László Krasznahorkai, o escritor da melancolia

Por Manuel Pacheco 


László Krasznahorkai. Foto: Lenke Szilagyi



Ler László Krasznahorkai exige perspicácia para não se desconectar de sua escrita concisa ou se irritar com seu pessimismo. Alguns de seus livros permanecem na minha mesa de cabeceira durante meses, porque ele não é um autor com o qual alguém queira ler antes de dormir. No entanto, quero evitar rotulá-lo como um autor hermético. O difícil, assim como o misterioso, é um rótulo negativo aplicado quando o conteúdo não é facilmente perceptível à primeira vista, quando não é possível resumir um enredo em poucas palavras ou vender uma história de forma envolvente. A dificuldade diz respeito aos obstáculos que interferem no acesso à informação, e é por isso que posso falar de uma teoria, um ensaio ou um tratado difícil, mas não faz sentido falar de um romance difícil pela mesma razão que não faz sentido dizer que um romance impõe obstáculos, já que, felizmente, os romances não são informativos. A exigência de concentração é um requisito mínimo para a leitura, não algo difícil (e digo isso porque estou perdendo rapidamente a capacidade de atenção). Da mesma forma, a velocidade com que os eventos se desenrolam tem a ver com um estilo de escrita, mas nem lento nem rápido significam, respectivamente, difícil ou fácil.

Krasznahorkai pertence àquela tradição de escritores que utilizam parágrafos longos e poucos pontos com o objetivo de eliminar as limitações temporais impostas por signos e divisões gráficas, de modo que em seus livros a sucessão de pequenos acontecimentos e reflexões se intensifica e até se sobrepõe. Embora isso signifique que a ação se alonga, que aconteçam menos coisas, a verdade é que o ritmo de leitura aumenta freneticamente até atingir uma espécie de deslizamento, uma “passar por cima” do texto que difere das exigências de outros tipos de narrativas com direção mais evidente ou acontecimentos mais definidos. Esse é o estilo adotado pelo stream of consciousness, embora autores como Samuel Beckett, Thomas Bernhard e Maurice Blanchot o tenham transformado em voz. Vêm à minha cabeça Malina, de Ingeborg Bachmann, e San Camillo, 1936, de Camilo José Cela. São exemplos em que o estilo de escrita não é uma impostura, mas inseparável do que relatam: a neurose, o esmaecimento dos significados, o monólogo interior que se distancia do objeto observado, o acúmulo de narradores, a rápida sucessão de acontecimentos. Com um toque de ironia e um toque de espanto, um veículo digital observa, a respeito de um fragmento de Relações misericordiosas, de Krasznahorkai: “Como os leitores notarão, faltam pontos e vírgulas. Não se trata de um erro de edição. Esse é o estilo de escrita do premiado autor húngaro.”¹ Soa como um aviso que poderia disparar alarmes em... não sei, 1922, por volta da época da publicação de Ulysses, de James Joyce.

Como tantos outros, conheci Krasznahorkai primeiro por meio de suas colaborações com Béla Tarr e Ágnes Hranitzky, a dupla de cineastas com quem ele roteirizou uma série de filmes cinzentos, chuvosos, tristes e pesados (no melhor sentido da palavra), incluindo diversas adaptações de seus próprios romances. Seus planos extremamente longos são a tradução visual das frases intermináveis e tortuosas de Krasznahorkai, e a degradação espacial e psicológica também é equivalente entre as duas mídias. Em casa, tenho uma caixa contendo a filmografia completa de Tarr, cuja aparência física reflete perfeitamente seu conteúdo: uma caixa de tecido cinza, sem ilustrações ou texto, como um bloco de cimento recuperado após uma demolição. As duas obras centrais de Krasznahorkai, Sátántangó e Melancolia da resistência, bem como a coletânea de contos Relações misericordiosas, foram publicadas durante os anos finais da República Popular da Hungria e transmitem a visão apocalíptica de um regime que assiste à sua ruína enquanto aguarda uma mudança que nunca chega. Uma das sequências mais comentadas na adaptação cinematográfica de Sátántangó é um momento de dança em uma taverna, com os clientes bêbados e o acordeonista repetindo os mesmos compassos ao fundo, gravado em plano sequência que dura dez minutos. Essa cena perturbada e decadente marca uma reviravolta na trama: na manhã seguinte, todos serão enganados e confiarão suas economias a um líder autoproclamado, que os convencerá a abandonar a exploração ruinosa em que subsistiam até então para criar uma nova e exemplar utopia comunitária.

Mas também não é preciso muito contexto para ler esses livros, já que suas situações e misérias permanecem abstratas e facilmente universalizáveis. O próprio escritor rejeita o rótulo de realista, como atestam seus interesses nas décadas posteriores. Após uma série de viagens à Ásia, temas como a beleza, o detalhe e a contemplação ganham destaque em seus livros, e sua escrita os abraça e os integra ao seu fluxo e ritmo. Ora, o fato de inúmeras páginas se concentrarem em um conjunto muito limitado de eventos tem a ver com a maneira de observar própria de um artesão; seja, como encontramos em E Seiobo desceu à terra, o caso de um meticuloso pintor de ícones na Rússia medieval, um compositor barroco ou um fabricante de máscaras para o teatro kabuki. Em uma entrevista concedida em 2024, Krasznahorkai afirma que o trabalho do escritor é descrever o estado de pessoas, animais, plantas e minerais e “aceitar, constrangido, ser chamado de criador”. Gosto dessa caracterização porque me lembra de uma ideia que tento defender sempre que possível: a de que descrever é sempre melhor do que definir, porque a descrição nos salva da busca infrutífera pela verdade última e, em vez disso, opta pelo mundo das sombras e nuances.

O tradutor espanhol de Krasznahorkai, Adan Kovacsics — quem, aliás, foi elogiado por Darío Gael eem uma entrevista recente para a Vanity Fair — publicou um pequeno livro intitulado Guerra y linguaje, no qual estuda a instrumentalização da linguagem em contextos como a Alemanha nazista ou a invasão do Iraque. Além de recomendar sua leitura, menciono o livro para resgatar alguns versos sobre o bloqueio de Rainer Maria Rilke durante a Primeira Guerra Mundial: “Os anjos tinham se retiraram. Às vezes acontece que eles não respondem, que a ‘alegria eterna’ não inunda o coração, que o espaço interior do mundo se reduz a um ponto. O corpo, porém, continua vivo! [...] Esquecemos a linguagem, começamos a gaguejar, nosso olhar se perde, nossa boca fica entreaberta e lutamos para mover os lábios. No entanto, o corpo continua, às vezes mais físico do que nunca.” Apesar dos contextos reais, dramáticos e crus aos quais Kovacsics se refere em seu livro, há algo em suas observações sobre a relação da linguagem com a vida cotidiana, e a lacuna que se abre entre as duas coisas quando ocorre uma crise, que pode ser transferido para o estilo de escrita de Krasznahorkai. Seus personagens vivem entre ruínas e se tornam minúsculos diante da miséria do mundo, e essa situação de fracasso é transferida para a narrativa e se converte em gagueira. As criaturas em seus livros poderiam desistir, mas são movidas pela possibilidade de um futuro que, assim como a busca pela beleza e as tentativas de concretizá-la, jamais se materializará em nada além de uma espera contínua. Essa é a natureza da melancolia à qual o autor se referiu em algumas ocasiões e que se concretiza em textos lentos, nebulosos e contemplativos, nos quais nada muda.

Notas da tradução
1 Exceto Sátántangó, os títulos dos livros de Krasznahorkai aqui referidos são traduções livres a partir dos títulos em língua espanhola.

Este texto é a tradução livre de “László Krasznahorkai, el escritor de la melancolía”, publicado aqui, em Letras Libres.

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