Olga Savary

Olga Savary. Foto: Daryan Dornelles



A notícia sobre a morte de Olga Savary (Belém, 21 de maio de 1933) tardou a chegar às páginas dos jornais. Foi registrada no dia 15 de maio de 2020, divulgada no início da tarde do dia seguinte nas redes sociais, incluindo as do blog Letras in.verso e re.verso, e os registros mais antigos nos cadernos de cultura datam de depois das 20 horas; foi no jornal O Globo. Depois, os outros veículos replicaram as chamadas de mesmo tom modesto.

As duas situações atestam algo que se reflete para além da triste crise que atravessa o jornalismo cultural no Brasil: o país desconhece a literatura e o trabalho da mulher que integra uma rica geração de criadoras na poesia, se considerarmos ao seu lado Hilda Hilst (19302004) e Adélia Prado (1935), para citar as agora mais famosas, ou as esquecidas Zulmira Ribeiro Tavares (1930―2018), Lupe Cotrim (19331970), Marly de Oliveira (19352007), Myriam Fraga (1937―2016), Eunice Arruda (1939―2017), entre outras. O desconhecimento não expõe apenas a certeza de que este país despreza seus criadores, como este país é afeito a fenômenos estranhos quando o assunto é poesia: apesar da existência de poetas em toda a parte, somos os que menos leem poesia. E porque são inumeráveis os poetas, a falta de vivência neste gênero pela leitura é registrada inclusive entre os poetas. Entre os críticos, bom, há os que assumem descabida e publicamente, sem enrubescer, que não gostam de poesia e está tudo certo.

“No Brasil, poeta morre de fome. Mas sou apaixonada por este malandro chamado Literatura e não viveria sem ele”. A afirmativa de Olga Savary está numa entrevista que concedeu para a jornalista Marina Caruso publicada na Marie Claire em junho de 2011 e corrobora com as constatações apresentadas acima, além de acrescentar outra: sua paixão pela literatura. A chamada deste material designa a autora pelo epíteto que ficou recorrente nos textos que sublinharam sua morte, “a poeta do erotismo”. Alguns dos seus leitores colocaram na mesma conta do jornalismo cultural degenerado o que lhes parecem a redução simplista de uma poeta multifacetada. O que não é verdade.

Magma, publicado em 1982, foi o primeiro livro de poesia erótica escrito por uma mulher no Brasil, feito que ela própria sempre não deixava de sublinhar em suas entrevistas, e com o qual ficou reconhecida. Depois, ao lado dessa realização foi a mulher quem primeiro organizou uma antologia de poesia erótica, Carne viva, publicada dois anos mais tarde e reunindo nomes improváveis da literatura brasileira neste tema, como Mario Quintana. E, se isso ainda não for suficiente, na mesma entrevista referida acima, Olga Savary assim se define: “Sou um ser erótico. Gosto disso.” Na entrevista que concedeu a Clauder Arcanjo na revista Papangu, em maio de 2007, a poeta completa que considera “um elogio reconhecer meu pioneirismo em escrever poesia erótica, a atitude audaciosa de publicar Magma e Carne viva. Até porque erotismo é fundamental, erotismo é o divino no humano, erotismo é vida.”

A Álvaro Alves de Faria, entrevista reunida em Palavra de mulher, a poeta ressaltou que sua “relação com a escrita, com a palavra, é uma relação apaixonada, de tesão, sensual” ou seja, tal dimensão envolve o trabalho da criação poética ainda que não seja a poesia erótica o produto final. O designativo em nada empobrece a riqueza criativa da poeta. Pelo contrário, a amplia. É que o erótico nada tem a ver com a conotação pejorativa assumida para este termo e, certamente, a motivação negativa dos que se interessam por desvincular a poética de Olga Savary do erotismo. O termo assume-se, claramente naquela acepção formulada por Roland Barthes, segundo a qual a escrita e a leitura constituem-se em investimentos eróticos por se guiarem pelo princípio de desestabilização dos sentidos que nos colocam confortáveis no mundo. E não é esta a mise-em-scène do texto literário? Toda atividade criativa pressupõe altas doses de erotismo, porque como era de acordo Olga Savary, o erotismo vivifica, é expansão.

Enquanto tema, é óbvio que seu universo poético não se reduziu ao erótico. Nelly Novaes Coelho, no prefácio que escreveu a Sumidouro (1977), diz que “Olga Savary, como criadora, define-se pelo difícil espírito de síntese que está na natureza da verdadeira poesia – a que se quer verdade essencial do objeto por ela revelado, ou desvendamento do oculto que nele jaz. Daí não nos surpreender que, na brevidade de cada poema seu (de Espelho provisório a este Sumidouro), encontremos as marcas de nosso tempo – o tempo do pós-guerra 45, o tempo que, nesta segunda metade do século, está vivendo a aceleração da metamorfose iniciada nos primeiros anos, com a arrebentação dos ismos. E acrescenta que seus poemas “são, pois, dos que revelam com nitidez o jogo das forças culturais / existenciais que vêm dinamizando a criação poética contemporânea. E se é verdade que não podemos delimitar com segurança todas essas forças (devido à multiplicidade caleidoscópica das formas, temas e linguagens que se afirmam, simultaneamente, no panorama poético brasileiro), não é menos verdade que há algumas que emergem com maior clareza e com relativa nitidez podem ser identificadas. É o caso da tríplice problemática: Tempo / Espaço / Poesia, que dos anos 45 até o momento tem passado por uma evidente alteração.”

Sumidouro foi o segundo livro da poeta, publicado sete anos depois do livro de estreia, Espelho provisório. Depois deles, vieram Altaonda (1979), Natureza viva (1982), Hai-kais (1986) forma poética da qual foi tradutora de alguns dos nomes mais significativos, Matsuo Bashō, Yosa Buson e Kobayashi Issa, e a primeira mulher a executá-la no Brasil Linha d’água e Berço esplêndido (1987), Retratos (1989), Rudá e Éden Hades (1994), Morte de Moema e Anima Animalis (1996). Os doze títulos chegaram a ser reunidos na antologia Repertório selvagem (1998). Prolífica, uma catalogação de toda sua obra poética demandará alto esforço, visto que, Olga Savary publicou muitos textos esparsamente em várias revistas e jornais, de dentro e fora do Brasil. No período da ditadura militar, vários de seus poemas chegaram a cumprir a função de preencher os espaços cortados pela censura, o que dizia ter sido esta a única vantagem dos silenciamentos, “trazer a poesia para as primeiras páginas dos jornais”.

Olga Savary. Foto: Lygia Clark


E, por falar em jornais, um dos destaques na sua vivência com o jornalismo foi a participação na fundação do Pasquim, um tabloide semanalmente marcado pelo diálogo com a contracultura da década de 1960 e reconhecido por seu papel de oposição ao regime militar. Reiteradas vezes, Olga Savary disse ter sido esquecida desse feito ― “os louros ficaram com os homens da redação, mas eu fui uma das fundadoras do Pasquim”, disse à Marie Claire, ao se referir a Jaguar, com quem foi casada, Tarso de Castro, Sérgio Cabral e Ziraldo. No texto “Poesia, humor e amor no Pasquim” para as memórias desse jornal reafirma: “Vivi intensamente o período pré-inicial, sendo a única mulher-jornalista-escritora-tradutora deste hebdomanário, palavra que nos fazia rir às gargalhadas, embora o termo fosse correto.” Ficou no periódico entre 1969 e 1982 e foi onde iniciou sua vivência com a tradução, a escrita de resenhas sobre trabalhos de vária natureza. Para o Pasquim escreveu a coluna “As Dicas” que registrava desde recomendações de lugares para comer e beber a opiniões sobre livros, música e artes em geral: “a palavra Dicas não existia até então, sendo uma redução de indicações. Não registrei e acabou que fiquei sem este pioneirismo, um dos vários pioneirismos da minha vida.”

Juntamente com o trabalho de tradutora feito que dedicou toda a vida, principalmente aos escritores hispano-americanos como Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Carlos Fuentes, Federico García Lorca, Pablo Neruda, José Lezama Lima, Octávio paz, José Semprún, Laura Esquivel, Mário Vargas Llosa ―, Olga se interessou por estabelecer a vez e a voz de vários nomes da poesia brasileira que a ela chegavam pela sua curiosidade de leitora e pesquisadora ou dos lhe batiam à porta tal como fez ela própria ainda jovem ao ir ter com Carlos Drummond de Andrade e apresentá-lo aos seus poemas. Assim, além de Carne viva, organizou uma Antologia da nova poesia brasileira (1992) e Poesia do Grão-Pará (2001), livro que reúne mais de uma centena de poetas da região norte do Brasil.

A dedicação extremada ao fazer literário, que incluiu a escrita de textos em prosa (contos, ensaios, recensões críticas) se justificou por duas razões: a necessidade financeira, sobre qual nunca deixou de mencionar nas entrevistas; e sua dedicação apaixonada ao trabalho com a palavra, algo que começa ainda na primeira infância sob a reprovação da mãe, que sempre quis a filha dedicada à música e a filha que entre um escrito e outro sonhava ser bailarina.

Na referida entrevista para Álvaro Alves de Faria, Olga Savary diz que a poesia sempre foi seu alimento, “desde a mais tenra infância, e me alçou dos profundos sofrimentos da vida. Sem a poesia eu poderia ter enlouquecido de dor.” Certamente. Sua vida não se marcou apenas pelo périplo geográfico devido a conturbada relação entre os pais e dela com a mãe, mas pelas dolorosas perdas, o filho Pedro Savary, foi morto em Natal depois de um longo histórico de envolvimento com drogas. Além, é claro, da própria aridez da realidade. “O ser humano não pode suportar tanta realidade. Precisamos todos de verdade e de beleza que a criação na arte nos dá”, disse, reafirmando certa profissão-de-fé repetida por outros poetas.   

Álvaro Alves de Faria sublinha a obsessão de Olga Savary para escrita: “Escreve em todo lugar. Em casa, na rua, no ponto de ônibus, de dia, durante a noite, de madrugada, a toda hora. E tudo é motivo para escrever.” Essa contínua movência é o que faz com que o todo criador encontre os instantes de epifania ― sempre fundamentais a todo escritor e mais ainda aos poetas. “Acho que todo poeta é um caçador solitário”, disse. Caçador que almeja outro mundo pela sua renovação. No prefácio que escreveu para Espelho provisório, Ferreira Gullar diz mais ou menos ao constatar que a personalidade da poesia de Olga Savary reside em certa “necessidade de recuperar a unidade ou de afirmar o real como íntegro. Noutras palavras: ela nos diz que há momentos, coisas ou pessoas, em que a realidade é plena, sem fissuras, sem contradições. No fundo, como todo poeta verdadeiro, Olga denuncia a alienação de nossa vida: o constante, o dia-a-dia, é a experiência falhada, a palavra não dita, o momento mal vivido, a falsa existência.”

O melhor da sua poesia repousa numa prática que ficou recorrente entre algumas outras poetas ― e de maneira muito visível na poética de Dora Ferreira da Silva, para citar um nome de gerações anteriores à de Olga Savary e praticante do poema enquanto manifestação da poesia; falamos sobre a abertura do poema para o universal. Nesse sentido, a poética de Olga Savary privilegia o material verbal em sua dimensão simbólica, sem extrapolar as fronteiras para campos que quase sempre perturbam a natureza da poesia. Mesmo quando se envolve com os temas recorrentes entre os característicos da cultura e identidade nacionais ou os usos da linguagem indígena na dicção do poema.

A literatura de Olga Savary é de uma escritora irrequieta e muito atenta ao tratamento sincero com a palavra. “Escrevo e depois elaboro. Porque é preciso trabalhar sem tirar a espontaneidade.”, diz a Giovanni Ricciardi (Auto-retratos, 1991). Agora, toda essa inquietude encontra-se dispersa numa obra sempre aberta a nos colocar diante de outras sugestões e regiões do texto poético, a tarefa fundamental de toda a boa poesia.


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