida para o primeiro plano quando o narrador afirma que seria atormentado pela ideia de que estaria enlouquecendo.
 
Poderíamos dizer que parte do conflito, se é que há algum, é estabelecido dentro do próprio personagem, isso é, entre ele e sua consciência, que o atormenta constantemente com uma ansiedade difusa e pensamentos autodepreciativos, como encontramos no seguinte excerto: “Escuta, eu disse para mim mesmo, você é um bom rapaz, mas você, além de todos os seus defeitos, também é um mulherengo, eu bem sei, e ainda é dos mais sujos. Você é uma porcaria nervosa e fraca, você é caprichoso e não consegue refrear-se em nada — e é isso que eu chamo de lama, porque levará direto à lama”. Em parte por esse constante embate psicológico, o personagem está sempre às voltas com sua fraqueza física, ora beirando o desmaio ora praticamente entrando em torpor.
 
À luz disso, podemos encontrar uma espécie de síntese dessas questões abordadas por Figl-Migl na última frase do conto: “O presente é uma preocupação sem objeto e sem objetivo, e o futuro um sacrifício incessante pelo qual não se ganha nada — é isso que o mundo tinha reservado para mim”. E, embora a frase também tenha sido retirada de Crime e castigo — das últimas páginas, aliás —, ela aponta para algo muito diferente do que se nota em Dostoiévski. Não encontramos um Outro que sirva de alento para os sofrimentos, pelo contrário, a relação com os outros é fonte de mais tormento para o narrador: “Eu trocaria tudo no mundo para ficar sozinho, mas eu mesmo sentia que não passaria nem um minuto sozinho”. Também não há qualquer espécie de redenção do personagem, sequer seria possível, uma vez que não há do que se arrepender, não há crimes, apenas castigos.
 
IV
 
Como já foi apontado pela crítica especializada diversas vezes, o processo de criação desse conto transita entre os procedimentos — para usar a terminologia russa — do artesanato (ремесла) e do pastiche (пастиш). Isso significa que a autora recorta trechos da obra original e os justapõe (pastiche), criando um texto novo; além disso, esses excertos são modificados, alterados aqui e ali para caberem melhor na narrativa que está sendo construída (artesanato). O leitor brasileiro pode ter reconhecido certa semelhança com os procedimentos literários que Gilda de Mello e Souza encontra em Macunaíma e que a fundamental crítica literária chamou de variação e suíte em seu célebre O tupi e o alaúde.3 É interessante notar que a presença do procedimento literário nos mostra uma semelhança estética nada óbvia entre as obras de Mário de Andrade e Figl-Migl. Todavia, se observamos essa presença a contrapelo, poderemos notar que há uma diferença profunda entre os dois no material utilizado como fundamento para essa relação com o passado cultural.
 
Enquanto Mário de Andrade busca incorporara ao seu texto elementos da cultura popular, das narrativas etiológicas de povos indígenas, de lendas caipiras etc., Figl-Migl não segue o caminho do Modernismo meio primitivista de Mário, buscando talvez as antigas epopeias (bylina) ou contos populares, e prefere parodiar justamente Dostoiévski, um clássico da sua própria literatura nacional. E certamente há nessa escolha de material para uma profunda análise, que nos toca fazer de maneira bastante resumida: a presença do autor de Crime e castigo pode ser lida como um indício da, razoavelmente assente, filiação de Figl-Migl ao Pós-modernismo russo.4
 
Outra forma de compreender essa escolha nasce do próprio capital simbólico de Dostoiévski, um autor que produziu evidente impacto na história da literatura russa e cujas reverberações são encontradas em praticamente todos os sistemas literários em que se nota sua presença. É seguro supor que os autores russos contemporâneos, preocupados em produzir literatura erudita, tenham de lidar com a sombra lançada pela obra monumental de Fiódor Dostoiévski. Em certo sentido, portanto, a reiterada derrisão dessa figura nos demonstra uma relação tensa entre o que se escreve hoje e essa “expectativa” de se dar continuidade a essa tradição do Realismo oitocentista russo.
 
Também é possível entender a escolha desse autor como objeto de paródia pode ser encontrada em uma das principais vertentes da fortuna crítica de Dostoiévski, que o vê como um autor moralista, ou seja, um pensador preocupado com as questões morais do seu tempo e que as introduz em suas obras literárias. O problema central é que algumas das conclusões a que ele chega, muitas vezes, não são bem recebidas na contemporaneidade, já traumatizada pelas Guerras Mundiais. Por isso, é comum que se rejeite certo didatismo em Dostoiévski, tomando-o por idealização excessiva, como ocorre com a ideia de irmandade plena entre os homens (соборность). E uma das formas artísticas de se apontar para essa incompatibilidade pode ser justamente a paródia.
 
Por fim, podemos afirmar que a relação entre presente e passado cultural é claramente posta em cena no conto de Figl-Migl e, como dissemos, de uma maneira bastante tensa. Ao mesmo tempo em que “Pálido anjo” é escrito a partir de Crime e castigo, e portanto simbolicamente nasce a partir dele, o diálogo que estabelece é de profunda oposição. Dessa forma, o diálogo estabelecido por Figl-Migl nos faz repensar a solenidade que expressões como “literatura canônica” ou “literatura clássica” têm em seu bojo. Ainda assim, demonstra que o passado cultural não foi de todo descartado, nem tem suas imperfeições e defeitos apagados, e sim revolvido, como solo que se prepara para uma nova safra.
 
Notas
 
1 É interessante notar que o neologismo em russo é bastante ambíguo, podendo significar uma escrita oralizada de “felicidade” (счастье) ou uma derivação da escrita simplificada de “agora” (сейчас / щас). Dessa forma, é preciso que o tradutor lusófono tem diante de si uma dificuldade para transpor esse título.
 
2 A tradução dos excertos citados é nossa, feita a partir da versão original já citada.
 
3 A nosso ver, essa semelhança encontra respaldo, mas evitaremos um rumo excessivamente acadêmico, deixando a discussão sobre essa semelhança para uma outra oportunidade.
 
4 Um dos exemplos mais imediatos, e mais acessíveis ao leitor brasileiro, dessa tendência artística russa é Dostoiévski-trip (Достоевский-трип, 1997), de Vladimir Sorókin, publicado aqui pela Editora 34 em tradução de Arlete Cavaliere. A peça experimental utiliza textualmente os principais personagens de O idiota, e suas características são gradualmente intensificadas até chegarem a um paroxismo insustentável.

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