Sul, de Veronica Stigger

Por Henrique Ruy S. Santos


Quando se trata de sangue, silencia-se.
— Mircea Cărtărescu, Nostalgia


Veronica Stigger. Arquivo da escritora (Reprodução)

 
Em Sul, Veronica Stigger parte da hibridez de gêneros para criar um painel representativo de diferentes formas de violência e de incômodas instalações do absurdo. O livro, publicado pela primeira vez em 2013, na Argentina, e no Brasil em 2016 pela Editora 34, divide-se em três partes, cada uma explorando um gênero literário diferente. A primeira, intitulada “2035”, vale-se da prosa narrativa à maneira de um conto; a segunda, “Mancha”, é uma peça teatral com duas personagens em cena e mais uma que permanece fora do palco; a terceira parte, uma narrativa em versos que recupera episódios de infância e adolescência da narradora e que leva o título de “O coração dos homens”. A unir as três partes, um onipresente tom de estranhamento e/ ou afastamento do real, figurado, entre outras imagens, pela irrupção do sangue humano nos mais diferentes contextos.
 
Em “2035”, texto de abertura do livro, dois “oficiais” e um civil que estranhamente conduz um riquixá encaminham-se a um prédio onde Constância, que está completando 10 anos naquele dia, mora com seus pais. A prosa é direta, de períodos curtos, e aposta com sucesso na quebra de paralelismos semânticos como recurso de estranheza e de criação de uma atmosfera desde cedo marcada pela desumanização: “Constância estava dormindo quando os oficiais chegaram ao prédio. Eles eram dois e vestiam calças e coletes cinza-chumbo. Traziam consigo dois facões, um pé de cabra e um civil” (Stigger, 2016, p. 13). A descrição do pátio interior do edifício, com uma guarita abandonada e suja de fezes, vegetação à altura do peito e elevadores que não funcionam, informa o leitor do caráter distópico da narrativa, já sinalizado pela marcação temporal do título.
 
Os três homens se dirigem ao apartamento dos pais de Constância para exigir, na qualidade de representantes do governo, a presença da menina no que chamam de “comemorações”. A diligência deveria ser cumprida rapidamente, uma vez que as ditas comemorações iniciariam precisamente às dez e meia, horário em que a garota nasceu. A chegada imprevista dos oficiais e a ausência de maiores explicações evocam imediatamente as cenas kafkianas de O processo, mas a comparação merece ressalvas.
 
O texto de Stigger parte, já de início, do ponto de vista dos oficiais, o que colabora para enfraquecer o sentimento de ilogicidade que se infiltra nas páginas seguintes, uma vez que o mundo que se nos dá a conhecer é mediado pelas ações de quem opera na oficialidade estatal, no âmbito da ordem. Há estranhamento e incompreensão, mas há poucas brechas para encarar o que acontece como fruto de um desajuste ou de um engano, como em Kafka (“alguém certamente havia caluniado Josef K.”). Os gestos dos oficiais são imbuídos de uma inesperada cerimônia, amparados por ritos e tradições obscuras, mas os signos da destruição e do abandono bem evocados nas descrições iniciais já apontam para um mundo pós-racional e absurdo, onde a violência não irrompe como quebra da normalidade, mas como uma sua continuidade inexplicável.
 
Após toda uma série de práticas ritualísticas com alto teor de estranhamento (mulheres de longos cabelos banham Constância em uma banheira, queimam suas roupas e cortam seus cabelos), a narrativa deságua num retrato de violência absolutamente brutal, sem jamais abandonar o estilo seco e direto do texto. Por mais absurdo que tudo pareça, o título da narrativa, ao dar à história uma insólita coordenada temporal, tensiona-a entre a simples alegoria e um retrato crítico de uma real barbárie social, cada vez mais banalizada.
 
O segundo texto, “Mancha”, opera as ferramentas do gênero dramático de maneira concentrada, mais uma vez mantendo o tom de disparate e absurdo. Trata-se de uma única cena, em que dialogam duas personagens com o mesmo nome, Carol 1 e Carol 2. O cenário é mobiliado por um sofá branco e poltronas igualmente brancas. As personagens vestem vestidos brancos e calçam botas também brancas. Quebrando o caráter asséptico da encenação, manchas e poças de sangue de variada extensão se espalham por todo o cenário, no chão, no sofá, na maçaneta da porta, e não tarda para que os vestidos das personagens também fiquem manchados.
 
Questionada por Carol 2 acerca do motivo de tanto sangue, especialmente a grande nódoa visível no pelego perto do sofá, onde também se encontram cacos de vidro, Carol 1 relata apenas ter ouvido o som da queda. Quando chegou ao lugar de onde vinha o estrondo, “ele estava no chão, bem aí, duro e estatelado” (Stigger, 2016, p. 36). A personagem que sofreu a queda, o “ele” a quem Carol 1 se refere em seu relato, permanece incógnita durante toda a cena. As rubricas cênicas chamam atenção para o som do chuveiro que se ouve ao fundo, em um cenário fora do palco, onde a personagem desconhecida, sempre segundo Carol 1, está tomando banho. Aos questionamentos cada vez mais atônitos de Carol 2 diante das condições em que se encontra o lugar, Carol 1 reage com uma indiferença atordoante, limitando-se a fazer a maquiagem na frente do espelho, com gestos estranhos e exagerados.
 
“Carol 1 continua se maquiando defronte ao espelho. Aplica pó de arroz em todo o rosto, numa quantidade um tanto exagerada. Carol 2 anda em direção ao centro do palco, mas, no segundo passo, sua bota afunda numa poça de sangue. Ela se abaixa e passa o dedo na poça. Seu dedo fica vermelho. Ela o esfrega na roupa para limpá-lo, manchando o vestido branco. Ainda agachada, olha em torno e percebe que há, no chão, outras poças como aquela, formando uma trilha de sangue que leva da entrada até o sofá. Então, de gatinhas, vai de poça em poça, sempre verificando o frescor do sangue com o dedo e limpando-o em seguida no vestido branco, que, em pouco tempo, fica todo pontilhado de manchas vermelhas. Enquanto isso, Carol 1 se maquia.” (Stigger, 2016, p. 32)



A tensão carregada de uma situação dramática sem explicações, mas que sinaliza fortemente para um ato de violência, mantém o fio temático em relação ao primeiro texto. O embate entre as personagens coloca em confronto, de um lado, um estranhamento crescente em relação ao ambiente e ao contexto imediato e, de outro lado, um descaso patente (meio dissimulado, meio irritadiço) diante dos sinais de violência apresentados em cena. Essa tensão perde força e, em última instância, se dilui em diálogos mais amenos, que topicalizam assuntos banais entre as personagens. Entretanto, ao fundo, permanece incessante e cada vez mais alto o som do chuveiro, como um ruído ou um alerta que inviabiliza a higiene sonora da cena, assim como o sangue lhe impossibilita a salubridade visual e tátil. Ainda que transite entre diferentes níveis de apaziguamento na superfície, Stigger jamais abre mão, nos textos que compõem Sul, de um mal-estar latente.
 
O terceiro texto, “O coração dos homens”, faz um recuo ao optar por um relato de cunho pessoal. Trata-se de uma narrativa versificada em primeira pessoa e que pode ser dividida em três partes (embora o texto em si não o faça explicitamente), de acordo com as experiências das duas primeiras e da vigésima menstruação da narradora: a primeira quando interpretava o Espelho em uma peça escolar da Branca de Neve, organizada pela professora de Inglês; a segunda em uma apresentação escolar sobre a cultura alemã; e a vigésima na Semana da Inversão, quando alunos viravam professores e vice-versa. Ao mesmo tempo em que é o texto mais bem-humorado do livro, é também aquele em que as situações de violência são mais facilmente localizáveis no mundo real, uma vez que o flerte com o absurdo e o irracional é apaziguado.
 
“Todos tinham que recitar pelo menos uma frase.
A ideia era que a turma inteira exibisse seu inglês capenga.
 
O problema era que não havia papel para todo mundo.
A entourage da Branca de Neve não era tão grande assim,
e nós éramos trinta e cinco na turma.
 
A solução: povoar a floresta.
Tinha de tudo entre a casa da madrasta e a casa dos anões.
De coruja a mendigo.
 
Teve até gente que foi árvore,
gente que foi banquinho de madeira.
(E a professora cogitou aumentar o número de anões.)” (Stigger, 2016, p. 62)
 
Os diferentes constrangimentos pelos quais a narradora passa a partir da experiência da menstruação explicitam o caráter de gênero da violência que permeia de modo menos explícito as outras partes do livro, mas sem que o texto soe direto demais ou inclinado ao didatismo. Perde força, entretanto, pela não exploração do verso em suas possibilidades fônicas e gráficas, restando a sensação de que a escolha do gênero se deu mais pela via da exploração temática, próxima da vivência pessoal, e menos pelas potencialidades da poesia, o que não é o caso dos outros textos, em que a prosa narrativa e o texto dramático se fazem sentir como escolhas textuais de relevância estilística.
 
Lidos os três principais textos do livro, o leitor se depara ainda com um artifício editorial e tipográfico que esconde a existência de um quarto fragmento na composição total da obra. O texto “A verdade sobre o coração dos homens” é uma espécie de parte secreta, que o leitor acessa através da abertura de algumas páginas coladas umas às outras nas pontas. No texto, a narradora de “O coração dos homens” se propõe a contar a “verdade” sobre uma série de fatos narrados anteriormente, esclarecendo a “real” ordem dos fatos e quais personagens estiveram realmente envolvidos em determinadas situações.
 
O texto lacrado, mais do que apelar para a curiosidade, convida o leitor à intervenção direta sobre o livro como objeto, em um ato que não deixa de ter, por si só, sua dose de violência, no sentido de violação. O descolamento do material permite entrever aos poucos o conteúdo da parte ocultada, mas, se feito sem cautela, pode levar a uma imprevista e indesejada ruptura das páginas. Stigger, assim, mobiliza o leitor a buscar uma suposta verdade no relato ficcional, mas uma verdade entendida como simples esclarecimento factual, ao passo que a substância do texto, especificamente em seu trato com a violência enquanto tema e na articulação da linguagem poética, permanece inalterada. Se o livro fosse ruim, o truque não o salvaria; sendo bom, ratifica as qualidades de uma autora sempre atenta ao que quer dizer.


______
Sul
Veronica Stigger
Editora 34, 2016
96p.

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