Entretons do filme “Temporada”: a Contagem de André Novais

Por Rafa Ireno


Mas não se avexe, não queira chuva em mês de agosto.
– Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas





Se Luíza não tivesse esquecido a carteirinha de estudante naquele dia, em São Paulo, Temporada teria me impressionado tanto? Acontece que minha amiga mineira esqueceu! Não entramos na sala de cinema e, logo depois, me mudei. Sempre desconfiei do destino, um pouco como Juliana – a protagonista da história. Mas, talvez, estivesse escrito que o filme de André Novais passaria alguns meses depois no Festival de Cinema Brasileiro de Paris, e que eu trabalharia como voluntário para a associação Jangada, organizadora do evento, nas tradicionais salas do l’Arlequin. Aqui, na França, era quase final de inverno, as árvores sem folhas, as pinturas insossas dos prédios, o céu constantemente acinzentado e o frio contrastaram bastante com as imagens da tela. Às vezes, somente quando partimos aprendemos a extensão das coisas, que ainda nos pertencem ou que ficaram para trás, pelo caminho durante a viagem.

Nunca fui à região metropolitana de Belo Horizonte, entretanto, algo me era familiar: as ruas de Contagem, onde Juliana vai trabalhar, pareciam com as de casa, no Jardim Ângela. A personagem principal passa num concurso para ser agente de controle a endemias na cidade mineira, visitando diariamente as casas dos moradores para eliminar possíveis focos de doenças. Ela se muda na frente para preparar o conjugado, alugado com a ajuda de uma prima das redondezas. O marido largaria o emprego e a reencontraria mais tarde; porém, Carlos nunca virá. O filme, então, cuida dessa suspensão na vida de Juliana, interpretada magistralmente por Grace Passô, que consegue através de seu corpo, gestos, olhares e silêncios, dar uma profundidade singular ao enredo. Em poucos segundos, indo dos sofrimentos aos prazeres, a atriz nos mostra diferentes tonalidades de sua temporada, colocando o expectador num lugar pouco definido entre solidão e liberdade, uma fronteira que se materializa de modo descontraído na imagem; que aparece no celular de Juliana:



Assim, diante desse dilema, o caminho de Juliana se desenha, ora pendendo para a tristeza, ora para o prazer de se descobrir sozinha. Enquanto isso, a vida continua envolta em silêncios, meias palavras, confissões, pausas, numa narração bem dos Gerais mesmo, que, infelizmente, nenhuma tradução é capaz de transpor com facilidade. Neste momento, fiquei curioso quanto à possível recepção de meus companheiros de sala: em primeiro lugar, porque a atmosfera recôndita dos mineiros pode ser difícil de atravessar até mesmo para os brasileiros, que dirá para os franceses. Além disso, as gravações aconteceram em julho/agosto, também no final do inverno, mas muito diferente do tempo chuvoso daqui. No Brasil, é seco, algo que implica diretamente no trabalho dos agentes de endemias. Quero dizer que a história está repleta de detalhes, bem aproveitados, que condicionam elementos importantes da narrativa, e que talvez escapem ao expectador.

Precisa-se considerar também que a representação esperada da periferia, comumente, refere-se a da violência explícita, na qual Cidade de Deus de Fernando Meirelles ou Tropa de elite de José Padilha se enquadram perfeitamente. Temporada inverte essa lógica. Um exemplo é a cena em que Hélio, interpretado pelo irmão do diretor, fala para Juliana que “a lagoa da Pampulha é esgoto também”. A protagonista tinha avistado o colega sentado na beira de um córrego a céu aberto, daí diz prontamente para o sujeito ir pensar num lugar mais bonito, “sô”. A resposta irreverente do amigo se completa pela lembrança de já ter nadado e pescado naquele lugar, sugerindo que, apesar das mudanças, algo resistia dentro de si na sua própria memória fortemente ligada à terra, à Contagem.

Se solidão e liberdade estabelecem um eixo importante no filme; têm-se, por outro lado, memória e resistência também como pilares da história, sobretudo, no que concerne à edificação de uma subjetividade coletiva do corpo negro, pobre e periférico sistematicamente apagada em nosso país. A violência existe, ela também mata embebida no cotidiano, na suposta segurança do emprego concursado, mal pago, exaustivo e sem perspectiva; na dengue assolando o país, no racismo; na fé de que as coisas vão melhorar; na inocência de Russão, outro funcionário da prefeitura, que, como solução para a emergência de ser pai, resolve abrir um salão de cabeleireiro na garagem de casa, sem nunca antes ter cortado cabelos na vida. Tudo tão familiar, parecia lá em casa, a violência suspensa na aspereza da rotina do pobre brasileiro, uma realidade muito distante dos frequentadores do Arlequin, em Paris.

Apesar dessas particularidades, de um modo geral, acredito que o público assimilou as nuances da narrativa, uma vez que André Novais conduz distintamente o roteiro. Logo, observa-se que se trata de um contador de histórias para quem o diálogo se destaca como um dos principais elementos da composição artística – aliás, coisa que o diretor faz desde seu curta Fantasma (2010). Mas, mais do que isso, sua perspectiva se estrutura através da quebrada, possuindo um ponto de vista “que olha com coerência e respeito para a periferia” como Enrico Azzano escreveu, durante o Festival de Tórino, na revista italiana Quinlan. Lá, ele também diz que Temporada constrói uma narrativa com corpos, cidades, casas, ruas, distantes da representação mainstream do Brasil como um pequeno manifesto dentro do próprio Cinema nacional¹. Igualmente, Nicolas Bardot, no blog francês Polyester, afirma que a película exibida agora no festival de Nantes “é apenas uma maneira de olhar para a vida e confrontá-la naquilo que não é apenas um monocromático do Pathos acinzentado. […] E o diretor consegue dar vida ao cotidiano de um bairro sem nunca passar pelo pitoresco. Há uma doçura benevolente no olhar que encontra o equilíbrio sútil para dizer as coisas sem as enfeitar, mas sem também o sensacionalismo da pobreza [poverty porn]”².

Tão irônico quanto problemático é observar que a recepção estrangeira pode ser mais flexível do que parte de nossa crítica. O Brasil parece sempre distante de suas próprias formas, principalmente, quando se depara com uma proposta que denuncia o racismo, o privilégio de classes, a desigualdade social ou a imparcialidade do cânone em nossas terras. Refiro-me à análise de Inácio Araujo, no dia 24 de setembro de 2018, para a Folha de São Paulo, que, comentando a premiação do festival de Brasília, diz ser “um salto impressionante, na medida em que o cineasta mineiro logrou algo só reservado aos artistas: fazer um filme capaz de interessar o espectador durante quase duas horas sem tratar de nenhum assunto, nenhum personagem, nenhuma paisagem, nada particularmente especial. […] Sim, não é um grande tema. E a paisagem de Contagem não é assim tão especial: parece qualquer periferia de classe média baixa, com seus bares, vielas, casas nunca terminadas. No entanto, é nesses elementos que o cineasta vai encontrar beleza. É com eles que exerce sua bela prosa”.

Vejam que este comentário, que se pretende um elogio, é feito através da ausência (apagamento?), da insistência de palavras como nenhum e qualquer em oposição ao termo especial. Mas, afinal, o que seria algo particularmente especial no Brasil? Quem decide isso? Quais os parâmetros deveríamos usar para eleger tal qualidade? Lê-se, com efeito, um julgamento desconhecedor da realidade apresentada pelo filme – a periferia tem muitas histórias assim como qualquer outro lugar! Em Temporada, o assunto é a solidão, a liberdade, o duro cotidiano, em suma, a vida da maioria dos brasileiros. Os personagens são Juliana, Russão, Hélio entre outros, e a paisagem é Contagem. Além disso, o crítico demonstra uma concepção de arte que reserva a genialidade única ao artista de “encontrar” a beleza, onde ordinariamente não se vê, privilegiando, assim, a individualidade. Enquanto há um esforço coletivo no proceder de André Novais, que não se resume apenas no ponto de vista formal de sua narrativa. Seu modus operandi se esparrama pela produção e pela escolha dos atores, misturando profissionais e amadores, amigos e familiares como seu pai e sua mãe. Ademais, a própria câmera contradiz essa impressão do crítico, uma vez que ela está sempre afastada, do outro lado da calçada, com os planos geralmente abertos, observando o ambiente sem ir na direção dos personagens, como se estivesse sentado no portão de casa, na viela, nos escadões… não há procura pela beleza. Novais viveu 30 anos em Contagem, inclusive, lugar em que trabalhou como agente de controle de endemias: as escolhas estéticas se ancoram num conhecimento material da periferia.

Por sinal, eu teria uma avaliação diferente daquela do crítico. Não classificaria o filme de Novais como sendo uma prosa, uma vez que a fotografia de Temporada dá um toque lírico à composição, concedendo certa andadura de poesia à obra como no quadro abaixo:



O trabalho de Wilssa Elsser, a diretora de fotografia, merece destaque, porque dá plasticidade ao longa-metragem por meio das linhas das janelas, das portas, do corpo, dos ângulos, pontos de fuga, volumes e profundidades. Cada objeto  copo de cerveja, saco de lixo, escada  concede ao enquadramento um aspecto poético, uma poesia do dia a dia de Contagem. Elsser, por exemplo, faz uma sensível manipulação das cores, que acompanha os passos de Juliana, atingindo o ponto de inflexão, na noite em que ela transa com um conhecido de Contagem, uma cena de fotografia íntima, num cômodo iluminado indiretamente pela luz da rua, onde dois corpos negros manifestam seus prazeres. Até esse instante, o azul era a cor predominante. A partir do outro dia, quando a protagonista retoma o trabalho, uma leve cor avermelhada se impõe até o final da narração. Essa alteração, porém, não ganha nenhum aspecto de superação, não significa que a personagem aprendeu a lidar com a solidão e será feliz, ou melhor, não se corre aqui o risco de cair numa comédia romântica hollywoodiana; pelo contrário, trata-se de uma coloração se espalhando devagar pela tela, mesclando novas tonalidades às cores de então. Desta maneira, os arranjos de Elsser potencializam o retrato da história mineira.

Muitas outras coisas poderiam ser ditas, por exemplo, sobre uma das passagens mais emocionantes do filme, quando, ao som “Fio de cabelo” (na voz de Chitãozinho e Xororó) uma senhora convida Juliana para entrar, oferece bolo, água e descanso. Nesse meio tempo, a personagem repara nas fotos da parede em silêncios. Acrescenta-se a esta cena um forte elemento, é a mãe de Novais, premiada por Ela volta na quinta (2015),  a quem o filme é dedicado em memória, que interpreta a moradora. Igualmente, sobre as traduções do título em francês Saison (Estação) e em inglês Long Way Home (Longo caminho para casa), que não se adequam totalmente, no entanto, captam sentidos importantes de Temporada. Talvez ainda a respeito do efeito da mistura de atores experientes e amadores, que, segundo Grace Passô, obriga o profissional a se despir de certa técnica teatral para reapreender a se relacionar com o outro. Contudo, não quero me alongar mais do que isso, resta-me apenas dizer: Luíza assista o filme, parece que está no Netflix. Não tem problema ter esquecido a carteirinha, às vezes, estava escrito que somente depois da viagem, de tudo que ganhei e perdi com ela, eu pudesse compreender melhor esta Temporada.

Notas
¹ Enrico Azzano. “Temporada di André Novais Oliveira”, Quinlan, Revista di Critica Cinematografica, 12 jan. 2018. Disponível aqui. [Acesso em: 31 maio 2019.]

² Nicolas Bardot. “Critique: Temporada”, Le Polyester, 26 jan. 2018. Disponível aqui [Acesso em: 31 maio 2019.]


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