Ler a Odisseia (Parte VII)

Por Pedro Fernandes

Ulisses se apresenta para Penélope


O texto de Homero materializa através da linguagem as primeiras tentativas do homem grego em dominar o mundo pela razão. Ou, nessa esteira, esteja nascendo no poeta a consciência que só se revelará plena muitos séculos depois de que a palavra sendo intermediária entre o ocorrido e o narrado também pode construir universos tanto quando o universo empírico.

Novamente me reporto aqui ao episódio das sereias contado pelo próprio Ulisses no Canto XII. Primeiro, pensemos na atitude individualista do herói em somente ele ter acesso ao canto das sereias com marco de uso da razão sobre o mito. A simples premissa de que estariam aí prenúncios do mito como algo falso talvez seja vã. Depois, pensemos novamente como que o fato é narrado na Odisseia. É narrado não somente pelo poeta, mas pela personagem, como que, também numa leitura ingênua, Homero buscasse se eximir do fato de não está sendo fiel à empiria. Volto às duas questões adiante porque quero fazer um curto parêntese aqui. A necessidade do poema pela precisão do acontecido ou como que determinado fato surge no correr da progressão textual marca uma justeza da palavra às coisas que se perde no instante de interferência consciente do mito.

O marco de uso razão sobre o mito, como notado na ideia de Ulisses em ser amarrado ao mastro do navio para escutar o canto das sereias sem sucumbir a eles, não é matéria suficiente para se leia a associação mito-mentira. Afinal o que é o mito senão um fato acontecido, portanto fortemente ligado a um passado perdido, e que busca uma explicação, até certo ponto, racional sobre a ordem das coisas no mundo. Essa constatação é suficiente para entendermos que a pretensa negação do mito em detrimento da narração ficcional se dá por uma necessidade de presentificação da realidade. Isto é, está em ação um procedimento que visa quebrar essa relação distanciada assumida entre o ouvinte e matéria narrada, ou uma tentativa de apreensão do presente em lugar do convencionalismo do passado a ponto de o mito funcionar na narrativa como um instante de limitação dessa possibilidade de representação ao mesmo tempo como um instante de transcendência da própria limitação.

É evidente que a Odisseia está situada num passado, mas se distancia do passado no mito por duas razões: a primeira e talvez mais forte delas, é o passado histórico. Todos os fatos ocorridos com o herói épico são desencadeados a partir de sua saída de casa para o empreendimento da Guerra de Troia. Então, tem-se aí um passado datado que substitui o passado impreciso do mito. Já a segunda razão, está no próprio procedimento de presentificação dos fatos na narrativa. Homero se guia não somente pela construção de um narrador insuspeito que observa cautelosamente todos os passos do herói e lhe atribui a capacidade de condução de pelo menos metade da narrativa.

Esse último entendimento oferece-nos encaminhamentos para alcançar a segunda questão que ficou suspensa no início do texto. O afastamento de Homero não é apenas recurso narrativo para traduzir uma verossimilhança entre o dito e o ocorrido. Por mais que se averigue um traço da crise do mito, o narrador homérico ainda tem na sua forma o modelo pelo qual busca se guiar para composição de sua narrativa. Sua pretensa racionalidade vê-se, desse modo, limitada, cabendo-lhe duas instâncias de fuga – transferindo sua palavra para o herói e o herói transferindo-a para o mito. A constatação serve para entendermos que o papel da narrativa parece dirigir-se pela tentativa de apreensão da realidade empírica, mas já em Homero, assiste-se a impossibilidade, não apenas porque o real é de natureza complexa e incapaz de ser apreendido em sua totalidade, mas porque é fugidio, como uma superfície líquida ele escapa e o que fica é sempre o anacrônico. Daí a necessidade que nasce em Homero e chega até nós de invocação das musas que deve dar ao poeta a capacidade de apreensão do extraordinário e fazê-lo funcionar como realidade plena.   

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