Natália Correia: a mulher que morreu de pé

Por Pedro Fernandes





Nascida na ilha de São Miguel, nos Açores, Natália Correia chegou a Lisboa em 1934, alguns anos depois de quando a família foi abandonada pelo pai que emigrou para o Brasil. Como era comum às mulheres do seu tempo, não conseguiu alcançar os estudos mais avançados. Fosse pela necessidade de sobrevivência, fosse pela natureza própria, esta que se forma no artista muito antes de tomar qualquer decisão profissional, ela ingressou cedo por territórios dos mais diversos até se afirmar como um dos nomes essenciais da poesia portuguesa do século XX.

Foi cantora e locutora de rádio, passou pela televisão como apresentadora e roteirista, barista do Botequim, que fundou em 1971, foi diretora de editora, atuou continuamente para os jornais, militou ativamente contra a ditadura, dedicou-se a todas as frentes da literatura — além da poesia, o teatro, o romance, o ensaio, a literatura para infância, a tradução — e outras searas da escrita, assumiu uma cadeira no Parlamento no período subsequente ao 25 de Abril. A lista de atuações, cada uma com qualidades muito próprias, não termina aqui, mas é o suficiente para demonstrar como Natália Correia cavou seu lugar e se enraizou na história do seu país, assumindo, por vezes, uma presença de vanguarda, para não cairmos no já ultrapassado clichê da mulher à frente do seu tempo.

Diante de um perfil tão diverso, desenvolvido durante um dos períodos mais efervescentes e conturbados para a cultura em Portugal, como desenvolver a unidade de um retrato capaz de desenrolar e sustentar a linearidade de um documentário ou mesmo de uma cinebiografia? Uma figura assim pode servir diversamente a um cineasta e disso resultar a salvação mas também a sua condena. A riqueza biográfica significa que não faltará material capaz de desenvolver um roteiro, permitindo, inclusive, construir determinados recortes ou perspectivas que nos seus limites forneça a tal imagem coesa. Por outro lado, esse excesso de informação pode ruir com qualquer unidade, produzindo uma deformação, um fracasso, um retrato distante do retratado. 

Rosa Coutinho Cabral em parte desprezou o recorte e quis reunir o máximo possível dos mais variados materiais encontrados de e sobre Natália Correia; ao guiar-se pelo excesso, como se encontrasse na sua figura, certo barroquismo evocado algures no filme, finda por se equilibrar delicadamente no fio que buscou construir para o seu Natália Correia, a mulher que morreu de pé e por isso mesmo comete alguns deslizes que incomodam o espectador mais atento, mas nada que coloque em risco o bom funcionamento da obra que nos oferece. A alternativa de usar o batido recurso metacinematográfico é, nesse caso, coerente com a escolha pelo caleidoscópio e não pela igualmente costumeira sequência cronobiográfica.

É possível que, para o espectador ignorante da biografada e do contexto histórico-cultural em que ela se insere exista alguma dificuldade de juntar os múltiplos para — não deixamos de buscar isso afinal — organizar uma imagem de Natália Correia. Proposital? Talvez isso deva servir para que este espectador, assim como deve possuir a autonomia de construir a sua Natália a partir do que se apresenta na narrativa fílmica, desenvolva igualmente certa autonomia de recorrer ao agora tão esquecido ou menosprezado plano da história e da biografia. 

Os múltiplos papéis exercidos por Natália Correia encontram-se no princípio organizacional do filme, mas a fonte é perfeitamente encontrada no teatro: Seis personagens à procura do autor, de Luigi Pirandello. A peça do italiano, um de seus principais trabalhos, se designa por um ensaio de teatro; nesse ínterim, o palco é tomado por seis figuras que, rejeitadas por seu criador, buscam convencer o diretor a encená-las. À medida que a ação se monta, se desenvolve também um ensaio acerca do próprio fazer teatral. Algo semelhante se observa na obra em comentário; o mote é o mesmo, aliás.

Nesse caso, a situação é invertida: a diretora se coloca à procura de uma atriz (ou mesmo ator) capaz de assumir a persona que procura de Natália Correia, depois de cruzar com uma mulher que, à sua vista, guarda muita semelhança com figura a ser retratada e que se recusa ao papel. A tal mulher, perseguida durante todo o filme pela diretora/ detetive é uma das linhas de sustentação do entrecho fílmico; é certo fantasma que se manifesta às custas da obsessão de uma cineasta que ao procurar sua Natália Correia por vezes se confunde no seu próprio vulto como se a questão fosse igualmente própria da multiartista açoreana. 

Esse, aliás, parece ser quase uma tese proposta por Rosa Coutinho Cabral; ao ser tantas e ao morrer precoce e repentinamente, Natália Correia não foi capaz de construir uma unidade da sua própria vida, como se é possível a quem sempre alcança uma vida mais ou menos perene com o fim marcado pela velhice. Ao conjugar o dilema da unidade entre criador e criatura, o filme encontra a dimensão mais acadêmica, chamemos assim, para a noção de ensaio empregada na designação subtitular. Isto é, o espectador está diante de um ensaio de filme, porque nele não encontrará nem uma cinebiografia, nem um documentário, tampouco uma ficção. Sendo um ensaio, o texto alimenta-se de fontes diversas e de si mesmo. O ensaio perfaz a imagem de um caracol. Um detalhe válido aqui está no título, coligido da passagem espontânea de um dos entrevistados e filme ser uma tentativa de desenvolver/ justificar a expressão do seu título.

O ensaio de filme se desdobra em pelo menos três direções. A primeira foi referida há pouco: uma diretora entrevista um conjunto diverso de atores que se candidata para assumir o papel da personagem principal do filme. A segunda, também de corte ensaístico: esses atores assumem a atuação teatral dos papéis pensados ou sugeridos também aos olhos da diretora, que nesse plano, é apenas uma breve sombra de passagem entre o espectador e o seu grupo de atores, privilegiando a autonomia e liberdade assumidas por eles.



 

E a terceira linha é mais complexa. Trata-se do próprio laboratório da diretora, que se assume em primeira pessoa, como voz off e como personagem entre os seus personagens, recorre ao contato com especialistas, com o extenso acervo bibliográfico da e sobre sua obsessão, e dos atores, que interrogam, passando pelos mesmos cenários que serviram à Natália Correia e por aqueles de sua convivência direta na vida pública ou no Botequim ou indireta como aqueles que cultivam alguma memória tardia. Quer dizer, as noções de ensaio se multiplicam continuamente como se fôssemos lançados para o interior de uma câmara de espelhos que tolda as fronteiras entre o real e a imagem e nela, entre esses múltiplos, circulasse, como circula, a própria imagem e a voz da biografada.

Nesse fio em que encontramos a diretora à procura da sua Natália Correia, uma imagem ganha contorno até mesmo fora do filme uma vez servir à composição de um dos cartazes de divulgação: o trabalho de recortar e dispor dos recortes numa página como se fosse organizar uma colagem. A colagem é tal como o metacinema o outro pilar de funcionamento de Natália Correia, a mulher que morreu de pé. Nesse caso, sua função é a de demonstrar que reencontramos uma biografada que se assumiu diversa, o que não é possível negar visto que durante muito tempo, boa parte de sua atividade pública foi quase onipresente na mídia portuguesa. 

O singular é a evidência da mulher que se criou pela memória individual dos que conviveram com ela direta ou indiretamente. Também é a maneira como Rosa Coutinho Cabral penetra na região que a vida pública, verdadeira ou fabricada por uma sociedade extremamente jungida às mentalidades dominantes não conseguiu revelar. E captura os próprios fantasmas de Natália Correia: o regresso nunca acontecido à terra natal, a entrada na sombra e no silêncio depois do rumo assumido por aqueles que se disseram fazer a Revolução, os afetos familiares sufocados pela escolha da vida pública, a extrema solidão que procurou ocultar com a variedade de papéis assumidos e muitos dos quais ignorados pelo seu próprio povo que neles viram histrionice de mulher fora do seu tempo, indomável e incapaz de seguir rebanho ou ainda uma escritora perdida entre práticas e estéticas vencidas.  

E os deslizes do filme? O desfecho da linha na qual circula a figura ideal para o papel de Natália Correia, enterrando-se na ilha onde a poeta nasceu é desnecessário, porque não acompanha com a proposital abertura que encerra os demais fios da trama cinematográfica — algo, aliás, que trai com o inacabado em coerência com o propósito do ensaio. Também são desnecessárias as intervenções de computação gráfica, algumas até bastante vencidas para a qualidade alcançada por esses efeitos no cinema atual. Desnecessárias ainda as imprecações dos atores quando dizer o texto era o suficiente, como diz tão belamente em diversas passagens uma Natália intérprete de seus próprios poemas, alguns embebidos dos álcoois surrealistas.

Importa, por fim, o resultado de todo esforço por construir uma figura e as situações que a modelaram, preservando sua multiplicidade, a irrepetível personalidade, e a proposição que cada um redija a sua Natália Correia, como buscaram e conseguiram a cineasta e seus atores. Reconhecer a impossibilidade de um retrato enquanto nos oferece a possibilidade coletiva de sua feitura era a única maneira coerente, até agora, de apresentar Natália Correia. 

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