Postagens

Mostrando postagens de abril, 2025

Ryan Coogler, separatista e conciliador em Pecadores

Imagem
Por Alonso Díaz de la Vega As últimas semanas foram, pelo menos para mim, bastante populares. Em luto pela morte de Val Kilmer, assisti a um filme do qual só ouvia falar em comerciais de rádio quando era criança: A Ilha do Dr. Moreau (1996). Também me diverti com uma história de detetive, Beijos e tiros (2005), tão complicada quanto qualquer mistério de Raymond Chandler, mas amenizada pelas piadas. Já no ritmo, eu estava revisando thrillers de John Frankenheimer e dos cineastas de Hong Kong Andrew Lau e Alan Mak Siu-Fai; também assisti a filmes de gangsters do colossal Johnnie To.   Minha dieta ultimamente tem me deixado nostálgico da época em que Marlon Brando e Val Kilmer estrelavam um filme de monstros feito com absoluto realismo por Stan Winston; também de uma época em que Frank Sinatra atuou em um thriller político cujos delírios conspiratórios eram expressos ainda mais pelas imagens do que pelo enredo, e até mesmo por uma época em que o cinema de Hong Kong, embora cerebra...

Ritmo, humano e crítico, mas sobretudo ritmo, e Cuti

Imagem
Por Vinícius de Silva e Souza   Pouco nos surpreende a Companhia das Letras ter publicado toda uma coletânea dos poemas de Cuti, pseudônimo de Luiz Souza. Há uns anos a editora tem se empenhado na missão de acrescentar ao seu catálogo os grandes nomes dos Cadernos negros , uma série de publicações de literatura afro-brasileira iniciada em 1978 e que se tornou um importante espaço para divulgação da produção dos autores negros no Brasil. Daí, saíram Oswaldo de Camargo, autor de obras como 30 poemas de um negro brasileiro e A descoberta do frio , e também a grandiosa coletânea Não pararei de gritar , de Carlos de Assumpção.   Assim, o nome que parecia mesmo ausente neste catálogo específico da editora era o de Cuti — agora, não mais. Apresentado em julho de 2024, Ritmo humanegrítico é uma antologia que possui o diferencial de, ao contrário da grande maioria de antologias, não reunir apenas textos antigos, contemplando períodos longínquos da trajetória de um autor, mas também ...

Decomposição de The call of Cthulhu

Imagem
Por Eduardo Galeno But the horror, set and stable, Haunts my soul for evermore.   — Lovecraft Desenho de Cthulhu por Lovecraft   1   Nas entranhas da escrita lovecraftiana, o modernismo frio só pode corresponder a uma sociedade quente. O modo no qual supunha a atitude que contempla o desejo não resolvido, impossível, dessa figura esverdeada, com seu bafo gélido, seus múltiplos tentáculos e expressão aterrorizadora, chamada Cthulhu, não é mesmo um tipo específico de resposta? Não se sabe ao certo, pelas linhas que sucedem o conto, da necessidade instaurada ao povoamento da entidade em circunstância e por intermédio do serviço dessa esfera social. Pode ser caracterizado, entretanto, o nivelamento inerente encontrado (muito) antes, em e após 1928. O chamado de Cthulhu , é verdade, se coloca numa contramão, mas contínua, do modernismo literário, porque amplia o horizonte para além do princípio utópico-redentor e, por outro lado, refaz um percurso de um universo que nem mesmo ...

Sete poemas de “Animal de bosque” (2021), de Joan Margarit

Imagem
Por Pedro Belo Clara Joan Margarit. Foto: JM Website     OS DOIS NEVÕES   Vendo nevar tanto em todo o lado, sem sairmos de casa, tu e eu lembrámos a neve onde encontrámos o nosso amor. Ainda mal nos conhecíamos e passámos o dia até de madrugada a passear pelas ruas iluminadas por uma branca luz, cálida e fria. E descobrimos uma nova intimidade pelos dois até então desconhecida. A tua mão, enluvada na minha, tinha começado a salvar-me a vida. Passaram já sessenta anos, luminosos e escuros: mesmo nos mais duros sentimos o calor dessas ruas nevadas. Neste último também, quando, debilitado pelo linfoma e pela químio que não me cura, com o mesmo sorriso, e ao meu lado, me ajudaste a compor estes poemas. Ofereço-tos agora. Este é para mim um dos anos mais felizes da minha vida.     MUSEUS   Sempre me aborreceu e me cansou observar os retábulos de igrejas, quadros representando cenas bíblicas, monarcas a cavalo, luxuosas vestes onde o pintor se exibe em cada pre...

Boletim Letras 360º #636

Imagem
Rubem Fonseca. Foto: Arquivo do escritor. LANÇAMENTOS   O experimental teatro de Dylan Thomas chega em língua portuguesa — uma amostra .   Ao pé do bosque torto (Under Milk Wood) é a mais radical das obras de Dylan Thomas. Escrita por encomenda do departamento de drama da BBC, a peça estreou na rádio em 1953, sendo depois remontada em 1964. Nas duas ocasiões, quem orquestrou a coisa toda foi o grande Richard Burton, o que transformava tudo numa reunião de talentos galeses. O País de Gales, sua realidade e sua língua, está também por trás de boa parte da tal radicalidade do texto: a liberdade que ele toma com o vocabulário, a morfologia e a sintaxe do inglês (claramente seguindo os passos do James Joyce do Finnegans Wake ) pode ser diretamente ligada a essa situação de “biculturalismo”. Elementos da língua, da onomástica, da realidade e do cotidiano da terra natal do escritor são parte central do que acaba por gerar na peça uma paisagem sonora absolutamente singular. Na peça o...

“Um certo sorriso”, de Françoise Sagan: breve romance sobre o tédio

Imagem
Por Amanda Fievet Marques Françoise Sagan. Foto: Pictorial Parede   O segundo romance da escritora francesa Françoise Sagan, Um certo sorriso , publicado em 1956, possui aparentemente uma trama simples. Uma jovem estudante de Direito, Dominique, tem um caso fugaz com um homem bem mais velho, Luc, o tio de seu namorado que é, além disso, casado.   Mas, na verdade, trata-se de um breve romance sobre o tédio. O caso com Luc é somente o contraponto aventuresco à sensação predominante de tédio, de vazio. É Luc quem propõe logo nas primeiras páginas a Dominique “uma aventura”, nesses termos (cf., Sagan, 1956, p. 37).   Para o filósofo francês Vladimir Jankélévitch, que publica apenas alguns anos depois, em 1963, o livro A aventura, o tédio, o sério , “o tédio está no centro de um universo minguado e diáfano onde todas as coisas estão envoltas pelo véu cinza da indiferença” (Jankélévitch, 2017, p. 79, tradução nossa).   Pode ser que apesar do enredo simples, portanto, a ...

O abismo de São Sebastião, de Mark Haber

Imagem
Por Pedro Fernandes Mark Haber. Foto: Nina Subin Mark Haber se mostra com O abismo de São Sebastião um escritor fascinante devido sua capacidade inventiva de forjar todo um universo no interior daquele que já conhecemos fazendo da ficção não uma extensão da realidade, como é recorrente na literatura, mas uma realidade autônoma porque crível e sustentável pela sua própria estrutura. Essa qualidade é alcançada pela maneira sutil de se infiltrar na ordem histórica como conhecemos, sem o interesse de desarticulá-la, mas de mostrar como suas engrenagens, fruto das relações humanas, se organizam e constituem o que percebemos com o valor de verdade.   O entrecho narrativo é simples, mas não as possibilidades de leitura, sempre a depender de como o leitor se inicia no texto ou dele coloca em evidência certos extratos de acontecimentos. Trata-se do convívio entre dois críticos de arte unidos, separados e talvez reunidos, em torno de um interesse obsessivo: uma tela de aproximadamente trint...

Grand tour, de Miguel Gomes, um filme capaz de fazer milagres

Imagem
Por Alonso Díaz de la Vega   Entre as cenas do cinema que mais me comove está a de uma multidão de crianças que, extasiadas, assistem a um espetáculo de marionetes em Os incompreendidos (1959). François Truffaut se concentra nos rostos dos pequenos, e assim os planos abrangem o que parece ser uma infinidade de sorrisos desdentados, de olhos brilhantes, assustados ou até entediados. De repente, atravessa um plano com dois meninos mais velhos, Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud) e seu melhor amigo, René Bigey (Patrick Auffay), que planejam um furto sem prestar muita atenção aos bonecos que narram aparentemente o desfecho de “Chapeuzinho Vermelho”. O papel dos protagonistas é semelhante ao do crítico, que não deve se deixar ficar muito impressionado, enquanto as outras crianças representam o público ideal: aquilo que veem (mãos disfarçadas de lobo e outros personagens) é claramente falso, mas as crianças presumem que seja real; algumas parecem que vão chorar, enquanto outras gritam d...