Temporada de furacões, de Fernanda Melchor

Por Henrique Ruy S Santos


Fernanda Melchor. Foto: Hector Guerrero



 
Quando muito se fala da “urgência” de uma determinada obra literária, é comum perceber que se trata da sinalização a uma suposta imediaticidade dos assuntos abordados por um livro, partindo do entendimento de que determinados temas dialogam de maneira mais próxima com as experiências atuais de certos grupos. As “urgências” se multiplicam para toda a sorte de públicos-alvo enquanto o termo se esvazia e, aos poucos, revela sua faceta muito mais de ferramenta publicitária do que de qualificação crítica. A tão alardeada urgência é muitas vezes apenas o apego desesperado aos tópicos da moda, independentemente da relevância social desses tópicos. E repare que digo “relevância social”, e não “literária”, porque o cerne da questão é justamente este: a boa obra constrói a própria urgência e a própria relevância, a despeito de suas escolhas temáticas. A imediatez (a ausência de mediação, para trocar em miúdos), tão louvada nos mais diferentes espaços, prescinde da forma: nada mais antiliterário.
 
É por isso que poucas obras que li recentemente soam tão verdadeiramente urgentes quanto Temporada de furacões, de Fernanda Melchor. Entre outras coisas, a literatura tem esse poder de nos fazer resgatar termos empoeirados ou metáforas gastas que de repente brilham com uma nova luz, ou pelo menos uma camada de verniz mais atraente. Em cerca de 8 parágrafos que se estendem por mais de 200 páginas, a escritora mexicana escreve como quem foge da cena de um crime ou, o seu oposto, como quem corre para tentar salvar ao menos uma das vítimas. E não faltam vítimas nem criminosos no universo que a escritora constrói. O romance se passa no povoado fictício de La Matosa, onde, em certo dia, um grupo de crianças encontra um corpo boiando em um canal. Trata-se do cadáver da Bruxa, uma figura conhecida na cidade pelo auxílio que prestava a muitas mulheres, mas também temida pelas lendas e pelas histórias macabras que circulavam em torno dela. O livro então faz uma série de recuos para narrar os acontecimentos que levaram ao assassinato da Bruxa, alternando entre os pontos de vista de diferentes personagens.
 
Embora a literatura policial seja aqui uma das principais fontes de inspiração para a autora, posto que recorre a expedientes consagrados do gênero (o crime, a vítima, o assassino, as motivações etc. são elementos de enredo evocados na obra), Melchor se interessa muito mais pela representação de mazelas sociais pelas vias de um realismo brutal. Entretanto o faz sem cair em algumas das maiores armadilhas desse tipo de registro, que tende a transformar seus personagens em meros autômatos sem vida, meras funções representativas de uma ferida social. É certamente difícil conjugar a figuração das mais profundas formas de anomia social com a criação de personagens vívidos, apaixonados e apaixonantes, pois esses estados de completa alienação apontam precisamente para a desumanização dos sujeitos. Mas é nisso que Melchor insiste neste romance. Acercando-se paulatinamente dos fatos, a autora por vezes peca pela repetição excessiva ao repisar acontecimentos por meio de diferentes pontos de vista. Mas logo fica claro que seu interesse extrapola o elemento narrativo inicial (o assassinato da Bruxa) e se apega às relações construídas entre os personagens envolvidos e ao que cada um traz consigo em termos de história e carga emocional.
 
A voz narrativa se constrói a partir de um pandemônio de pontos de vista que se misturam ininterruptamente no âmbito mínimo da construção frasal. Em períodos e parágrafos infindáveis, Fernanda Melchor constrói um livro que exige fôlego do leitor para acompanhar os personagens e as cenas que se emendam umas às outras sem, muitas vezes, uma concatenação sintática óbvia. As quebras e os anacolutos são frequentes e demandam uma atenção especial. Por isso ler Temporada de furacões é um verdadeiro exercício de apneia. É mergulhar a cabeça num tanque cheio e de alguma forma emergir apenas horas depois, completamente intoxicado pelo estilo bruxuleante e impiedoso de Melchor.
 
“Ela não precisou que as Güeras contassem nada; viu tudo e retornou correndo para acordar a avó e contar-lhe as safadezas que seu santo netinho andava aprontando naquele instante, para ver se assim a velha caía na real e se dava conta de uma vez por todas do tipo de animal que criara sob seu teto, e parasse de jogar toda a culpa em Yesenia, que por ser mais velha que todos devia cuidar do primo e não andar inventando essas fofocas que logo as Güeras contavam como se fossem verdade, calúnias que as pessoas sem nada para fazer logo repetiam” (Melchor, 2024, p. 49).



 
A escrita de Melchor é inquieta, não só transitando entre os pontos de vista de personagens específicos, mas também abarcando percepções coletivas que embasam um mal-estar generalizado e muitas vezes despersonalizado. Em meio à homofobia, à misoginia e a diversas outras formas de violência, a escritora narra manifestações inesperadas de amor, inseparáveis que são do ódio e da necessidade de sobrevivência. Misturados a todo tipo de perversidade, esses momentos de ternura surgem de maneira bruta e abrupta, acentuados pela escrita sem pausas da autora. O efeito geral é a percepção de que, se a humanidade do livro é irremediavelmente atrelada aos mais diversos tipos de opressão, esta tampouco se dá sem as fissuras pelas quais se entrevê uma certa brandura. Além dos capítulos voltados a figuras femininas como Yesenia e Norma, o capítulo dedicado a Brando é um dos pontos altos do livro, em que a escrita consegue, ao mesmo tempo, concentrar uma grande carga de violência — que, inclusive, não poupa o leitor de traços físicos e psicológicos do domínio do abjeto — e uma ternura por vezes de difícil compreensão, apreensível unicamente a partir da concentração narrativa no ponto de vista das personagens.
 
“Abram espaço, seus bostas, gritava o carcereiro, brandindo o cassetete; como é que vocês sempre sabem quantos caras vou trazer, seus merdas, endemoniados, e logo empurrou os dois novos prisioneiros para o interior da cela: um homem baixo, de bigode grisalho e notoriamente coxo, que mal conseguia ficar de pé, e um menino magro, emaciado, de cabelos encaracolados endurecidos de sangue e a boca machucada e os olhos fechados de tomar socos, porque ele apanhou feio de todos os porcos de Rigorito, sem se importarem com os jornalistas e as fotografias e a caralhada de direitos humanos; Luismi em pessoa, o filho da puta, boiolão de merda do Luismi, ali diante dos olhos cheios d’água de Brando: seu, caralho, finalmente seu; seu para apertá-lo nos malditos braços.” (Melchor, 2024, p. 198)
 
A força bruta do ódio e da violência que empapa de sangue cada página desse livro e que espalha vísceras e crueldade em cada frase é uma das forças-motrizes do romance, mas o ingrediente sozinho não seria suficiente para fazer a obra se destacar. É fácil, afinal, encher uma narrativa de episódios violentos e aleatórios para aumentar o valor de choque do enredo sem, com isso, construir algo que pareça mais do que gratuito e apelativo. E é frequente que se disfarce essa gratuidade e a pouca qualidade da forma literária com uma suposta ironia, uma suposta crítica social subjacente, mas que, na verdade, não passa de um cinismo aborrecente sem perspicácia nem profundidade. Não é o caso de Melchor. A autora não perde de vista em nenhum momento o conteúdo humano que tem em mãos e não o deixa de lado em favor do choque barato. Pelo contrário, cada ato de selvageria que os personagens praticam, e por mais torpe que eles sejam, parece sempre emergir de uma dor que a narrativa procura sempre deixar patente, não para justificá-los (os personagens) ou condená-los, mas para — crime dos crimes! — torná-los belos, torná-los arte.


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Temporada de furacões
Fernanda Melchor
Antonio Xerxenesky (Trad.)
Mundaréu, 2021
216p.

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