Fédon ou sobre a alma — Sócrates decide morrer

Por Afonso Junior



Uma cela, um condenado à morte, um grupo de amigos e discípulos. Fédon de Élis, ex-escravizado de guerra e discípulo de Sócrates, é instado pelo pitagórico Equécrates de Fliunte a narrar “o que disse o homem diante da morte” (Phaedo, 57a).  Algumas horas antes de morrer, Sócrates tem dois desafios: provar que a alma é imortal (portanto, que não irá morrer) e provar que a causa-origem do mundo como nos aparece é algo invisível, talvez transcendental — como afirma Gabriele Cornelli na sua introdução da (também sua) tradução do Fédon, “as coisas sensíveis querem imitar os paradigmas, mas sempre falham” (Platão, 2025, p. 37).

No final, o mito, falando de uma “Terra em si”, a qual seria “pura no puro céu”, vem nos ajudar: “As estações são tão amenas que aqueles que lá habitam não ficam doentes e vivem muito mais do que aqueles daqui. Quanto à vista, ouvido, intelecto e todas as faculdades do gênero, eles nos superam em pureza no mesmo grau em que o ar supera a água e o éter o ar (Phaedo, 111b). Essa visão de um espaço puro, um céu mais puro acima do céu que nos cobre, parece uma reciclagem de teorias muito antigas — ciência mitológica. 

Nenhum dos dois desafios é fácil: a tradição vê a alma como um hálito vital, que escapa do corpo na hora da morte e provavelmente se desfaz; no Hades as almas, vagas sombras, estão destituídas de força, segundo Homero; para Anaxímenes de Mileto, pensador que viveu entre 588-524 a.C., por exemplo, a alma é material, e do ar nascem todas as coisas; nossa alma é ar e mantém nossa coesão, assim como a alma do cosmos, que move os deuses-astros. Como nos lembra Alberto Bernabé, a alma seria um princípio do movimento mesclado ao todo — a matéria é como um ser vivo animado; para Tales de Mileto (624 a.C. - c. 546 a.C.), a água, por exemplo, se modifica e se torna todas as coisas (Barnabé, 2020).¹ 

Desses pensadores temos alguns fragmentos: “Também Tales, a julgar pelo que sabemos sobre ele, parece ter sustentado que a alma é uma força motriz, posto ter ele dito que o ímã tem uma alma porque faz mover ao ferro” (Aristóteles, De Anima, 405a 19-21). “E alguns pensadores dizem que a alma está mesclada no Universo todo, quiçá por isso também pensou Tales que tudo está cheio de deuses” (411 a7-8 [DK 11 A 22]). (O cosmos e o divino voltarão em um Platão tardio, em obras como o Timeu). 

A questão ética é trazida nos ritos órficos dos quais temos notícia já no século VI a.C. Para os órficos e pitagóricos a alma individual pode se purificar através de uma vida correta, o estudo ou certos ritos (já que o corpo é onde a alma está aprisionada), fugindo assim do ciclo de reencarnações quando chegar ao Hades. Os pitagóricos (com suas inúmeras facetas desde o século VI a.C. até o neopitagorismo do final da República romana e sua influência no neoplatonismo subsequente) aparecem por todo o texto do Fédon, por exemplo, nas referências à geografia do além — conforme Kingsley, citado por Cornelli, Platão teria grande influência da tradição oral pitagórica (Platão, nota 10, p. 256).  

Sobre as causas, não é menor a polêmica. Afirma Sócrates: “Eu, quando era jovem, Cebes, fiquei realmente muito empolgado por aquela sabedoria que chamam de investigação sobre a natureza. Achava magnífico, de fato, conhecer as causas de cada coisa, isto é, porque cada uma nasce, morre e é” (Phaedo, 96a). Mas logo o jovem Sócrates se decepciona com a arbitrariedade da ciência de sua época, já que cada cabeça parece ver um “princípio de tudo”. 

Cornelli conta que, ao longo dos seus estudos sobre Platão, foi percebendo que muito do seu incômodo pelo modo como o platonismo engoliu Platão tinha a ver com as traduções. Pois, sendo esse o texto em que Platão levanta como central a questão da alma, ele tornou-se justificativa para um dualismo forte; o professor da Universidade de Brasília prefere uma tensão entre dois polos e, assim, expõe o aspecto construtivo da tradução — como as tradições consolidadas são sustentadas por escolhas. As traduções idealistas obscurecem o quanto Platão pode ter sido chocante para seus contemporâneos, como, por exemplo, o corpo é central no relato, como o discurso (e suas imagens) é oferecido como a construção possível para aceder à verdade ou mesmo o incômodo dos atenienses com Sócrates, ser não classificável. 

Provavelmente a tradição cristã transformou a retórica platônica em evidência racional e normalizou um Platão (ou seja, “nossa” visão) enfático quanto a um mundo “espiritual” puro (portanto, imortalidade) e um mundo “material” fonte do mal. Aqui, fica claro que a alma é um conceito em processo, um campo (e um prazer) diferente daqueles do sexo, do poder e da riqueza. Que amar a sabedoria é uma investigação, em uma sociedade absolutamente ritualizada e desigual, na qual o indivíduo tinha pouco espaço para “inovar” (as mulheres, por exemplo, casavam-se aos 14 anos e muitas morriam no parto); investigação sobre como podemos ser escravizados pelos nossos desejos, pelos impulsos egoístas e sonhos tirânicos. Sócrates, humildemente, declara que pode estar errado quando nos convida a deixar o vento e navegar remando (a segunda navegação) lutando para encontrar refúgio nos discursos à procura da causa. Cornelli prefere falar da “hipótese das ideias”. 

Sócrates lembra que não falar bem “é algo que faz mal as almas” (Phaedo, 115e) — quando seu corpo queimar ou for sepultado, não se diga que é ele que é queimado ou sepultado, mas seu corpo. Este corpo, e a vida na Terra, são uma prisão; Sócrates usa palavras que remetem à libertação dos escravizados, como se seu corpo fosse seu mestre; a vida terrena impede que vejamos a realidade, nossa perspectiva errônea sobre o mundo tem consequências éticas (Platão, nota 5, p. 264). 

A morte é a companheira da vida, que conduz o filósofo para uma vida transfigurada. Quando nos propõe argumentos complexos, como o que certas coisas (como seu interlocutor Símias) podem participar de ideias contrárias (sendo pequeno ou grande dependendo do contexto), mas nunca as ideias, “sempre iguais a si mesmas”, não podemos esquecer que a formação sofística e teatral de Platão foi mobilizada pelo “cuidado com a alma” socrático, a educação para a cidade bela.

Como lembra o tradutor do Fédon, temos alusões ao mito do Minotauro: a busca pela sabedoria nos guia pelo labirinto da vida. Com esse exercício, Sócrates se curou — por isso, provavelmente, pede que ofereçam, quando ele já estiver morto, um galo ao deus da cura —Asclépio. 

Essa “releitura” nos traz muitas reflexões. Como o amigo da filosofia se tornou filósofo? Hoje, estamos menos interessados em ver a filosofia como uma dedução de conceitos “racionais” espelhando um empirismo bruto (e um modelo de civilização) e mais interessados em processos, em nuançar limites, em trazer para discussão novos povos e outras geografias... Platão tornou-se um “pai do Ocidente”, portanto seu discurso se tornou “trabalho racional” (enquanto a “Filosofia” tornou-se parte desse evoluir do espírito que Hegel pensou encontrar) e sua retórica encantatória um método perfeito. 

Nosso pensador de costas largas é uma caixa de Pandora da qual sempre sai uma nova esperança. Platão já foi visto como protofascista, como autor de dramaturgia filosófica, como pioneiro nos debates de gênero, como pilar do colonialismo... O platonismo foi recentemente denunciado como o culpado pelo ascetismo ocidental, e o mundo das ideias como uma traição ao nosso mundo — mas pensemos um pouco sobre, como, hoje, vemos as leis da ciência ou os padrões da natureza, e essa crítica parece injusta. 

Até mesmo as religiões evoluem de acordo com as novas tendências do pensamento — ainda mais na Grécia democrática na qual os sofistas trouxeram a linguagem à baila. O filósofo como amigo da sabedoria nos remete ao tipo de pensar egípcio que já estabelecia esse exercício como fundamental. “A principal preocupação da literatura sapiencial egípcia consistia em definir as condições que, na experiência humana, contribuíam para a manutenção da ordem cósmica, a maet” (Rogério Sousa apud Barros, 2021). 

A crítica dos estoicos (a partir de Zenão de Cítio, nascido em 333 a.C., discípulo do cínico Crates de Tebas) às causas metafísicas de Platão pode nos ajudar a ver a filosofia platônica também como um tipo de crença — talvez uma crença iniciática (transformativa); e Platão como um ser político interessado na busca da salvação da alma e em provar sua imortalidade, assim como a fonte transcendente do mundo (mas não absolutamente transcendente, já que parece haver uma progressão, retomada pelos neoplatônicos). A crença, nesse século, precisa recontar com coerência os fatos.

Para tanto, parece que Platão estabelece um rito de autopercepção, a crítica do “mecanicismo” determinista da física de seu tempo e uma crítica da linguagem — é preciso que o mundo se assente sobre definições estáveis (por exemplo, o justo “em si”) e essa premissa define uma retórica de persuasão capaz de transfigurar a vida. Sua arte vai evitar a confusão de conceitos para que a Justiça buscada seja a melhor; e, portanto, a alma seja enfeitada com os adornos que lhe são próprios: a moderação, a justiça, a coragem, a liberdade, a verdade. (Isso não evitará que, por exemplo, gerações subsequentes vejam muitas teorias como desnecessárias; o cínico Diógenes, descobrindo que Platão definiu o ser humano como bípede sem penas, despena uma galinha e a joga na Academia gritando: “Eis aí teu homem”). 

Essa tradução do Fédon nos convida a um Platão mais humano, mais preocupado com o encantamento das palavras, um Sócrates mais delicado e belo (que faz um gesto de carinho nos cabelos de Fédon, inconsolável). Orfeu encantou com música, como mediador para a nova vida, Sócrates encanta com discursos; Orfeu ensina com mitos, práticas e palavras, o mesmo faz Sócrates. Como xamã, Sócrates traz o outro mundo para que esse seja vivido de modo justo — como Orfeu, traz “beleza” (harmonia) aos ouvidos “bárbaros”.


______
Fédon ou Sobre a alma
Platão
Gabriele Cornelli (Tradução, introdução e notas)
Penguin/ Companhia das Letras, 2025
296p.


Notas
1 Museo Arquelógico Nacional de España. El alma en los primeros filósofos - Alberto Bernabé. YouTube, 11 de fev. de 2020. Disponível aqui. Acesso em: 30 de out. 2025. 

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