A costa dos murmúrios, de Lídia Jorge

Por Pedro Fernandes


Não dá para reduzir esse livro a determinados rótulos, como os de romance pós-colonial ou romance denúncia ou ainda romance acerca da condição feminina. Ele é isso, mas não somente. Figura entre os da produção literária da portuguesa Lídia Jorge como o mais conhecido; tanto que chegou a ser adaptado para o cinema pela Margarida Cardoso.

Seu enredo de construção fragmentária e com variações no tom da narrativa - ora em primeira, ora em terceira pessoa - A costa dos murmúrios reduz-se já no texto-conto que lhe abre sugestivamente intitulado por "Gafanhotos" e com epígrafe do poeta e jornalista moçambicano Álvaro Sabino. Em "Gafanhotos", que narra o casamento de Evita, somos apresentados ao cenário e às personagens principais do romance. É também nesse introito que se instala a atmosfera paralisada que se mantém no decorrer da narrativa.

É do Stella Maris, um hotel de luxo de Beira, Moçambique, onde se dá toda a trama. Desde então, sabemos que o Moçambique por debaixo do Stella Maris é o Moçambique de fim dos anos 1960 no centro de um conflito colonial, no período ainda em que os portugueses instauram uma carnificina em nome do domínio de sua colônia. O fato é que o leitor não será, em momento algum, confrontado com o espaço heróico da frente de batalha. Do contrário. Todos os acontecimentos são mostrados pelo olhar da Evita, personagem isolada em si e isolada, de certo modo, do universo real onde se processam os acontecimentos de guerrilha. O que não impede, e isso está claro, que a visão aí processada seja menos cruel da que possivelmente seria se fosse o campo de batalha o universo central da narrativa.

Nesse instante, devo fazer um parêntese para antecipar ou esclarecer duas coisas: uma, é que numa guerra, não é apenas feita pelos que participam diretamente dos confrontos, mas é, e talvez, sobretudo, por aqueles que ficam distante dela. No romance, mulheres e famílias inteiras que saíram de seus espaços de origem para acompanhar seus maridos soldados numa imposição um tanto quanto ferrenha imposto pelo regime ditatorial (todas vivem em função dos maridos, à espera, no crochê, pelos cabelos passados a ferro...) Outra coisa, a segunda, é que Lídia Jorge foge de quaisquer esteriótipo de uma escrita feminina-feminista como ainda insistem algumas considerações ultrapassadas. A linguagem da violência não é aí apresentada de forma nem de forma amena, como se a escritora quisesse varrer para debaixo do tapete a sujeira histórica. Não. O retrato dos massacres e da matança indiscriminada de blacks - como são chamados os negros africanos - é só um exemplo disso que acabei de afirmar.

Ao casar-se com Luís, se não um matemático de nome, mas um estudante de matemática com futuro um tanto quanto promissor, Evita não imaginaria que ele fosse inserir-se nas forças armadas e ir ter em África lutar em nome de uma causa escusa. Com a desculpa de que nas forças armadas teria melhor condição de resolver sua questão financeira e consequentemente não desvincular da matemática, o que Evita vê é o total apagamento da figura do Luiz por uma admiração no seu extremo limite, pelo seu comandante. Não se trata de nenhuma atração homoafetiva. Longe disso. Ou antes fosse isso. Mas, a paixão do Luís é outra: é pelo status e pelo poder que a presença do Forza Leal impõe a todos. Tanta admiração findará em nada. Luís - e isso ficamos sabendo no "Gafanhotos" é assassinado pelos próprios da sua corja.

Viúva, Evita se dará ao "trabalho" de entender esse complexo cenário, compondo desde então, um gesto que é o de descoberta de sua própria lucidez nesse cenário tresloucado. Gesto significativo será o seu despir-se do "Evita" para ser tratada por "Eva" e o distanciamento que vai ocupando em relação ao seu recente marido - de "Luís" para "o noivo".

A costa de murmúrios firma-se pelo detalhe. Pelas curvas da memória. Pela busca de identidade que é um indivíduo, mas é também de um povo. A sua sintaxe é arma de reflexão sobre a humanidade e sua capacidade - um tanto quanto extraordinária - de perder-se em nome da dominação e do poder.


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