Breve romance de sonho, de Arthur Schnitzler



Por Pedro Fernandes



Depois da leitura de uma manchete no jornal sobre o suicídio de uma tal baronesa D. (de Dubieski), Fridolin parte em disparada, primeiro para o suposto hotel onde ela havia sido levada pelas quatro horas da manhã e em seguida para o necrotério, a fim de confirmar se a morta era a misteriosa figura que se oferecera em sacrifício numa orgia na noite anterior para protegê-lo do mesmo fim ao qual foi condenada. Esse episódio se desenvolve tarde da noite – aliás, esse é período preferido de Arthur Schnitzler na composição desse romance – e, ao reencontrar o legista amigo, este, curioso com o interesse àquela altura, o questiona indiretamente ante a justificativa primeira que se tratava de um trabalho: “Eu já estava pensando”, diz Adler, “que tinha sido algum peso na consciência que o tivesse trazido até aqui no meio de uma noite de sono”. Fridolin assente: “É, tem a ver com consciência pesada, ou, ao menos, com uma questão de consciência”.

A retomada desse diálogo, aparentemente pequeno, no sentido de pouca importância, para uma narrativa tão repleta de situações mais interessantes, se deve pelo reconhecimento do protagonista do que o amigo chama de “peso na consciência”. A expressão se assume como uma das várias chaves de leitura de Breve romance de sonho. Trata-se de um romance sobre a incapacidade de um homem em administrar um peso na consciência. Essa condição se estabelece a partir de um perigoso jogo de revelações desenvolvido entre Fridolin e sua companheira Albertine. Casualmente, a mulher revela sua quase traição num flerte nada discreto com um jovem dinamarquês, por quem se sente inclinada a tudo – renunciar ao casamento, à filha, ao seu futuro. Embora Fridolin responda o caso com outro ainda mais indiscreto que se passou com ele (e bem sabemos da liberdade dos homens para tanto), a história da companheira, reiterada dias depois num sonho de proporções adivinhatórias e proféticas, torna-se uma contínua sombra na vida do jovem médico.

Desconcertado com o caso, ele mergulha num torvelinho de situações, que, embora pareçam uma busca desesperada e ao acaso sobre um lugar perdido no mundo ou ainda uma tentativa de reencontro com um passado perdido de idealizações, recorrente em todo início de envolvimento amoroso, o que não deixaremos de perceber é a angústia de um homem interessado em recompor o ideal de senhor, no sentido de posse e centro de todas as coisas, incluindo Albertine. O que o incomoda é a maneira radicalmente realista com que ela narra o episódio do flerte sem se imiscuir em peça passiva de um jogo galanteador, o que, é sempre de agrado da posição-homem. Tanto é que depois dos vários envolvimentos com outras mulheres a posterior constata no comportamento de todas a entrega vulgar para a volúpia.

A maneira como Arthur Schnitzler constrói esse impasse envolvendo o protagonista num labirinto em que este não sabe que o Minotauro é ele próprio é, sem dúvidas, um dos feitos mais significativos na história do romance. Mesmo porque, só um olhar de fora, incapaz de se colocar favorável a esse homem de consciência em crise, é capaz de observar as múltiplas nuances de uma narrativa puramente sugestiva, nunca integralmente reveladora.

Acompanhamos, por exemplo, todo o suspense em torno da visita de Fridolin ao necrotério, mas tal e qual a personagem saímos do exame minucioso do cadáver sem saber ao certo da identidade dessa mulher. Essa é uma situação que esclarece muito bem o tom do romance perfeitamente justificado no seu título. E, se tudo aqui se encontra em vias de, o que a situação suposta evidencia, mais que uma crise do casamento ou uma ruína do amor, é a deterioração de uma posição do macho enquanto figura nuclear do modelo social no Ocidente. Todo o peso de consciência que nos revela, pouco a pouco, um homem possessivo, é produto dessa impossibilidade de se reconhecer à margem de um lugar forjado imaginária, cultural e socialmente desde tempos imemoriais. Não deixemos de observar que todos os gestos de Fridolin em relação à família, às coisas que designam uma aparente ordem de tudo, tornam-se esvaziados de sentido, ao ponto de se interessar continuamente pelo adiamento de retorno ao lar ou mesmo o interesse que o assalta sobre a possibilidade de escapar de onde vive e recomeçar outra vida em outro lugar.



A incerteza sobre o desenvolvimento das situações vividas pelo protagonista deste romance (exceto os trânsitos corriqueiros da vida em casal e no trabalho) permitem muito facilmente (e a própria narrativa assim reconhece numa infiltração metaficcional oferecida pelo próprio Fridolin que se coloca questionador dos acontecimentos) situarmos tudo como produto dessa consciência perturbada. Ele e Albertine aparecem sempre enredados numa tormenta de desejos obstruídos. Os episódios relatados um para o outro, o tumultuado sonho dela que envolve posse, submissão, obstinação amorosa e morte confundindo-se com a orgíaca noite misteriosa de Fridolin estão mais para a fantasia, um jogo que os dois, pela conveniência da ordem familiar, são incapazes de tornar realidade. Isso é notável no frio e respeitoso distanciamento assumido entre eles, a rotina tornada conveniência e a certeza de Fridolin sobre o fim do casamento. Nesse sentido, para filha sobra o papel de elemento figurativo da obstrução erótica.

A atmosfera onírica e sombria que levou a crítica a associar a narrativa de Breve romance de sonho aos contos de E. T. A. Hoffmann – e por conseguinte poderíamos associar ao universo narrativo de Nikolai Gógol de Avenida Niévski – que amplia a justificativa do narrado enquanto imaginário de uma consciência transtornada pelo ciúme, é melhor evidenciado pela astúcia do escritor austríaco em situar o drama na vida de um homem cuja personalidade aponta para um ceticismo e uma dura objetividade sobre o mundo. Provém daí a certeza (bem sabemos) ilusória do Ego e dele certo instinto de centro do mundo pouco a pouco corrompido sem que Fridolin reconheça efetivamente essa condição. Enredado, por exemplo, no mistério oferecido pelo antigo amigo de faculdade, Nachtigall, com quem é arrastado para a noite de orgia, Fridolin concebe apenas os envolvidos nessa sociedade secreta como representantes de uma comédia e não se percebe que ele é o bufão, seja porque não participa do código moral dos envolvidos na cena, seja porque se acredita o único possuidor de uma identidade sólida e possível de revelar àqueles que o fustigam.

Conta-se que Stanley Kubrick, quem se baseou neste romance para o seu último filme, De olhos bem fechados, definiu Breve romance de sonho como uma história sobre o medo. Essa definição encontra respaldo nas observações apresentadas aqui: o medo dos amantes de se reconhecerem integralmente nus um para o outro (e mesmo a impossibilidade disso porque assumimos máscaras mais ou menos convenientes); o medo do homem ante a revisão de seu princípio de ordem das coisas; o medo de revelação de si para si e para o outro. Mas, esta é ainda a história dos embates do homem com os interditos forjados na constituição daqueles princípios moralizantes incapazes de serem seguidos sem que tragam o peso terrível da angústia. Este é, enfim, um romance que diz e muito sobre nossas ilusões e o peso que a constatação delas impõe nas certezas que temos nós mesmos.

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