Copenhagen e as máscaras de uma menina poeta
Por Henrique Ruy S. Santos
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| Tove Ditlevsen. Foto: Steen Jacobsen |
Quando se propõe a narrar experiências de infância, sejam elas de caráter autobiográfico ou não, é comum que um escritor recorra, como ferramenta estilística e narrativa, a um certo grau de adesão ao ponto de vista da criança. A preferência pela perspectiva de determinado personagem como recurso de linguagem narrativa não é nenhuma novidade na literatura, ainda mais se considerarmos sua utilização de maneira ampla, isto é, como a simples concatenação de acontecimentos a partir das vivências de cada personagem. Nesse caso, logo se vê que não se trata de uma firula discursiva, mas de um aspecto estruturante da narração, uma condição para sua própria inteligibilidade. Ainda assim, em um sentido um pouco mais restrito, é possível observar o desenvolvimento de técnicas que modificam ou aprofundam essa maneira de “adentrar a mente dos personagens”, muitas delas motivadas seja pelo desejo de inovação, seja por uma certa desconfiança em relação ao narrador onisciente em terceira pessoa, herdado de modelos consolidados do romance no século XIX.
Nessa esteira, a narração de experiências infantis (e aqui não me refiro a livros voltados para o público infantil) parece ser um campo que naturalmente favorece uma certa dissonância discursiva, uma vez que as diferenças, no mundo real, entre um adulto e uma criança engendram dessemelhanças de ordem cognitiva, linguística e experiencial que postulam um verdadeiro desafio para o ficcionista, de maneira talvez ainda mais radical (embora menos polêmica) do que a diferença de gênero ou raça, por exemplo. A adoção restrita do ponto de vista infantil na prosa romanceada injeta aquela dose de inocência que faz o leitor perceber eventos e experiências com um olhar renovado, que parece muito chegado à forma como a poesia nos dá a ver o mundo.
Reflexões desse tipo vêm-me à mente pela leitura de Infância, a primeira parte da Trilogia de Copenhagen, de Tove Ditlevsen. O livro saiu no Brasil pela Companhia das Letras em 2023, com tradução de Heloisa Jahn e Kristin Lie Garrubo, que fizeram um excelente trabalho ao lidar com as modulações estilísticas de cada um dos três romances que compõem o conjunto. Nesta primeira parte de seu projeto memorialístico, a romancista e poeta dinamarquesa se dedica a narrar os primeiros anos vividos no bairro operário de Vesterbro, na Dinamarca, onde residia em um apartamento com seus pais e o irmão mais velho. A dinâmica familiar, as amizades de escola e de rua, algumas primeiras leituras e tentativas literárias são elementos que povoam as páginas desse primeiro livro.
A pequena Tove que nos é dada conhecer, mais do que pelo acúmulo precoce de influências ou o convívio com a cultura livresca, recorre ao artifício verbal e à poesia como por vocação ou por uma espécie de instinto de proteção. As combinações de palavras que repete para si internamente são, desde cedo, uma redoma que lhe resguarda de um medo difuso, que não é dos pais, do irmão, nem das amigas, mas que parece ser a manifestação prematura de uma inadequação frente ao mundo: “Meus pais não brigam, e minha vida é bem melhor do que a deles quando crianças. Mesmo assim, uma aura escura de ansiedade recobre todos os meus pensamentos quando há silêncio no andar de baixo e chega a hora de ir para a cama” (p. 18).
A criança inadaptada ou desencaixada da sociedade é uma figura a que se costuma recorrer quase como um mito fundador da coorte de escritores que querem dar a si mesmos alguma distinção. Tove Ditlevsen não escapa de todo a esse clichê, mas o explora de maneira honesta. O desajuste de sua infância transita indecididamente entre as características de uma criança prodígio e as incapacidades de alguém que não consegue ser “normal”. Na escrita da autora neste primeiro livro da trilogia, é curioso e bonito observar como nas fissuras das ansiedades da menina irrompe a flor de um cinismo muito particular, como a marca de uma necessidade de expressão latente, mas que logo se converte novamente no medo da não aceitação. Aquilo que nos homens se manifesta pela jocosidade livre e pela ironia sardônica, (mais visíveis nos outros dois livros da trilogia), a garota aprende desde cedo a manifestar unicamente nas páginas de um caderno de poesia guardado a sete chaves. Tove veste a infância como uma máscara protetora, ainda que mal ajustada, seja na relação com a mãe, seja com Ruth, a melhor amiga:
“Durante essa longa amizade, estou sempre com medo de me desmascarar aos olhos de Ruth. Tenho medo de que ela descubra como eu sou de verdade. Trato de me tornar um eco seu, porque gosto tanto dela e porque ela é a mais forte de nós duas. Lá no fundo, porém, continuo sendo eu mesma. Tenho meus sonhos acerca de um futuro fora da rua, enquanto Ruth está intimamente ligada a ela e nunca há de se desprender dela. Tenho a sensação de enganá-la ao fazer de conta que somos do mesmo sangue. Tenho uma dívida misteriosa com ela; ao mesmo tempo, o medo e um vago sentimento de culpa pesam em meu coração e tingem nossa ligação assim como vão tingir todos os relacionamentos próximos e duradouros que terei mais adiante na vida.” (p. 44)
E aqui Tove Ditlevsen se apropria daquela dissonância discursiva que bifurca os pontos de vista: de um lado, o olhar da criança, com os verbos no presente a situar a ação na imediatez do momento vivido e da emoção sentida; de outro, a perspectiva da maturidade, com os verbos no futuro a apregoar um resignado porvir. Mas o que peculiariza sua escrita e torna o livro digno de atenção é o procedimento de inserção desses diferentes pontos de vista no âmbito da percepção da própria criança. Há uma certa visão deslocada da realidade, não necessariamente superior (pelo contrário, a pequena Tove se sente acanhada e acometida por um profundo desejo de ser “normal”), mas mediada por um espírito de fantasia que extrapola a estreiteza das ruas e do bairro da infância. Esse sentimento do mundo impõe as atitudes de mascaramento de que a criança se vale em suas relações e dota o texto de uma fina ironia, na medida em que cria fissuras em nossas concepções de inocência infantil.
O retrato da infância de Tove Ditlevsen se destaca por não soar fajuto nem idealizado. A criança aspirante a poeta não é uma prodígio superdotada (ainda que certamente talentosa), tampouco um poço de inocência, desprovida de qualquer entendimento da realidade que a cerca. A ironia que se constrói dessa forma não é aquela da estocada verbal traiçoeira, mas aquela que aciona mecanismos de defesa. Cerceada por um universo em que predominam as figuras masculinas de autoridade, seja no âmbito da política (o estadista dinarmaquês Thorvald Stauning é o espectro que ronda as conversas em família), seja no âmbito da literatura (Tove está sempre à espera de um “editor encantado” que aparecerá e lhe descobrirá o talento para a poesia, abrindo-lhe as portas para o mundo das publicações), a máscara que a criança veste é a que simula a normalidade em uma atmosfera que não permite o cultivo do que lhe é excepcional. Não a máscara do perpetrador anônimo, mas a máscara que protege da frieza da realidade. Esta, afinal, a Copenhagen de uma menina poeta na década de 1920: “É sempre inverno e lá fora está gelado, assim como no quarto e na cozinha” (p. 15).
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Trilogia de Copenhagen
Tove Ditlevsen
Heloisa Jahn, Kristin Lie Garrubo (Trads.)
Companhia das Letras, 2023
392p.


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