A vida, a arte e a literatura através de Clarice Lispector


Por Neiva Dutra



Clarice Lispector passou por este mundo entre 1925 e 1977, vivendo uma época de muitas mudanças para a América Latina e para o mundo. Viveu a época do Manifesto do Surrealismo de 1924, a Depressão dos anos 1930, da Guerra Civil Espanhola e do assassinato de Federico García Lorca, da Segunda Guerra Mundial, da bomba atômica, o tempo de Che Guevara, a explosão dos Beatles e dos Rolling Stones, de Gabriel García Márquez, do Prêmio Nobel de Literatura para Pablo Neruda etc.

Clarice representa a escritora que, pela primeira vez na literatura brasileira, separou o sujeito em uma perspectiva feminina. Suas personagens são majoritariamente mulheres, surgem em mundos que as distinguem por sua habilidade de analisar e de observar. 

Seu conhecimento filosófico conforma as personagens, que expressam, através do fluxo de consciência, preocupações concernentes ao universo feminino ou como a mulher observa o mundo e que demarcam a diferença sutil entre o que é realidade e o que representa o discurso que a produz.

Está constantemente criando espaços discursivos estratégicos, espaços de resistência, utilizando uma inversão de padrões construtivos: é a linguagem figurada que inventa o nível da realidade; o jogo de vozes que se mesclam na narrativa, e, ao mesmo tempo observam com uma distância segura para estabelecer as devidas diferenciações e para captar o sentido daquilo que é narrado, em um deslocamento claro e estratégico, de tonalidades... outro dos ardis construtivos de Clarice...

É possível observar o quanto da personalidade de Clarice Lispector se encontra dentro e fora da sua narrativa, criando um novo discurso narrativo, que parte do desdobramento do ser dentro do ser. A condição feminina da escritora e a personagem feminina se fundem no discurso em que flui a consciência que leva as personagens a espaços íntimos de meditação. Isso é próprio da sua literatura e extremamente inovador para a literatura brasileira que se coloca entre a universalidade da forma literária, uma vez que a obra de Clarice está em sintonia com os grande revolucionários do romanesco, James Joyce, Dostoiévski, Virginia Woolf...

Além de dominar as formas das técnicas vanguardistas, Clarice Lispector sabia tirar partido destas, elaborando suas personagens femininas e suas consciências, vendo, para alem de cada uma, coisas que à primeira impressão são invisíveis, mas se evidenciam quando o relato avança.

Ela cria um jogo verbal tão elevado que nos faz misticamente partes dele. Por isso, um dos níveis que emprega é o nível psicológico ou o filosófico: a maioria das personagens tem conflitos internos de personalidade - inseguranças, medos, inconformidade consigo mesmas e com o mundo - com uma palavra se recolhem e com outra se levantam -, são rostos dela mesma ou prolongamentos do que desejou ser e não foi. Enfim, está em cada uma de suas personagens, como estas estão em alguma parte dela. É uma escritora excepcional, que viveu além de seu tempo, com uma voz poderosa e certeira. 

A experiência estética de Clarice Lispector, em parte, pretende talvez renovar por dentro o ato de escrever ficção. Seu estilo final - através do qual interroga seus próprios escritos e através deles a própria instituição da literatura - coincide com a entrada em suas narrativas de imagens degradantes onde predominam a pobreza extrema e a fome. Compelida, perto do fim de sua vida, a narrar o problema da injustiça social, para ele qualquer "grande" empreendimento literário tornara-se um ideal insensato, se não imoral, a narração mais importante da pobreza do mundo.

Sua ficção procura proclamar a supremacia do humano, os sentimentos do homem acerca do universo que o rodeia e o sustenta constantemente desordenado em relação a si e aos demais. A constituição complexa, particular e subjetiva, impregnada das impressões da escritora é a marca dessa literatura.

É, também, espantosa a capacidade de Clarice Lispector em atribuir às declarações e às palavras uma valorização sem precedentes, uma aparência de novidade, exaustivamente provocando os contornos dos significados. Demonstra, até mesmo, uma inquietação quanto às coisas que não foram escritas, que permanecem nas entrelinhas, sugerindo sempre novas possibilidades.


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