“Realismo dos fantasmas da periferia: o pensamento do realismo mágico”: uma apresentação

Por Anna More*

Thiago Roney. Foto: Arquivo pessoal.



O estudo de Thiago Roney sobre a nova narrativa hispano-americana tem sua origem em uma convicção: o argumento de que houve uma decadência da tradição literária, desde seu ponto ápice no chamado boom da publicação dos anos 1960 e 1970 até sua versão massificada ou ironizada recente, é enganoso. Mesmo que essa trajetória literária da nova narrativa hispano-americana seja geralmente correta, é uma história limitada. De fato, até o momento atual, um dos estilos mais associados com a nova narrativa hispano-americana, o realismo mágico, continua a ser empregado por autores em outras regiões. Roney menciona vários — Salman Rushdie, Junot Díaz, Mia Couto — mas poderia ter incluído outros, como Yuri Herrera, Marlon James, Gayl Jones e Colson Whitehead.¹

A consequência dessa observação é dupla: o estilo mais identificado com a nova narrativa hispano-americana, consagrado pelo sucesso internacional de Cien años de soledad, de Gabriel García Márquez, não pode ser explicado apenas pelo contexto regional e pelo período limitado. Ou seja, quando na cultura popular massificada a América Latina é cada vez mais associada ao realismo mágico (como exemplificado pelo filme da Pixar Encanto), esse estilo, conforme a observação de Roney, não é exclusivamente latino-americano. A segunda consequência, ao reconhecer que o realismo mágico transcende fronteiras e aparece em novos contextos regionais, é a necessidade de uma definição formal que conecte esses exemplos globais. O que Roney chama de “lógica formal” do realismo mágico é um núcleo que se transforma: “transcendendo suas determinações materiais iniciais, passando a ser virtualmente disponível para novas obras, com condições históricas similares e outros materiais, capaz de atualizá-la e renová-la.”

Mas qual é essa lógica formal? Roney retoma a interpretação mais conhecida do realismo mágico como a “não disjunção” entre dois sistemas culturais e narrativos: o sistema do “real” e o sistema da “magia”. Nos romances hispano-americanos, o “real” se materializa em perspectivas narrativas associadas ao Estado, ao Império e à Ciência, ou seja, à modernidade impulsionada pelo capitalismo global em suas versões coloniais, imperiais e desenvolvimentistas. A “magia” expressa as diversas formas de tradição popular, com crenças e práticas resistentes a explicações científicas e racionais. Ao combinar os dois no conteúdo e na perspectiva narrativa, o “realismo mágico” gera um contraste e até um confronto sem domínio e resolução claros. O resultado pode ser interpretado como uma superação do conflito e choque entre os dois polos, sendo denominado “mestiçagem” ou “transculturação”, ou pode ser visto como um sinal do fracasso dos dois polos.² Na segunda interpretação, o realismo mágico pode indicar a cultura tradicional em vias de desaparecimento devido ao contínuo desenvolvimento do capital ou pode diagnosticar a incapacidade do desenvolvimento do capital de superar completamente a cultura tradicional regional. Em ambos os casos, o realismo mágico está subordinado a um conflito regional, cultural e identitário.

Para propor que o realismo mágico segue uma lógica formal, Roney incorpora e desvia das linhas conhecidas da crítica desse estilo. Um aspecto chave para essa reinterpretação é o reconhecimento de um elemento recorrente na tradição narrativa hispano-americana: a presença dos fantasmas. O exemplo mais conhecido é Pedro Páramo, de Juan Rulfo, obra importante para o argumento de Roney, romance que gira em torno dos fantasmas de uma comunidade sob o domínio de um cacique local após a Revolução Mexicana. Embora seja um exemplo superlativo, é representativo da interpretação dos fantasmas proposta por Roney. 

Nessa interpretação, o fantasma não é um resíduo da cultura popular religiosa, nem um espírito que simboliza uma essência transhistórica da identidade americana. Muito menos é um indício de um drama psicológico ou individual. Os fantasmas são, na leitura de Roney, a essência da lógica formal: formas que são também ruínas, sinalizando o choque de tempos, a persistência de um passado mal resolvido pelo desenvolvimento impulsionado pelo capitalismo global e pelos traumas das tentativas sucessivas de domínio. O realismo mágico deve ser entendido, assim, como “uma inovadora experimentação relacional entre os signos narrativos ‘real’ e ‘maravilhoso’”, que permite “tornar visíveis os invisíveis espectros hispano-americanos relacionados à mitologia do poder moderno, produzindo, assim, uma consequência singular e, ao mesmo tempo, genérica — no sentido duplo de geral e generativa — como forma literária do pensamento, o qual sugere ser, portanto, não um ‘realismo mágico’, mas um realismo espectral.”


O realismo espectral pode, portanto, desempenhar uma função semelhante à das imagens dialéticas propostas por Walter Benjamin.³  No entanto, a forma-fantasma se distingue da imagem dialética. Não é produto de tempos congelados. Os fantasmas são entes narrativos que jogam entre visibilidade e invisibilidade, ser e não ser, matéria viva e morta, renovando os conflitos passados no presente. Nesse sentido, os espectros são tanto as ruínas de projetos de desenvolvimento passados, ou os poderes autocráticos que os implementaram, quanto ameaças do seu poder contínuo, inclusive no futuro. Para Roney, o espectro é um ente essencial de conexão entre passado e futuro, um lembrete que a ficção não é apenas um apêndice a um projeto político e, portanto, subordinada a ele, mas um modo de compreender a história que, a sua vez, condiciona a política no presente. O espectro é a forma da história, alternativa e contraposta à história aparente contada a partir do poder e do capital.

Além da inovação crítica ao identificar a importância do espectro no realismo mágico, Roney também inova no entendimento da sua forma estética ao empregar a abordagem de Alain Badiou para traçar a trajetória da sua história literária. Embora qualquer história de romances possa ser discutida, o ponto mais importante do argumento de Roney é registrar a trajetória de uma estética que manifesta uma verdade em si: emergente inicialmente para depois ser totalmente materializada em obras que abraçam sua lógica. No caso do realismo mágico, ou realismo espectral hispano-americano, Roney argumenta que a verdade exposta é a do capitalismo global com suas alianças nas estruturas de poder autoritário regional: “o capitalismo tardio se aproveita dessas disjunções, mesmo se reduzidas, utilizando-as no desenvolvimento desigual e combinado para a reprodução do capital, atuando ainda no período de sua financeirização. De qualquer modo, ainda que não tivesse mais disjunções nos modos de produção, ou elas fossem irrelevantes, os produtos dessas disjunções em outras dimensões da realidade social, principalmente na cultura e no poder, continuam predominantes na América Latina, por exemplo, nas nossas ‘democracias’, que combinam a disjunção entre o sufrágio universal e uma incipiente participação popular em instituições do Estado moderno com a violência das leis não escritas das oligarquias regionais.”

Chegamos, então, ao ponto mais interessante e poderoso da inovação crítica de Roney. Como artefato vivo da chegada do capital aos pontos regionais na América Latina, o realismo espectral pode ser testemunho da renovação do capitalismo em sua forma “primitiva” assim como das estruturas de poder necessárias para providenciar esse acúmulo, sejam estaduais ou extra-estaduais, ou uma combinação das duas. Essa observação, junto com a flexibilidade inerente à forma do realismo espectral, responde a uma verdade que se revela na continuidade da acumulação primitiva. Contra a história teleológica, a crítica marxista tem retornado, nos últimos anos, ao argumento de Rosa Luxemburg, para quem a acumulação primitiva não é uma etapa, mas um movimento predatório contínuo do capitalismo nas periferias imperiais.⁴  Será que essas fronteiras já estão exauridas, como se previa há algum tempo? Será que existe uma lógica combinatória do capitalismo na era da financeirização que continua criando novas fronteiras de extração e trabalho humano? Se o realismo espectral continua vigente em contextos novos, talvez ele registre a semelhança desses contextos, no mesmo sentido que o próprio capitalismo busca novas regiões de extração.

O estudo de Roney não chega a investigar essas transmigrações, mas deixa aberta a porta para novas pesquisas ao deslocar a verdade imanente à forma narrativa de uma história regional. Para produzir um estudo sobre essa verdade, Roney teve que revisitar essa história regional com uma nova abordagem. Agora, outros podem levar essa interpretação a outros contextos e obras, incluindo as que ainda serão imaginadas e escritas. Essas novas pesquisas enfrentarão desafios interessantes ao reduzir o realismo mágico, ou espectral, a uma “lógica formal” que ultrapassa conteúdos regionais. Qual seria a relação entre esse realismo espectral e formas identificadas pela crítica como o Afrofuturismo? A história materializada pelos fantasmas é sempre da disjunção global entre o capital (com seus requisitos de uniformidade, previsão e logística eficiente) e o extrativismo exaustivo? Ou há outras verdades históricas mais locais e menos análogas nos novos exemplos? Finalmente, dadas essas histórias não encerradas, qual seria o papel político da arte, sua necessidade persistente em um mundo que já declarou várias vezes a sua morte? Para aproximar-nos de uma hipótese, precisamos, assim como Roney, começar com uma convicção: as obras continuam sendo escritas, lidas e recebidas, em formas literárias, visuais e cinematográficas. A arte materializa fantasmas, mas não é, ela mesma, um fantasma. Ela é um caminho para um futuro coletivo transformado pela imaginação.

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Realismo dos fantasmas da periferia: o pensamento do realismo mágico
Thiago Roney Lira Borges
Editora Patuá, 2025
344p.

Notas:
1 Yuri Herrera, Señales que precederán al fin del mundo (2011); Marlon James, Black Leopard, Red Wolf (2019); Gayl Jones, Palmares (2021); Colson Whitehead, The Underground Railroad (2016).

2 A fortuna crítica sobre o realismo mágico é extensiva e inclui reflexões feitas pelos próprios escritores. Como nota Roney, o exemplo da primeira tendência na crítica, pode citar o estudo clássico de Irlemar Chiampi e da segunda no estudo de Idelber Avelar, a sua vez desenvolvido a uma teoria regional em Alberto Moreiras. A sua vez, a crítica hispano-americanista também se posiciona contra a apropriação e distorção da tradição pelo contexto internacional, que ignora autores e contextos de publicação e leituras regionais. Talvez o maior crítico da tendência regionalista é Ángel Rama, argumento que seria uma dobradiça entre as duas tendências mencionadas ao focar o estudo na alegoria do fracasso de Os rios profundos de José María Arguedas. 

3 Sobre as imagens dialéticas, ver Auerbach (2007).

4 O argumento de Luxemburg é fundamental para um entendimento do papel do imperialismo e extrativismo na continuidade do capitalismo global. A crítica mais conhecida da retomada da postura de Luxemburg se encontra em David Harvey, The New Imperialism. Para a relevância de Luxemburg para o imperialismo ibérico do século XVI, e suas consequências, ver Anna Morte e Daniel Nemser.

Obras citadas:
AVELAR, Idelber. The Untimely Present: Postdictatorial Latin American Fiction and the Task of Mourning. Durham: Duke University Press, 1999.
AUERBACH, Anthony. “Imagine No Metaphors: The Dialectical Image of Walter Benjamin.” Image [&] Narrative [e-journal], 18, 2007. Disponível aqui.
HERRERA, Yuri. Señales Que Precederán Al Fin Del Mundo. Madrid: Editorial Periférica, 2011.
JAMES, Marlon. Black Leopard, Red Wolf. New York: Riverhead Books, 2019.
JONES, Gayl. Palmares. Boston: Beacon Press, 2021.
LUXEMBURG, Rosa. The Accumulation of Capital. Translated by Agnes Schwarzschild. London: Routledge, 2003.
MORE, Anna e NEMSER, Daniel. “Mercado’s World Market: Race, Accumulation, and Articulation in the Iberian Slave Trade”. Hispanic Review. (em prelo)
MOREIRAS, Alberto. The Exhaustion of Difference: The Politics of Latin American Cultural Studies. Durham: Duke University Press, 2001. 
POBLETE, Juan. “The Boom, the Literary, and Cultural Critique”. Journal of Latin American Cultural Studies, 2019.
RAMA, Ángel. Transculturación narrativa en América Latina. Buenos Aires: Ediciones El Andariego, 2007.
WHITEHEAD, Colson. The Underground Railroad. New York: Doubleday, 2016.

*Anna More é professora doutora e pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB). Possui graduação em História e Literatura Americana – Universidade Harvard (1993), mestrado (1997) e doutorado (2003) em Línguas e Literaturas Hispânicas – Universidade da Califórnia, Berkeley. Entre 2002 e 2013 foi professora no Departamento de Espanhol e Português da Universidade da Califórnia, Los Angeles. Foi professora visitante na Universidade Stanford em 2017. É autora de Soberania Barroca: Carlos de Sigüenza y Góngora e o Arquivo Crioulo do México Colonial (Editora da Universidade da Pensilvânia, 2013) e organizadora de Sor Juana Inés de la Cruz: Obras Selecionadas, uma Edição Crítica Norton (2016). Atualmente trabalha num livro sobre a teoria e a prática econômica do comércio de escravos no início do Atlântico, provisoriamente intitulado Necroeconomia: Capitalismo Racial e o Início do Tráfico Ibérico de Escravos.

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