Ivan Klíma, resistir contra os totalitarismos com uma dose de esperança

Ivan Klíma. Foto: David Konečný



Ivan Klíma, nascido em Praga em 1931, descobriu que seus pais eram judeus depois da ocupação da Tchecoslováquia pelas tropas de Hitler. “Meus pais precisaram rejeitavar não apenas a religião, mas também sua identidade judaica. E já até o início da guerra, eu sequer tinha ouvido a palavra judeu, nem mesmo como um insulto.” Com a eclosão da guerra, ele foi forçado a usar a Estrela de Davi no peito com a palavra judeu escrita. O pequeno Ivan se trancou em casa e começou a ler sem parar.  Enquanto isso, uma proibição após a outra surgia. Primeiro, não era permitido sair da cidade, depois não era mais permitido ir ao teatro, ao cinema, à escola, ao parque... nem mesmo andar no primeiro vagão do trem.
 
E veio o campo de concentração. Ao ingressar em Terezín — a 80km de Praga —, ele se tornou um verdadeiro prisioneiro. Perdeu seu nome e passou a ser identificado com o código L54. Seu interesse pela literatura se solidificou ali. “A primeira coisa que escrevi foi um poema sobre o suicídio e três textos curtos sobre Praga. Escrevi-os durante as aulas que frequentei no campo durante dois meses. Foi minha única experiência escolar durante a guerra.” Durante a prisão em Terezín, o escritor testemunhou o quão baixo o ser humano pode chegar: “Quando um regime criminoso viola a lei, quando aqueles acima da lei tentam privar os outros de sua dignidade e direitos básicos, a moral destes é profundamente afetada.”
 
De então, Klíma aprendeu a conviver com a presença constante da morte. As pessoas morriam ao lado de onde dormia. Morriam às dezenas. “Transportes de cadáveres desfilavam pela minha infância, eram muitos os carros funerários com caixões de madeira sem pintura, carroças empurradas e puxadas pelas mesmas pessoas que acabariam nessas mesmas carroças. Todos os dias eu lia as longas listas que incluíam os nomes daqueles que não tinham chegado vivos na manhã seguinte.” Para quem sempre aprendeu a ver uma nesga de esperança em tudo, no campo de concentração ao menos não era tratado pelo escárnio contínuo de quando foi obrigado a usar a estrela amarela em Praga. 
 
Aos 14 anos, após três anos e meio no campo, a libertação aconteceu. É quando renasce com o sobrenome que o fez reconhecido: Klíma foi adotado pela família para escapar do germânico Kauders, como fizeram muitos judeus que sobreviveram ao Holocausto. Quando Ivan Klíma deixou aquele inferno determinado a se tornar escritor. Conseguira sobreviver quando quase todos ao seu redor morreram. “Senti que tinha uma missão:  ser a voz daquelas pessoas, seu grito de protesto contra aqueles que as expulsaram deste mundo. Decidi escrever para preservar a memória de uma realidade que logo parecia afundar em um esquecimento irrevogável e imposto. A luta por transcender a própria morte é essencialmente humana. O sentimento de que a morte não deve ser o fim é um dos sentimentos existenciais básicos. Ao lutar contra a morte, lutamos contra o esquecimento, e vice-versa: ao lutar contra o esquecimento, lutamos contra a morte.”
 
Algum tempo após a libertação, ficou claro para ele que “as forças do bem, representadas principalmente pelo Exército Vermelho, haviam triunfado”. Como outros sobreviventes, “demorei um pouco para entender que nem sempre são as forças do bem que confrontam as forças do mal, mas sim duas forças do mal lutando entre si pelo controle do mundo.” 

Uma vez acabada a guerra, Ivan Klíma foi estudar literatura na Universidade Charles, já sob o regime comunista. Até que autores degenerados como Sartre, Steinbeck, Faulkner começaram a desaparecer das livrarias. Escreveu sua tese sobre a obra de Karel Čapek, o escritor e jornalista banido e só mais tarde readmitido por Moscou. O pai de Klíma — que havia se filiado ao Partido Comunista — foi condenado a 18 meses de prisão em 1953 pelos próprios compatriotas, época em que o escritor trabalhou como editor ao lado de Milan Kundera e do poeta Miroslav Holub na revista de arte Květen.
 
Essa experiência contribuirá para outras atividades do gênero e como editor-adjunto entre 1963 e 1967 do Literární Noviny, o semanário da União dos Escritores Tchecos, Klíma se tornou uma figura de destaque durante a Primavera de Praga de 1968, o movimento reformista de Alexander Dubček, que visava entre outras mudanças, um “socialismo com rosto humano”. Em um congresso de escritores em 1967, o escritor tcheco e outros colegas de ofício exigiram o fim da censura, atitude que o levou a ser expulso do Partido e vários outros desdobramentos vieram daí, como a proibição de publicar na Tchecoslováquia, a apreensão do seu passaporte, a perda da carteira de motorista, da linha telefônica e um alvo fácil do serviço de espionagem. “Mesmo assim, ainda me sentia um otimista. Diferente da guerra, ninguém tentaria me prender ou me executar.”
 
Os excessos do Estado levaram o escritor a ingressar nos movimentos clandestinos; alguns sob sua organização na sua própria casa. Nessas reuniões, liam-se e discutiam-se sobre suas obras. Entre as figuras que participavam desse movimento de trincheira estavam Václav Havel (escritor que chegou à presidência, a última da Tchecoslováquia, de 1989 a 1992), Ludvík Vaculík (jornalista, escritor e editor clandestino de dissidentes tchecos durante a era comunista) e Alexandr Kliment. No entanto, em menos de um ano, espionagem infiltrou sua casa com uma câmera escondida. O que lhe restou foi datilografarem as suas obras e distribuí-las entre amigos; as samizdat, ou cópias clandestinas, eram contrabandeadas para editores tchecos fora do país. Ivan Klíma — um dos primeiros escritores tchecos a ter seus livros publicados fora do seu país — tornou-se, sob o regime de Gustáv Husák, anfitrião não apenas de outros colegas dissidentes, mas também de escritores estrangeiros já renomados como John Updike, Kurt Vonnegut, William Styron e Kingsley Amis. 

Alguns críticos literários de países da Europa Ocidental se surpreendem com a pouca presença política em sua obra, embora, na opinião de Klíma, “mesmo a literatura em que não se trata de política possa responder às inquietações das pessoas.” O autor tcheco frequentemente escrevia sobre “o amor, a infidelidade e a reconciliação, em parte porque aconteceu comigo e com a minha esposa, embora eu tenha descoberto que era um problema que todos no meu país tinham.”
 
O escritor esteve convencido de que a cultura underground contribuiu para a natureza pacífica da Revolução de Veludo de novembro de 1989. Três meses após a abolição da censura, duas de suas obras voltaram a estar disponíveis nas livrarias, e tinha uma peça de teatro sua em cartaz. Durante aqueles anos, alguns de seus livros venderam mais de 150.000 exemplares. Na República Tcheca, a opinião da imprensa sobre a obra de Ivan Klíma se mantinha dividida. Alguns afirmavam que sua prosa é destinada à exportação. Enquanto isso, vinham os reconhecimentos: em 2002, recebeu das mãos de Václav Havel a Medalha por Serviços à Pátria e, alguns dias depois, o Prêmio Franz Kafka. 
Por quase 50 anos, o escritor tcheco escreveu ensaios, peças de teatro, romances e contos, mesmo quando os seus livros estiverem proibidos por mais de duas décadas. Depois da Revolução de Veludo, Klíma se tornou um observador cético de uma cidade, Praga, cujo símbolo, a Ponte Carlos, foi tomada por turistas nos últimos anos, e cujos clubes de strip-tease e discotecas competem com monumentos góticos e art nouveau.
 
Com Kundera e Josef Škvorecký morando em Paris e Toronto, respectivamente, desde 1989, e a morte de Bohumil Hrabal, em 1997, Klíma restou como o escritor mais respeitado da República Tcheca. Suas obras foram traduzidas para os principais idiomas ao redor do mundo e ganhou leitores do porte de Philip Roth, que defendeu a obra do escritor tcheco no exterior enquanto ela estava proibida em seu país natal e encontrou uma afinidade entre Klíma e Kundera na simpatia compartilhada pelos “eroticamente vulneráveis, na luta contra o desespero da política, na reflexão sobre a sociedade e na obsessão com o destino dos excluídos.”
 
Mas, segundo Roth, Klíma era antítese de Kundera. Sua prosa tranquila, despretensiosa e engraçada, bem como sua ficção parcialmente autobiográfica, são notáveis por sua clara honestidade. Como escritor, ele sempre considerou a literatura um caminho para a liberdade, uma forma de esperança. Ainda na opinião de Philip Roth, que considerou o corte semelhante ao dos Beatles em que o autor tcheco era “um Ringo Starr intelectualmente evoluído”, Klíma era “uma mistura atraente de energia e imperturbabilidade, o mais vital dos dissidentes”.

Ivan Klíma morreu na sua cidade natal no dia 4 de outubro de 2025. Entre as línguas em que sua obra circula está o português; no Brasil, dentre a dezena de títulos que nos deixou, figura uma pequeníssima parte: os livros Nem santo nem anjos e Amor e lixo, este traduzido duas vezes e um dos seus romances mais conhecidos; Amor e lixo lida com as polaridades da vida — “De um lado, o lixo onipresente e a frequente redução, em nosso tempo, das pessoas a coisas descartáveis; do outro, o anseio pela transcendência e a união salvadora do amor.” 

Que a sua história permaneça como memória do valor da liberdade e sua obra como exemplo de denúncia e escape da opressão. “Meus livros podem sempre parecer um tanto deprimentes”, dizia, “mas sempre oferecem qualquer coisa de esperança. Eu não conseguiria escrever um livro sem esperança.”

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