Orfandade poética


Por Beatriz Martins

Ilustração: Sakuya Higuchi


este é um poema que eu queria ter lido para minha avó. há exato um mês, eu perdi a minha avó. e de certa forma perdi o poema. porque ele foi feito para ser lido a vovó.

não li o poema. às vezes eu tentava conversar com vovó e ela dizia minha filha por favor minha filha volte amanhã eu não quero esse negócio chato nos meus ouvidos hoje – o aparelho auditivo – eu não quero conversar eu quero estar aqui com a minha filhinha; minha filhinha que não caga, não come, não chora. a boneca de vovó era uma perfeição de filho, principalmente a alguém com mais de 90 anos e que gosta de companhia para assistir Malhação.

vovó desenvolveu uma habilidade incrível ao longo da vida. podia dar vida a meros objetos, podia se teletransportar no tempo, podia criar outros tipos de tempo. um dia, nos surpreendemos quando um velho amigo da família disse que vovó teria sido registrada errado – se em seus documentos constam 93 anos, esta não seria sua verdadeira idade.

sabe o que é um dia acordar e perceber que um documento ou uma idade não vale de nada – nascendo um ano pra frente, um ano pra trás – redescobrindo um ano nos cantos do quarto ou quando se esquece de ir ao banheiro: ter uma idade para cada pessoa de sua vida. mamãe acha que vovó tinha 94 anos. seu amigo sustenta fielmente que vovó tinha 96 anos.

para mim, vovó tem 100 anos.

vovó só sabia escrever uma palavra que, não por acaso, era o seu nome: Modesta. mas esta palavra ela escrevia com esmero, como se fosse capaz de escrever todas as outras palavras do mundo, mas nenhuma outra palavra seria capaz de ser escrita por vovó. não obstante, toda poesia de mundo vovó conhecia. ou ela mesmo tecia.

meu deus, por que não li este poema a vovó. vovó precisava deste poema, ela ia entender tudo, assim, na mosca. este poema não diz nada mas toca tudo toca tanto que às vezes parece que sou vovó por um breve levíssimo segundo em seus 90 anos. talvez eu o leia para mim mesma quando estiver nos meus 70 anos – me é impossível a longevidade de vovó.

se um dia, se só por um momento, vovó me visita num sonho, eu num galope corro e a faço esperar e espere eu lembrar do poema não vá, mas ele diz mais ou menos assim, que você se curou de ser grande. achei. ele diz o seguinte, vovó: 

Meu Deus, me dá cinco anos.
Me dá um pé de fedegoso com formiga preta,
me dá um Natal e sua véspera,
o ressonar das pessoas no quartinho.
Me dá a negrinha Fia pra eu brincar,
me dá uma noite pra eu dormir com minha mãe.
Me dá minha mãe, alegria sã e medo remediável,
me dá a mão, me cura de ser grande,
ó meu Deus, meu pai,
meu pai.

e esta emoção que sinto, este algo muito maior que se desperta em mim e cai em lágrima no rosto, meu deus, nem isso ainda se compararia a ler este poema a você, vovó. o nome dele é "Orfandade", de Adélia Prado. desde que você se foi, vó, todo mundo ficou um pouco órfão.


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