Primo Levi, entre o horror, a palavra ou o silêncio

Por Sergio Nudelstejer



Em abril de 1987 recebemos a triste notícia sobre o suicídio do escritor Primo Levi. Quando um escritor se suicida é difícil não reinterpretar seus livros à luz de seu último ato. E a tentação é particularmente forte no caso de Primo Levi, já que grande parte de sua obra nasceu de suas próprias experiências em Auschwitz. O calor e sentido humano de seus escritos o converteram num símbolo para seus leitores; no símbolo do triunfo da razão sobre a barbárie do genocídio. Mas, para alguns, sua morte violenta questionava esse símbolo. Em certos casos, o suicídio de um escritor é visto como a conclusão lógica de tudo o que escreveu ou como uma contradição irônica, mais que o resultado de uma tormenta puramente pessoal.

Primo Levi apareceu como um dos intelectuais mais incisivos e mais francos entre aqueles que experimentaram a dor do Holocausto e sobreviveram para narrar tudo o que viveram. Seria difícil encontrar alguém além dele capaz de expor a alma e o sofrimento do homem perseguido com maior eloquência. Italiano de nascimento, de família judia assentada em Piamonte depois da expulsão da Espanha em 1492, e químico de profissão, Levi nasceu em Turim, uma das mais industrializadas cidades da Itália, no dia 31 de julho de 1919, filho de um reconhecido engenheiro elétrico. Cresceu durante os anos anteriores à Segunda Guerra Mundial na relativa comodidade que então conhecia a classe média e num tempo quando aquele país não apoiava nenhuma segregação ou perseguição.

Matriculou-se na Universidade de Turim em 1937 para obter sua formação em Química. Por ter entrado um ano antes da promulgação das leis raciais fascistas que, junto com outras restrições, proibiam que os israelitas na Itália usassem as escolas públicas, o permitiram concluir os estudos. Graduou-se com louvor em 1941, mas em seu diploma aparecia a frase “di razza hebraica”. Essa foi a sua primeira experiência pessoal frente à discriminação por causa de suas origens. Como lhe revelariam o tempo e as experiências posteriores, esta discriminação finalmente foi o catalizador para que Levi se tornasse uma das vozes mais poderosas e objetivas que enfrentaram a indignidade, a humilhação, a vergonha e a culpa implacável associada à perseguição. Foi em 1943, já durante a guerra, quando Primo Levi se uniu a um grupo de revolucionários que assim como ele esperava que logo se juntaria ao movimento de resistência chamado “Justiça e Liberdade”. Mas, ainda no fim desse mesmo ano foi capturado pela milícia fascista e enviado a um campo de prisão em Fossoli. Ficou aí algumas semanas. Até que, em 21 de fevereiro de 1944, foi anunciado que todos os judeus desse campo sairiam no dia seguinte para um destino desconhecido. Disseram-lhe apenas que se preparassem para uma longa viagem. No dia seguinte, 650 pessoas foram alocadas em 12 vagões e souberam então para onde iam: Auschwitz.

Ao chegar, as crianças, os velhos e a maioria das mulheres foram “tragados pela noite”. Noventa e seis homens e 29 mulheres foram enviadas aos campos de concentração de Monowitz-Buna, Birkenau e Auschwitz respectivamente; o restante levado para as câmaras de gás. Das 125 pessoas enviadas aos campos de concentração apenas três retornaram à Itália. Uma dessas três foi Primo Levi. Anos depois, quando ele já havia se adaptado novamente a uma vida normal, se sentou para escrever as memórias sobre os 20 meses que passou no inferno.

Suas duas primeiras obras – É isto um homem? e A trégua, descrevem a descida do homem ao inferno. O primeiro dos livros, apesar de seu tema, não é uma obra desalentadora. Primo Levi não titubeia em narrar para nós os mais incríveis detalhes dessa crueldade nascida da “mística da esterilidade”, tampouco a apresenta em tons escuros para fazer ressaltar seu ponto de vista pessoal. Paradoxalmente, o que brota do livro é um sentido de valor do homem, da busca pela dignidade mantida consigo a todo custo: “Pela primeira vez, então, nos damos conta de que a nossa língua não tem palavras para expressar esta ofensa, a aniquilação do homem. Num instante, por intuição quase profética, a realidade nos foi revelada: chegamos ao fundo. Mais para baixo não é possível. Condição humana mais miserável não existe, não dá para imaginar. Nada mais é nosso: tiraram-nos as roupas, os sapatos, até os cabelos; se falarmos, não nos escutarão – e, se nos escutarem, não nos compreenderão. Roubarão também o nosso nome, e, se quisermos mantê-lo, deveremos encontrar dentro de nós a força para tanto, para que, além do nome, sobre alguma coisa de nós, do que éramos.” Primo Levi se tornou o prisioneiro 174517, número que lhe foi tatuado no braço.

Os primeiros volumes de memórias de Levi representam uma espécie de Odisseia e Ilíada da alma. O curioso é que mesmo tendo passado quase vinte anos entre um e outro não existe nenhuma separação na continuidade rítmica. É embaraçoso falar de beleza literária quando se trata de uma narração do maior crime de todos os tempos – mas Primo Levi não fez mais que testemunhar relatando sua própria vivência em Auschwitz num estilo que lhe era próprio, com um talento que havia sido absurdo negar.

Em É isto um homem? (1947), a forma e a estrutura, utilizando palavras do próprio autor, eram de importância secundária para registrar situações objetivamente de modo que nunca fossem esquecidas. Em suas primeiras tentativas para explorar o fenômeno da sobrevivência, Levi escreveu mais que de um ponto de vista objetivo, de um ponto de vista baseado nas situações reais, para relatar o que foi a chegada ao campo de concentração, de como obteria comida ou como lhe atribuíam o trabalho e ainda como era alguém escolhido fosse para viver ou para morrer.

Em A trégua, narra-se o longo périplo de retorno da Rússia à Itália. É o livro do retorno, uma odisseia da Europa entre a guerra e a paz escrita em 1963. Começa com a apocalíptica aparição, num Auschwitz já abandonado pelos nazistas, de quatro cavaleiros que, recortados contra o céu de neve e com metralhadoras silenciadas, observam como Primo Levi e um camarada do campo sepultam um amigo na fossa comum. São cavaleiros do Exército Vermelho.

O estilo sóbrio, singular, de Levi, refletem uma mente guiada pela razão e pelo profundo respeito à palavra escrita. Através de sua ênfase à objetividade, seu enfoque afastado e suas corretas observações (aguçadas por sua disciplina científica), deixou respostas emocionantes aos seus leitores. E isso se fez devido ao seu talento e não porque lhe faltasse paixão, dor ou frustração. Se dignou a si próprio e aos leitores ao permitir que os fatos falassem por si e que o leitor pudesse experimentá-los e interpretá-los dentro de seu próprio limite emocional. Como testemunha e sobrevivente, nunca se viu influenciado ou corrompido pelo ódio ou pela necessidade de vingança. Tampouco tratou de provocar ódio ou uma sede de revanche. Sua magnanimidade e sua integridade moral lhe dão o maior valor aos seus relatos e às trágicas vivências. Parece um milagre que pessoa de tão sensível temperamento e tão fino equilíbrio intelectual tivesse saído do pesadelo da destruição e da barbárie e ainda assim preservar a sensibilidade e a mente questionadora do aluno de Química que era antes da guerra, mantendo ainda a inteligência e acuidade de um sobrevivente que viu mais da vida e da morte do que a maioria dos homens.

Num de seus textos expressou: “Até este momento que escrevo isto, e a pesar dos horrores de Hiroshima e Nagasaki, a vergonha dos gulag, a inutilidade da guerra do Vietnã, o genocídio do Camboja, os ‘desaparecidos’ da Argentina e muitas outras atrocidades das estúpidas guerras que já presenciamos, o sistema dos campos de concentração e extermino continua sendo único tanto em extensão como em efeito. Em nenhum outro lugar ou momento alguém pode ver ou viver um fenômeno tão inesperado e complexo; nunca se extinguiu tantas vidas humanas num lapso de tempo tão curto e com uma combinação tão lúcida de engenhosidade técnica, fanatismo e crueldade”.

O autor teve grande admiração pelo conhecido filósofo e escritor do século XVI François Rabelais, a quem chamava de “mon maître”. Obteve de Rabelais sua crença de que o estado de miséria e sofrimento podia e devia também conter o potencial para um mundo melhor. Portanto, se o e elemento científico pudesse se combinar com o humano, nasceria daí coesão e harmonia e uma nova voz poderia ser criada. Foi precisamente com esses conceitos que encontrou sua própria “nova voz” para nos descrever uma etapa de sua existência que marcou dolorosamente nosso século.



Como escritor, Primo Levi deixou de ser simples testemunha do Holocausto para se tornar um grande ficcionista. Depois dos primeiros livros mencionados, fez uso de seus conhecimentos e talentos para produzir: Histórias naturais (1967), com o qual recebeu o Prêmio Bagutta; Vício de forma (1971); A tabela periódica (1975), que lhe valeu o Prêmio Prato; A chave estrela (1979), obra ganhadora do Prêmio Strega; Momentos de reparação (1981); e Se não agora, quando? (1982), vencedora do Prêmio Capiello e do Prêmio Viareggio. Também é autor de um livro de poesia, Shemá, e uma antologia de contos que formam um de seus livros mais impressionantes: Os afogados e os sobreviventes (1986).

Sua obra Momentos de reparação nos remete de certa forma ao romance de Aleksandr Soljenítsin, Um dia na vida de Ivan Deníssovitch, porque se faz dessa sorte de qualidades especiais que necessitam os seres humanos para fazer possível qualquer tipo de sobrevivência em meio à barbárie dos campos de concentração.

O último livro escritor por Levi, Os afogados e os sobreviventes, lança luz em relação à sua forma de agir. Enquanto É isto um homem?, A trégua e A tabela periódica são livros de esperança, o livro de 1986 é uma pesada meditação sobre o significado do extermínio nazista visto à distância de quatro décadas. Neste livro recorda como os soldados nazistas atormentavam seus prisioneiros dizendo-lhes que só por um milagre conseguiriam salvar-se com vida e ninguém acreditaria neles se chegassem a contar o acontecido.

Em Os afogados e os sobreviventes Primo Levi descreve o quão difícil é viver tendo sempre as memórias do Holocausto. O suicídio é, precisamente, a maior preocupação dessa obra. Muitos dos sobreviventes terminam se matando. Ele chega a dedicar todo um capítulo ao filósofo belga Jean Améry, quem havia estado em Auschwitz com Levi e que se suicidou em 1978. Diz o próprio Primo Levi que qualquer suicídio “está aberto a uma constelação de interpretações”, mas que ele considera no caso específico dos sobreviventes, a origem em suas próprias experiências pessoais. Para os que viveram aquela trágica época, “o período de prisão sem importar quão longe fora, é o centro de sua existência por inteira”. E numa passagem em que cita Améry, Levi nos deixa uma chave esclarecedora sobre sua própria morte: “Aquele que foi torturado permanece torturado. Aquele que sofreu tormentos já não pode encontrar seu lugar no mundo. A fé na humanidade – rompida com o primeiro golpe e logo demolida pela tortura -  jamais pode ser recobrada”.

Mas enquanto Jean Améry era um homem que tratava de afastar-se, de levantar-se em represália contra a violência, Levi se descreve como “uma pessoa incapaz de responder a um golpe com outro golpe”. Respondeu à violência de Auschwitz dando a conhecer a tragédia e seu significado. Agudamente sensível ao sofrimento alheio, sentia culpa por não conseguir fazer mais por aqueles que ao seu entorno sofreram e morreram naquela obscura época.

Primo Levi se suicidou a 11 de abril de 1987 jogando-se do quarto andar de seu apartamento pela escadaria até encontrar a morte. O informe policial considerou um suicídio, mas muitos dos que o conheceram e estiveram com ele tempos antes não aceitaram o veredito – a dizer a verdade, recusaram essa tese por conta própria. Seja suicídio ou acidente, a morte de Primo Levi significa que uma poderosa voz foi silenciada prematuramente.

Já nos anos 1950, depois de uma nova edição de sua obra É isto um homem?, o escritor foi aclamado como autor de uma superlativa literatura do Holocausto. Com seus testemunhos póstumos e sua poesia, ocupou seu lugar entre os mestres das letras italianas contemporâneas. Não resta dúvida que, com a passagem do tempo, e quando suas obras forem mais conhecidas, Primo Levi será considerado um dos mais importantes autores da literatura do século XX.

Sua morte foi, sem dúvida, uma grande perda. Enquanto vivia, era inspirador pensar que se encontrava trabalhando em mais um livro. Sem ele – pelo menos para quem pensa na vida ativa da mente – o mundo terá se tornado num lugar mais escuro. O maior consolo que fica é a noção de que, quando um grande escritor morre, temos e sempre teremos a presença vigorosa de sua obra.  

Primo Levi nos deixou de legado uma obra significativa que merece ser lida e conhecida. Em seus livros nem tudo é escuro e tenebroso, embora o tom da narrativa se assemelhe a uma alegoria em que aparecem esses milhões de fantasmas que tentam, sofrem e rondam em cada frase de seus livros. Por sua vez, não omite de sua história o frágil brilho de luz que aparece nas raras ocasiões por entre toda a maldade que conheceu e viveu. Seu humanismo era puro, não contaminado, estava totalmente fora deste mundo de negações. E seu suicídio é como uma forte badalada que ressoa para despertar as consciências adormecidas e metidas numa letargia.

Ligações a esta post:
>>> Seis livros de Primo Levi que são antídotos contra o esquecimento

* Este texto é parte de uma comunicação de Sergio Nudelstejer publicada aqui, na revista Colóquio, do Congresso Judaico Latino-americano.

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