Aquiles e Odisseu: a fórmula memorável e seus ecos futuros

Por Marilena De Chiara
 
Ninguém é alguém, um só homem imortal é todos os homens.
Jorge Luis Borges, “O imortal”*

Aquiles velado e Odisseu, c. -470. Museu Britânico


 
1. O corpo e a mente
 
Uma fórmula é, ao mesmo tempo, uma sequência contínua — de operações, de palavras, de gestos — e uma interrupção. Quebra o fluxo anterior e sugere os passos a seguir, para que a retomada tenha mais intensidade e seja mais precisa. A natureza da forma dos poemas homéricos revela a sua natureza linguística dual: a Ilíada e a Odisseia são, ao mesmo tempo, canto e memória, invocação do presente e uma evocação do passado. Captam a história — mítica, mitológica e fundacional — por meio da sequência narrativa, interrompida por epítetos e fórmulas que reiteram a posição e a função de cada personagem e de cada intercâmbio ritual.
 
Aquiles é “o de pés velozes”, Odisseu é “ardiloso”. O primeiro é treinado para a guerra e a glória; o segundo, para a estratégia e a retórica. Ambos lutam em Tróia, ambos são pais e filhos, ambos são mortais. Aquiles e Odisseu são mente e corpo. A fórmula se materializa no conector, que abre o diálogo entre polos potencialmente opostos e revela a presença do negativo em uma foto.
 
2. A velocidade e eloquência
 
Os pés de Aquiles são a sinédoque que define seu corpo, aquele corpo que corre e grita sua fúria, que mata e se ajoelha diante da perda de Pátroclo. Aquiles é rápido como um deus, seu passo alado imprime na poeira o rastro da raiva, a paixão irresistível do sentimento.
 
“Hoje lemos a Ilíada com uma sensibilidade formada, entre outras coisas, por toda uma tradição de reinterpretar e reescritura de seu texto”, escreveu Gérard Genette em Palimpsestos, qualificando o eco do poema e as reencarnações de suas personagens, em tempos e contextos que fundem os horizontes de leitura do passado e do presente. Pat Barker, em seu romance O silêncio das mulheres, evoca os últimos cinquenta e um dias do décimo ano da Guerra de Tróia por meio das vozes que o poema silencia — ou se limita a insinuar — e, portanto, Briseida nos conta que Aquiles “sempre tinha a última palavra, mesmo quando falava com um deus.”
 
Odisseu é o mágico da palavra, o mestre da eloquência que constrói sua história enquanto se narra e (re)presenta, na combinação de verdade e mentira que desfaz a separação entre arte e vida. Com perícia técnica, ele conta, na corte dos feácios e posteriormente em Ítaca, a história de sua jornada pelo mundo conhecido, captura personagens e situações, reforça seu objetivo na exploração do conflito, pois entendeu que “a mentira exige de quem a elabora uma escrupulosa sabedoria artesanal: ordem, coerência, verossimilhança, analogia e construção”, como escreve Pietro Citati em Ulisses e a Odisséia.
 
A viagem é antes de tudo um deslocamento físico; os pés de Odisseu não são rápidos como os de Aquiles, mas alcançam mais longe.
 
3. O escudo e a túnica
 
Aquiles está mais furioso e ferido do que nunca: Pátroclo — seu Pátroclo — está morto, assassinado por Heitor, que o despojou de suas armas. Eram as de Aquiles e agora o de pés velozes necessita de outras, novas. Sua mãe (a ninfa Tétis) pede a Hefesto que as fabrique e assim contemplamos a ekphrasis mais citada da história da literatura ocidental: a descrição do escudo, a sequência verbal que traduz a continuidade temporal por meio do inventário.
 
O escudo é a fórmula cosmogônica (porque funda as origens e a distribuição do céu e da terra) e circular (porque reitera a alternância da vida e da morte), que mostra o espaço fora do campo de batalha, o cotidiano das ações humanas, memória e canto para o herói que ataca e defende. “Toda a ação da Ilíada torna-se um fragmento dentro da visão totalizante que o escudo de Aquiles proporciona”, aponta W. J. T. Mitchell em seu ensaio Image Theory sobre essa imagem que gerou tantas teorias.
 
O escudo protege e esconde ao mesmo tempo, como a túnica que Atena presenteia a Odisseu para que não o reconheçam quando ele finalmente chegar a Ítaca. O viajante compartilhou seu plano-mestre com a deusa e ela enrugou sua pele e apagou seus cabelos loiros, espalhou manchas em seus olhos e o vestiu com o manto rasgado e sujo. O disfarce de Odisseu é a sinédoque de sua mente, aquela mente que se protege e se esconde. “Mesmo as roupas que fiz para ele não eram inteiramente adequadas: ou muito leves, ou muito pesadas, ou muito fortes, ou muito delicadas”, lembra Penélope, agora protagonista do romance A odisséia de Penélope, de Margaret Atwood. Porque a arte da linguagem é instável, sempre buscando o peso, a espessura e a textura adequados à intenção.
 
4. Terra e mar
 
“O verdadeiro herói, o verdadeiro assunto, o centro da Ilíada é a força. A força que é manejada pelos homens, a força que submete os homens, a força diante da qual a carne dos homens se contrai”, refletiu Simone Weil em “A Ilíada ou o poema da força”*. E a força de Aquiles se expande na terra, nos músculos, no braço que agarra o escudo, nas mãos que amarram o cadáver de Heitor e todos os dias o arrasta em círculos, levantando poeira e cinzas.
 
A cólera do guerreiro transforma o ocre em vermelho, com o sangue da devastação que renova a dor pela morte de Pátroclo. Então o rio Escamandro se irrita: Por que, Aquiles, sujas minhas águas com o sangue dos corpos? Por que matas? E a força agora persegue o herói, na forma de uma onda o oprime, o força a lutar. Aquiles corre com seus pés velozes, transpira, arqueja até que Hefesto chega para apaziguar o rio divino. Fogo contra água, para voltar à terra.
 
Odisseu também quer voltar para sua terra. É marinheiro de muitos truques, conhece o mar — suas correntezas e seus perigos —, sabe lê-lo e examiná-lo. Resiste e às vezes cai diante de suas tentações — humanas, mágicas, marinhas —, do mastro de seu navio ouve o canto das sereias, ali se refugia depois de matar o Ciclope e desencadear a ira de seu pai Poseidon. Escapa da feiticeira Circe pelo mar e assim chega à ilha dos feácios; a princesa Nausícaa está se banhando na praia com suas amigas, a nudez poderosa do viajante a surpreende. Na ilha descansa e narra suas peregrinações e de lá começa a viagem de volta a Ítaca. Dante reescreverá sua história, Odisseu não parará, desejará chegar às portas do mundo conhecido e cruzá-las, seu folle volo o condenará ao Inferno. Pois “viajar o mar, transgredir, encontrar o maravilhoso, enfrentar o Outro, atravessar a morte, narrar a própria história, tal é o destino de Ulisses desde sua primeira aparição no cenário mítico-literário”, escreve Piero Boitani A sombra do Ulisses.
 
5. O presente e o futuro
 
Aquiles vive na reação imediata, seu olhar está ancorado no presente, Odisseu observa o passado com o olhar voltado para o futuro, para os dois a experiência da temporalidade se desdobra na transição entre a história e sua construção. Porque a marca da guerra permanece no corpo e na mente.
 
Quando Odisseu desce ao Hades encontra a alma de Aquiles: “‘Poliarguto Odisseu, divino Laertíade / por que deixaste a rutilância de Hélio-Sol / para ver mortos num lugar desaprazível?’”* — pergunta o de pés velozes. O herói, glorificado na terra e perdido no submundo, experimenta a solidão eterna porque “a vida, na Ilíada (como na Bíblia ou em Guerra e paz) é essencialmente o que não se deixa valorizar, medir, condenar ou justificar pelo que vive. Só se julga a si mesma na consciência tirada de sua inefabilidade”, lembra Rachel Bespaloff em seu ensaio Sobre a Ilíada. A vida que também é morte e para ela retorna eternamente. É por isso que Alice Oswald canta, em Memorial, uma elegia fúnebre, canta as mortes de Tróia num poema que é um cemitério oral, um resíduo do passado que se materializa no presente da palavra e no futuro da sua leitura.
 
5. As lágrimas
 
Aquiles chora com a notícia da morte de Pátroclo e Odisseu chora com a canto do aedo Demódoco. As lágrimas são água e corpo e sal, nascemos e morremos chorando. O fluido tão humano, demasiado humano, completa o círculo e o renova. Os heróis choram, suas lágrimas são a fórmula memorável de sua humanidade, da fragilidade do desejo e de quão ilusório é o retorno.
 
Chora Xanto, o cavalo de Aquiles, quando o corpo de Pátroclo desaba na areia e o rio é inundado por sangue. Chora Hécuba, que assiste de cima dos muros a morte de seu filho Heitor, e chora Laertes ao reconhecer seu filho Odisseu. Dois pais, Laertes e Príamo, fecham os dois poemas: a história volta às origens. Na Ilíada, um pai implora ao assassino de seu filho que o devolva o corpo e assim permita conceder as honras fúnebres. Na Odisseia outro pai sela a continuidade da linhagem com seu filho e neto Telêmaco, à luz do pacto imposto pelos deuses. E desta vez ele chora de alegria.
 
Porque as lágrimas também são dúbias, a névoa nos olhos do poeta cego que outro poeta cego, séculos depois, entoará: “o rumor das Odisseias e da Ilíadas que era seu destino cantar e deixar ressoando concavamente na memória humana”* (Jorge Luis Borges em “O fazedor”, é claro).
 
Notas da tradução
* As traduções assinaladas são de Davi Arrigucci Jr., Alfredo Bosi, Trajano Vieira e Josely Vianna Baptista, respectivamente. As demais são nossas a partir do texto original em espanhol. As referências seguintes foram atualizadas para as edições brasileiras, quando o caso.
 
Referências
 
MITCHELL’S, W. J. T. Image Theory: Living Pictures. Londres: Routledge, 2017.
WEIL, Simone. “A Ilíada ou o poema da força”. In: BOSI, Ecléa (Org.) A condição operária e outros escritos sobre a opressão. Trad. de Therezinha Langlada e Alfredo Bosi. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
BESPALOFF, Rachel. De la Ilíada. Trad. de Rosa Rius. Barcelona: Minúscula, 2009.
CITATI, Pietro. Ulisses e a Odisseia: a mente colorida. Trad. de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa: Cotovia, 2005.
BOITANI, Piero. A sombra de Ulisses. Trad. de Sara Margelli e Carlo Alberto Dastoli. São Paulo: Perspectiva, 2005.
GENETTE, Gérard. Palimpsestos. La literatura en segundo grado. Trad. de Celia Fernández Prieto. Madrid: Taurus, 1989.
BARKER, Pat. El silencio de las mujeres. Trad. de Carlos Jiménez de Arriba. Madrid: Siruela, 2019.
ATWOOD, Margaret. A odisseia de Penélope. Trad. de Celso Nogueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
BORGES, Jorge Luis. O fazedor. Trad. de Josely Vianna Baptista. In: Obras completas (1952-1972). São Paulo: Editora Globo, 2000.
BORGES, Jorge Luis. O Aleph. Trad. de Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
HOMERO. Odisseia. Trad. de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2011.
HOMERO. Ilíada. Trad. de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2020.
OSWALD, Alice. Memorial. Trad. de Jaume Coll Mariné. Vic: Jardins de Samarcanda, 2020.
ALEXANDER, Caroline. La guerra que mató a Aquiles. La verdadera historia de la Ilíada. Trad. de José Manuel Álvarez-Flores. Barcelona: Acantilado, 2015.

** Este texto é a tradução de “Aquiles y Odiseo: la fórmula memorable y sus ecos futuros, publicado aqui, em Jot Down.


 

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