O museu do silêncio, de Yoko Ogawa

Por Pedro Fernandes



É curioso observar como sempre a literatura japonesa é reduzida ao lugar de estranha na opinião de grande parte da crítica brasileira. O termo não ficou esquecido quando em 2016 se publicou no Brasil o primeiro livro de Yoko Ogawa, O museu do silêncio. E apesar de não relevante, este texto retoma o lugar-comum a fim de investigar, embora a resposta se mostre antecipadamente em tom de suspeita, pelo menos uma razão para esse registro enquanto apresenta algumas notas sobre este romance.

Situados numa aldeia do interior do Japão, os acontecimentos recobrados pela narrativa estão articulados em dois eixos principais – sendo um deles, o motivador, sobressalente: trata-se da construção de um museu proposto por uma velha senhora de posses do lugar a fim de reunir um conjunto diferente de objetos. Trata-se de um museu com coisas recolhidas durante parte significativa da vida dessa velha e não tem relação com suas memórias afetivas nem com o ideal de perpetuação de sua geração. Durante anos ela pegou às escondidas do leito de morte das pessoas do vilarejo – embora o projeto não seja segredo – objetos capazes de identificá-las numa posteridade.

O segundo eixo, desenlaça quando, depois de instalado na aldeia, o museólogo contratado pela interessada na construção do museu, quem também agora precisará fazer esse papel de ladrão de lembranças, começa a presenciar uma série de acontecimentos – agora sim, cabe a palavra – estranhos: primeiro, vê-se envolvido juntamente com a filha da velha numa espécie de atentado terrorista; depois, a retomada, cinquenta anos depois de um caso isolado, e agora em série, de assassinatos de mulheres. A situação amplia a atmosfera de mistério – este sim um termo coerente ao menos com a narrativa de O museu do silêncio – que sempre paira desde o início da trama: as mortas são sempre solitárias, mais ou menos jovens, e encontradas sempre da mesma maneira – o assassino, depois de estrangulá-las, corta fora os seios das vítimas.

Dizer o segredo que perpassa esses acontecimentos de ares policial seria atentar contra o leitor que merece envolver-se nessa atmosfera proposta pela narrativa de Yoko Ogawa. Mas falar sobre o mistério que constitui parte da trama do romance em questão é abrir uma oportunidade para não deixar de observar o zelo com o qual a escritora constrói seu narrador – a narrativa é contada pelo ponto de vista do museólogo – sempre situado entre a observação atenta, delicada, ampla e expressiva como é característica na literatura oriental.

O estreito diálogo com uma verve realista e, por isso mesmo, o interesse em tornar crível mesmo o expediente maravilhoso que se infiltra nessa narrativa, faz O museu do silêncio uma obra que, foge da observação do narrador numa altura sobre a dissimetria das formas naturais: ela é perfeitamente ajustada. Nada parece fora do lugar e os olhos do narrador, no mesmo instante que observa, coloca tudo em relação, não se esquece de aferir como amálgama das situações, a beleza poética, os afloramentos sensíveis pela natureza, a relação harmoniosa entre situações, espaços e temporalidades e a contínua reflexão sobre diversos temas de ordem existencial e filosófica que dominam os acontecimentos.

Dentre esses temas, duas constantes que se apresentam mais ou menos mal resolvidos para nós ocidentais – ou pelo com outra compreensão e eis aqui a principal razão para o sempre estranha com o qual rotulam a narrativa oriental: são os conceitos de vida, morte e monumento. Para nós, a morte se manifesta por oposição à vida. Mesmo na compreensão sobre a vida eterna, tal como prega o cristianismo, não se compreende a morrer como parte integrante do viver e a eternidade não se constitui extensão da vida comum, mas outra vida, mais plena, abundante e inacabável. O monumento, por sua vez, se apresenta como uma tentativa racional de perpetuação da vida terrena através da memória representada nos lugares e objetos. Adquire, em parte por isso, uma aura de sagrado, e, logo, intocável, acessível a poucos e de feição sempre grandiosa, heroica, imutável e não suplantável. Seu valor é o da História e esta enquanto cristalização do fato, prova irrefutável do existido, se apresenta como a verdade por oposição à mentira, ao imaginado.



O museólogo significa, assim, o japonês modernizado, preso às compreensões ocidentais. Até chegar ao vilarejo nada se mostra sobre sua relação com as reflexões sobre as relações entre vida e morte; ele guarda o ato de existir na acepção racionalista da ciência e seu objeto de estima, bem como seu hobby de observar as vidas minúsculas no microscópio, atestam isso. Ou ainda quando recorre toda vez à sua autoridade para pensar na organização dos materiais reunidos pela velha e na composição do museu. Sobre este lugar tem por ele a ideia de um espaço no qual ficam preservadas para a eternidade partes significativas da História; o museu, lhe parece, uma ponte de acesso entre as diversas gerações, passadas e futuras. Tanto que vê com estreita preocupação a destruição de peças para dar vez a outras nos museus onde trabalhou, tem um exacerbado zelo pela preservação e levará um bom tempo para se compreender ante o projeto do museu do silêncio, visto só enxergar diante de si um amontoado de quinquilharias sem quaisquer relações entre si. As descobertas que fará e a condição na qual se verá metido para sempre no âmbito de descoberta dos assassinatos, entretanto, o levará a compreender de uma fez por todas a ideia que se oculta na criação deste espaço.

No novo trabalho, essa personagem passará por uma série diversas de aprendizagens: refletir sobre as vidas e os movimentos microscópicos toda vez que tem sobre a lâmina mínimas existências e, por extensão, quando se entrega à responsabilidade de saber qual objeto melhor preserva a essência do morto para a eternidade – isso depois das lições oferecidas de maneira enviesada pela velha sempre mal-humorada, lições, portanto, apreendidas por um espírito observador – é uma delas. Se não um deus que rege as existências mesmo que este seja um afeito às medidas racionais como recorda o museólogo a frase do irmão mais velho, um princípio tudo rege: o da mutabilidade das formas. A natureza e o tempo estão sempre atentos a fazer ruir o existente e morrer, logo, não se trata de uma oposição ao viver, mas uma das extensões no contínuo jogo cíclico de mutabilidade das formas.

Também é ressignificado o conceito de museu e, por conseguinte, de monumento. Ao invés de uma sucessão ordenada de objetos ou artefatos significativos de uma cultura ou de um momento da História, o museu aqui se constitui, em parte, num apanhado de objetos que suscitam a recriação de existências individuais e anônimas. Eis outra das acepções de ser um museu do silêncio. Seu único interesse é contar a história dos que não passarão à História a partir de uma reunião de possíveis afetividades – objetos / partes que revelam situações definidoras das individualidades mas capazes de produzir no espectador uma nova narrativa reveladora, a um só tempo, do sujeito evocado pelo objeto e do espectador em relação com ele.

Nisso tudo, não há nada de estranho. Misterioso a Edgar Allan Poe? Talvez. Mas há uma literatura atenta para com a ressignificação de algumas determinantes consideradas imutáveis – tarefa cara, aliás, à literatura contemporânea que em grande parte tem se deixado guiar por obviedades ou o mero exercício criativo da forma; não se trata propriamente da substituição de um modo de pensar por outro mas na restruturação dos sentidos – para estar vivo é preciso sentir o pulsar mutável da vida e este consiste, em parte, da atividade criativa de reordenamento das coisas no mundo. Se a maneira como se apresenta esse apelo se descreve estranha porque não é a comum que nos mostra nosso pensamento marcado pelas dicotomias, a melhor palavra para tratar não é essa. Talvez inovação. Inovador porque criativo e desautomatizado, fora das nossas limitadoras condições de acreditar que tudo se resume preto-no-branco.  


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