Com Marco Aurélio, o que dele nos aproxima

Por Afonso Junior



 
O fundador do estoicismo, Zenão de Cítio, teria nascido em torno de 333 a. C.; Marco Aurélio nasceu em 121 de nossa era. Quase quinhentos anos, portanto, e muitas diferenças. Dos livros escritos pelos primeiros estoicos nos resta quase nada — das centenas de escritos de Crisipo, restam os títulos e alguns fragmentos. Do estoicismo romano, entretanto, temos abundante material de Sêneca, as conversas de Epicteto recolhidas em dois livros, e os diários de Marco Aurélio. E, como veremos, algo mais...
 
Uma das diferenças é que esse estoicismo de Marco Aurélio, ainda que fundamentado em uma tese sobre a ordem cósmica e em uma moral baseada na physis, nos parece muito diverso do estoicismo grego — com seus complexos argumentos sobre o logos, as representações que nos aparecem em um mundo de fenômenos, nossos juízos, a conflagração final e os princípios sem forma (ativo e passivo) que são base dos elementos do mundo. Tudo isso aparece em Marco Aurélio, mas de forma subliminar; em primeiro plano está a análise da própria atitude e sua luta por viver de acordo com valores do eu divino. Seu esforço para não ceder à ira ou à melancolia cumprindo o dever (pesado) de ser o líder de seu povo. Por isso sua escrita apresenta um enigma (como afirma Donato Ferrara no prefácio): quais os fundamentos desse pensar sobre si mesmo, tecido de forma crua e direta, tão diverso do retórico Sêneca e do sistemático Epicteto?
 
Aldo Dinucci nos conta na introdução deste livro, que Marco, aos doze anos, teria adotado as “vestes de filósofo”, um manto grego, e desejado dormir no chão, do que a mãe o salvou pedindo que, pelo menos, deitasse sobre um leito coberto de peles (Dinucci, 2025, p. 31). Também nos conta, na Cronologia, que, aos seis anos, ascende à segunda ordem da nobreza romana (Ordem Equestre) por determinação do Imperador Adriano, sendo escolhido como sucessor do herdeiro deste (Antonino Pio) e adotado por ele em 138. Adriano escolhe um filósofo como Imperador.
 
Como todo enigma, Marco Aurélio tem luz e sombra. E agradecemos a toda pista que traga luz sobre ele. Suas cartas com seu mestre Marco Frontão (professor de retórica), seus discursos públicos (“Por que [irmãos soldados] me irritar com o destino, que tudo ordena?”), ditos recolhidos pela posteridade (Galeno, Júlio Capitolino, Dião Cássio...). Material inédito em português e fundamental para entender a abrangência do modo de viver estoico sobre seu comportamento.
 
Por exemplo, quando afirma, em discurso no Capitólio, que não teria permitido em seu reinado a execução de qualquer senador, mesmo dos rebelados, se disso tivesse ciência. De fato, houve uma tentativa de golpe de estado em 175; Cícero, também filósofo, na República, mandara executar os rebeldes. Somente essa pesquisa dos autores, que contextualiza cada episódio narrado de sua vida, já seria um feito para o estudo do estoicismo romano. Outro exemplo citado no livro: tendo contraído a peste em campanha contra os marcomanos, vendo chorarem seus amigos e oficiais, os exorta dizendo que a morte é comum a todo mortal. Novamente aqui, a filosofia em performance no barro da vida comum.
 
Para nosso Imperador, é preciso preservar na vida diária seus princípios, recebendo as representações (“farsa, guerra, alvoroço, escravidão”) e avaliando-as pela “filosofia natural” estudada, assim tanto realizando o que depende das circunstâncias, como colocando “em ação a capacidade teorética” vivendo “a partir da ciência”, como lemos nas suas Meditações (M. Aur. Med. L 10.9, 2023). Se "nada está parado" e "tudo desaparece", o pensamento livre de paixões é uma cidadela (Radice, 2016) — na tradução de Dinucci: "o pensamento é uma acrópole livre de paixões" (M. Aur. Med. L 8.48, ibid.). Roberto Radice pensa que o otimismo grego quanto ao “desenvolvimento espermático do logos” (ibid., p. 252) cede lugar a uma espécie de nova separação entre “as angústias e tudo que pertence ao corpo” e o intelecto (nous), harmonia interior à qual se volta para acertar o próprio ritmo (ibid.).
 
Seus escritos são uma reflexão consigo, mas também conosco, com as pedras da jornada da vida. Se pensássemos (ousando um pouco) na vida de Marco Aurélio de acordo com as teoria dos humores, conforme abordada no Renascimento pelo neoplatônico Marsílio Ficino (1433- 1499), provavelmente ele não seria do reino do guerreiro Marte (temperamento colérico) ou do sensual Júpiter (sanguíneo), muito menos estaria entre os dois modelos medievais (o santo contemplativo e o cavaleiro ativo), mas seria, talvez, do reino de Saturno, deus obscuro e generoso (temperamento melancólico inspirado) — o temperamento de artistas, inventores e filósofos, de um Leonardo e um Hamlet, dirão depois.
 
Temperamento de uma vida (a especulativa) que (diz Ficino) não usa a “mente” do teólogo, o raciocínio “metafísico”, que concebe ideias além do espaço e tempo, mas usa a “imaginação” — território da imagem, das medidas e da grandeza criadora. Como daimon, pensa em ordenar o mundo com a beleza das ideias. Por certo, se vê deslocado no mundo que o cerca, de guerras, vaidades e disputas pelo poder; observa o mundo e dele retira sabedoria, como na gravura Melancolia I de Albrecht Dürer (1514). Sua obra tem, nesse sentido, esse caráter de “obra da imaginação” de um humanista do Renascimento avant la lettre — sentimos a carne e o suor, sabemos que estamos lidando com a ordem do logos e os ideais; diante das lutas do mundo, nossa luz interior é o princípio que nos traz coerência e decisão.
 
Falando em República (a Florença de Ficino era a de Cosme de Médici, que a manipulava para concentrar poder), registrou Júlio Capitolino que o Imperador Marco Aurélio preferia “deliberar com os nobres” até mesmo problemas da vida civil, crendo ser mais justo que ele siga a muitos do que querer que todos sigam sua vontade (Hist. Aug 22.3, Marco Aurélio, 2025, p. 69).
 
Outro relato apresentado no livro: os cristãos primitivos são denunciados como desordeiros em um contexto em que ocorriam terremotos; Mary Beard (2023) afirma que, em 200 d.C. havia no Império (com uma população em torno de 60 milhões de pessoas) cerca de 200 mil cristãos; Roma sempre acolheu os deuses dos povos conquistados, como forma de trazer estabilidade; o cristianismo poderia ser visto como uma rejeição ao costume de incorporação dos deuses estrangeiros, monoteísmo excludente, ou pior, ateísmo, causa de punições divinas.
 
Em sua Carta à Assembleia Comum da Ásia, Marco Aurélio rebate os acusadores dizendo que eles também negligenciam os deuses, além de não cultuarem o “Imortal” (que o estoico assimila ao Logos Universal), o qual os cristãos cultuariam. Só deveriam ser perturbados em caso de agirem contra o governo local. Interessante ver a tolerância de Marco em contraste com o panorama geral; segundo Beard, a perseguição sistemática só surgiria por volta do século III d.C., apesar de cristãos serem usados como bodes expiatórios muitas vezes, como foi o caso de Nero, que acendeu tochas humanas. Pelo relato de uma jovem mãe cristã de Cartago em 203 d.C. (Vibia Perpetua), em que o governador da Província pede que ela faça um “sacrifício pelo bem-estar de seu Imperador”, ao que ela respondeu “Não vou fazer isso, sou cristã”, sendo lançada às feras, se vê o medo e a ansiedade coletivas que rondavam esse “abandono dos deuses”. (Por outro lado, o exame da consciência e a questão da intencionalidade dos atos propostos pela filosofia estoica, por exemplo, serão muito admirados pelo cristianismo, ilustrado pelo fato de surgir a lenda de falsas cartas trocadas entre Sêneca e Paulo de Tarso).
 
Marco Aurélio, um personagem pleno de contradições, o que dele nos aproxima: provavelmente tentando evitar os dilemas da sucessão imperial em seu tempo (sendo a trágica sucessão de Augusto o exemplo mais sombrio), nomeia seu filho Cômodo como herdeiro (o qual se verá como encarnação de Hércules e o provará executando vítimas humanas da arena), principiando inadvertidamente a queda do Império. Do nosso ponto de vista, o problema do Império era estrutural, a concentração de poder que (em vista de evitar as guerras civis), acabou submetendo a estabilidade política (portanto, as vidas de muitos) à alma imponderável de um único homem. O contraste com o meigo Marco, que queria viver conforme a razão que governa o cosmos, deve ter sido chocante. Nosso livro mostra uma imagem do pintor romântico francês Eugène Delacroix (1844) sobre a despedida do Imperador; na hora de sua morte, ele deixa uma espécie de luz: “Partam em direção ao sol nascente, pois eu, agora, estou me pondo...” (M. Aur. apud. Dinucci e Santos Júnior, 2025, p. 91).


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Marco Aurélio: cartas, discursos e ditos célebres
Aldo Dinucci (org.)
Aldo Dinucci e Cristóvão dos Santos Júnior (Trads.)
Editora Auster, 2025
124p.


Referências
Aurélio, Marco. Meditações: Os escritos pessoais de Marco Aurélio Antonino, imperador filósofo (Ta Eis Eauton). Tradução, introdução e notas: Aldo Dinucci. São Paulo: Penguin-Companhia, 2023.
Beard, Mary.  SPQR: uma história da Roma Antiga. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2017.
Radice, Roberto. Estoicismo. Tradução de Alessandra Siedschlag. São Paulo: Ideias & Letras, 2016.
Dinucci, Aldo (org.). Marco Aurélio: cartas, discursos e ditos célebres. Tradução de Aldo Dinucci e Cristóvão dos Santos Júnior. Campinas: Editora Auster, 2025.
 
 
 

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