Qorpo Santo: louco, gênio e um homem muito adiante do seu tempo

Por Neiva Dutra



Joaquim José de Campos Leão – Quorpo Santo – homem obcecado pela ideia da santidade, cuja vida foi um verdadeiro pesadelo, viveu entre 19 de abril de 1829 e 1º de maio de 1883. Na Vila do Triunfo, às margens do Rio Jacuí, no interior do Rio Grande do Sul, surgiu como um dos mais poderosos e criativos dramaturgos de meados do século XIX, um dos precursores do que mais tarde seria chamado de teatro do absurdo. A descoberta de sua obra só ocorreu na década de sessenta do século passado, mas o resgate do seu valor é algo que ainda está para ser cumprido.

Sua biografia se confunde com a sua produção literária. Em sua autobiografia, refere que aos três anos sofreu profundo choque moral, acreditando-se perseguido pelas autoridades provinciais. Sua insanidade mental foi atestada pela Justiça e, a partir do momento em que nomearam um curador, de tal forma sentiu-se desamparado que se voltou para dentro de si mesmo, refugiando-se na literatura.

Na introdução do segundo volume da sua Enciclopédia ou seis meses de uma enfermidade, Qorpo Santo apresenta a si próprio:

"Como já hei publicado – sabem todos o dia em que nasci, cujas minuciosidades encontram-se em meu Testamento também publicado.

Começa portanto minha vida intelectual e moral no  momento em que brilhou em meu cérebro um raio de inteligência.

Tinha eu três anos pouco mais ou menos de idade (o que sei por ter possuído um Irmão – Graciano Juvêncio de Campos – nascido muito depois; e mais moço que eu cinco anos), quando vi-me entre uma mulher casada e um transgressor do Nono preceito da Base de todas as nossas leis.

Não posso afirmar se por acaso ou de propósito tal aconteceu. O que é verdade porém é que a mulher repeliu tal indivíduo com palavras, cujo som, conquanto eu as não percebesse bem, fez-me olhar para o mesmo – repassado de indignação; este, fitando-me a vista disse à mulher:  Até outra ocasião. E retirou-se. Nunca mais o vi na mesma casa, senão vinte e dois anos depois – inutilizado – por doente.


É para mim problemático – se meu corpo até esse momento era pura carne animada de um pouco espírito, ou se já nele existia o Santo que na idade de trinta e quatro anos subiu ao Céu; o qual ao som de palavras que o feriram começou a desenvolver-se guinando meus passos.

Fui batizado na vila do Triunfo, sendo testemunhas o Médico Ricardo José Vilanova e sua Senhora Dona Leocádia d’Azambuja Vilanova.

Fui crismado pelo nosso primeiro Bispo D. Feliciano na vila de Santo Antônio da Patrulha em 1853, sendo testemunha o bacharel em direito João Capistrano Miranda e Castro.


Falecido meu pai em 1839, vim para esta cidade em 1840 estudar gramática nacional e aplicar-me à espécie de trabalho lucrativo que mais conviesse a mim e à minha família.

Preparado em quatorze meses, entrei para a casa comercial de José Francisco dos Santos Pinto em 26 de abril de 1842

Passados cerca de quatro anos, apeteci viajar a Campanha; e o fiz em 1846 e 1847 em cobranças da casa comercial de Belarmino Peixoto de Oliveira estabelecida na cidade de Cachoeira.

Regressando a esta cidade em o 1º de janeiro de 1848 com tenção de estabelecer-me foi impossível.

Na noite de 9 do mesmo mês sobreveio tão horrível enfermidade à única Irmã que possuo, Maria Augusta de Campos, regendo então a cadeira pública do 3º distrito desta cidade que, apesar de todos os esforços empregados por mim, numerosos parentes, amigos e por seis médicos – ainda hoje jaz enferma.

Dois anos depois habilitei-me para o magistério público, que exerci desde junho de 1851 até maio de 1855; deixando-o para amparar minha Mãe que se achava doente.

Casando-me nesse mesmo ano nesta cidade (em dia de S. Pedro), nela fiquei lecionando em colégios.  Em 1856 logo depois do cólera-morbus tornei sobre mim a direção do Colégio S. João; em 1857, por ameaçado de uma moléstia de peito – passei-me para Alegrete, onde fundei o colégio de instrução primária e secundária Alegretense. Em 1861, por moléstia de pessoas da família aqui existentes regressei, provendo-se-me meses depois na cadeira pública da freguesia de N. S. Madre de Deus; a qual exerci até julho de 1862; época em que – atos violentos de que fui vítima, alguns dos quais ignorei por espaço de dois anos (com que cortaram-me todos os recursos à subsistência) – levaram-me à vila do Triunfo no 1º de janeiro de 1863.

Foi exatamente quando começaram tais atos violentos que eu comecei também a tomar notas para nesta data escrever a Enciclopédia. 

Hei escrito ainda que pouco para jornais desde 1852 até 1873, ano em que cessei para voltar ao comércio, porque nenhum pensamento de reconhecida utilidade pública mandava imprimir, que não fosse qualificado  – crime! e pelo qual – não houvesse de sofrer alguma pena!


Redigi entretanto nesta cidade em 1868, e na de Alegrete em 1871 o jornal – A Justiça por espaço de alguns meses.

O cansaço e muitos outros motivos poderosos forçaram-me, passados 17 meses, a não continuar comerciante nesta cidade.

Por grata recordação noto:
1º. Que em 1882 – fui eleitor especial na vila de Santo Antônio da Patrulha.
2º. Que em 1860 – fui eleito vereador na Câmara Municipal da cidade de Alegrete.
3º. Que em 1859 – fui nomeado subdelegado de polícia dessa mesma cidade.
4º. E, finalmente, que em 1857, estudante, um mês depois de iniciado na Fidelidade e Firmeza... –  fui honrado com o grau de Mestre.

José Joaquim de Campos Leão Qorpo Santo
Porto Alegre, julho 22 de 1876"

Vivendo em permanente estado de tensão, à espera do momento em que pudesse projetar-se, Qorpo Santo considerava-se um indivíduo prodigioso, excepcional, quase um semideus.

Sua vida, atribulada pelo diagnóstico de doença mental que o afastou da carreira de professor, da família e da própria sociedade, foi de constantes quedas e grande sofrimento. Isso não impediu (ou talvez, precisamente, tenha sido o grande impulsionador) que produzisse muitas comédias, que publicou através da tipografia que fundou para imprimir suas obras.

Interditado judicialmente em 1864, aos trinta e cinco anos, travou intensa batalha judicial para reaver a liberdade de gerir a si próprio e aos seus bens, o que conseguiu em 1868, ao ser considerado apto por médicos especialistas no Rio de Janeiro, regressando a Porto Alegre em junho do mesmo ano.

Contudo, em agosto perdeu a batalha judicial e foi então que sua mente começou a trabalhar com redobrada energia na criação literária. Humilhado, pretendeu romper cadeias, quebrar tabus, refundar a sociedade, instaurar a perfeita justiça, assegurar o cumprimento integral das leis.

Na peça Mateus e Mateusa, por exemplo, em uma cena a esposa atira contra o marido exemplares do Código Criminal – “traste velho em que os Doutores cospem e escarram todos os dias, como se fosse uma nojenta escarradeira”. As leis não se respeitam, “são papéis borrados”, diz furiosamente.

Contudo, além da criação literária, Qorpo Santo manteve-se ativo. Foi vereador, comerciante, delegado de polícia, proprietário de escola. Do que viveu retirou a inspiração para artigos publicados em jornais, onde expôs suas feridas, criticou os grandes jornais da época e imaginou uma lei de imprensa que resguardasse a ética profissional.

Sua vocação reformadora, se foi tímida no âmbito da sociedade, não foi na ortografia da língua portuguesa. Pleiteando simplificar a escrita, propôs, corajosa e tenazmente – a ponto de recrutar vários adeptos – novos padrões e normas que, dentre outras mudanças, suprimiam a letra U das palavras em que não tivesse som; empregavam a letra G com o som forte em todas as palavras, não sendo necessário o uso do U em palavras como Guerra; suprimiam a letra H nas palavras em que não tem som; suprimiam o segundo R em palavras como Carro, que passaria a ser escrita Caro, bem como os dois SS; empregavam o S em todas as palavras em que se pudesse dispensar o Ç; inutilizavam o uso do CH tanto para o som de X como para o som de Q; suprimiam o Y do alfabeto, por sua inutilidade.

Pela incongruência, como sistema fonético, o padrão que visava estabelecer não contribuiu para simplificar ou reorganizar a ortografia de seu tempo, tornando ainda mais incerta e complicada a grafia. Ele próprio vacilava várias vezes até mesmo ao grafar o próprio nome: algumas vezes grafava Joaqim e outras Joaquim; algumas vezes escrevia Qorpo Santo, outras Corpo Santo.

Motivo de chacota em vida, Jozè Joaqim de Qampos Leão Qorpo-Santo (como desejou que seu nome fosse escrito), não foi poupado nem mesmo após a morte. Ninguém o leu; falava-se dele como de um mito, de um doido que escrevia poesias estranhas, sem que ninguém se ocupasse seriamente de suas peças. 

Com o Movimento Modernista sua obra voltou à tona, mas seus maus versos foram evocados pelos detratores do movimento, comparados aos versos de Oswald e Mário de Andrade, para atribuir-lhes a pecha de loucos. 

Foi em 1962 que, por sugestão de Guilhermino Cesar, os professores do Curso de Arte Dramática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Fausto Fuser e Lúcia Melo, fizeram cópias de três de suas peças, que foram representadas em 1966, sob a direção de Antônio Carlos de Sena, o primeiro a enfrentar no palco as dificuldades de interpretação de um texto quase genial. Em 1968, o grupo levou ao Rio de Janeiro as peças Mateus e Mateusa e Eu sou vida: eu não sou morte.

Além destas, Qorpo Santo também escreveu As relações naturaisHoje sou um e amanhã sou outroA separação de dois espososO marido extremoso ou o pai cuidadosoUm credor da fazenda nacionalCerta entidade em busca de outraUma pitada de rapéUm assovioLanterna e fogoUm partoO hóspede atrevido ou o brilhante escondidoA impossibilidade da santificação ou a santificação transformadaO marinheiro escritorDuas páginas em branco, apontamentos para uma comédia e Dous irmãos.

Suas comédias não são românticas, nem no tema, nem na linguagem e tampouco na atmosfera. Apresentam situações de conflito peculiares à sociedade gaúcha do século XIX e, do ponto de vista da expressão verbal, são surpreendentes, por desprezarem por completo a linguagem ornamental que era comum ao teatro da época.

As frases são secas, não existem adjetivos nem inversões oracionais. Empregando falas modernas quanto à estrutura, apresentam um tom de farsa, demonstrando um desejo de vingar-se da sociedade e dos desacertos humanos.

O que lhe faltou em equilíbrio abundou em talento dramático, embora sua loucura, para os padrões da época, talvez não fosse uma doença mental, mas sim uma expressão de sua genialidade, mal compreendida, inclusive, nos dias de hoje. O riso, o escárnio de que foi vítima, a convivência em um meio em que a cultura era escassa não permitiram que sua autenticidade fosse reconhecida, mesmo muitos anos após a sua morte. 

A imaginação o levava a compor uma peça de teatro em algumas horas, sem voltar atrás, sem revisões, sem ater-se a convenções, criando um mundo de fantasmagóricas alegorias sobre a vida e de uma alucinação que entrelaça complexos de culpa e um erotismo insaciável com a denúncia de deslizes e opressões morais e as ideias fixas que teve durante toda a vida.

O grande mérito de Qorpo Santo foi o de ter fundado o gênero do teatro nonsense, do teatro do absurdo, muito antes de Eugène Ionesco (nascido em 1909). Com todas as suas limitações, com toda a sua loucura, nele se presencia a irrupção violenta do gênio, em uma obra que algum dia merecerá o reconhecimento e a inscrição em seu devido lugar – como a obra de um dos maiores dramaturgos da língua portuguesa.

***

Neiva Dutra é licenciada em Letras / Língua e Literaturas de Língua Portuguesa, profissional em revisão de textos e copydesker, autora do blog De Anima Verbum, leitora voraz, apaixonada pela arte e a cultura em todas as suas manifestações e em toda sua profundidade.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Boletim Letras 360º #579

Boletim Letras 360º #573

Seis poemas-canções de Zeca Afonso

Confissões de uma máscara, de Yukio Mishima

A bíblia, Péter Nádas

Boletim Letras 360º #575