Leitor modelo e aluno modelo: conceitos dos quais devemos nos livrar


Por Rafael Kafka

Ilustração: Michael Drive


Umberto Eco possui um texto bastante interessante no qual ele trabalha a ideia do leitor ideal, ou modelo, se o leitor preferir. Por meio de uma série de reflexões críticas a um modelo estruturalista de entendimento da obra literária, Eco mostra que o texto literário é um conjunto de estratégias de leitura usadas pelo escritor e percebidas pelo leitor em seu ato de desbravar o referido texto. Nesse sentido, nunca há um contato pleno entre autor e leitor da obra, pois entre eles há as palavras que servem de mediadoras e elas, por natureza, são polissêmicas.

Tal polissemia é gerada pela condição humana, fenomenologicamente explicada como uma miríade de visões e formas de sentir a realidade. O leitor ideal é uma utopia pessoal de cada escritor, o qual se utiliza de uma série de recursos e espera que esse leitor entenda plenamente as suas demandas expressivas dentro do produtor que entrega, em constante processo de inacabamento ao leitor.

O autor usa referências a seu tempo, a outras obras e mídias esperando que durante o ato da leitura o sentido delas seja algo claro e óbvio. Porém ele se depara com leitores com arcabouços teóricos limitados e incapazes de entender plenamente todas as referências postas. O que ocorre então no sujeito leitor em geral voraz é o desejo de entender essas referências e quando elas são mais explícitas, citando um outro autor, por exemplo, torna-se mais provável do sujeito ir atrás de novas leituras. O texto é um emaranhado de significações as quais levam a outros emaranhados e a leitura é um processo de inquietude constante, que plenifica o sujeito por ele se encontrar com sua própria essência inquieta e difusa o tempo todo.

Nesse sentido, o leitor ideal é uma utopia involuntária. O sujeito escritor quer-se entendido, mas o entendimento obtido jamais será aquilo que ele almeja no sentido de um encaixe perfeito. Escrever é um ato ambíguo desde o começo, pois queremos que todos entendamos o que sentimos, ao mesmo tempo que queremos uma obra a qual não se esgote em suas possibilidades. Queremos que o outro absorva a nossa mensagem, mas não queremos que essa absorção se dê no mesmo nível de um livro de auto ajuda, de uma receita dizendo como devemos viver, por sabermos passar isso bem longe do que é a boa literatura, um conjunto de palavras o qual gera inquietude e nos faz ir sempre mais e mais longe na leitura de mundo e de novos textos.

O leitor modelo no sentido de utopia involuntária deve ser algo do qual nos livremos ao menos no âmbito consciente. Mesmo quando alguns escritores como Cortázar parecem zombar do leitor modelo ainda ali uma visão do leitor desejado: um que entenda a piada e entre no jogo. O leitor ideal o qual devemos procurar é justamente o leitor que mergulhe na inquietude do texto e faça sua própria leitura, levando a estrutura do trabalho como provocação para novas leituras, para novas formas de encarar a realidade por meio do texto literário.

Em minha existência, sempre reparei em muitas similares englobando a vida de professor e a vida de escritor e penso que a ideia de sujeito modelo com quem conversamos é uma das principais similitudes. Tanto que existe ainda circulando em muitos ciclos pedagógicos a ideia de aluno modelo, o qual assim como o leitor modelo é uma projeção do sujeito que se expressa no modo de ser do sujeito que recebe a mensagem.

O aluno modelo em geral é o aluno bem comportado e com profunda vontade de aprender e ser alguém na vida. Tal imagem ignora diversos elementos extra escolares, como as condições de vida do estudante, o seu poder de acesso a meios culturais, problemas psicológicos e de aprendizagem e outros tantos fatores. O aluno modelo é o jovem premiado como melhor aluno em atividades as quais lembram elementos behaviorista e neoliberais, tornando a educação uma grande competição por melhores resultados, quando ela deveria ser, na verdade, um processo de busca por autoconhecimento e entendimento da realidade circundante.

O aluno modelo, todavia, é uma projeção mais voluntária de sujeitos engessados em seu modo de ver a realidade e suas possibilidades de transformação. O leitor modelo é um desejo egocêntrico do autor que quer que sua obra seja lida dessa maneira e não daquela, por mais que a ideia de múltiplas leituras se torne cada vez mais ampla em defesa nos discursos literários. O aluno modelo, por sua vez, é um aluno desejado por professores ainda presos ao modelo reproducionista de ensino, àquilo que Freire chamaria sem medo algum de educação bancária.

Tais educadores podem ter suas visões condicionadas por uma série de fatores variados. As escolas sem estrutura para aulas mais arrojadas e cheias de atividades concretas e metodologias ativas, a desvalorização que exige maior carga horária e prejuízo do planejamento de ensino, as relações de poder cada vez mais marcadas por elementos de pragmatismo político dentro das escolas públicas são alguns desses elementos. Por mais que entenda, contudo, a força de tais fatores nas nossas vidas de professores, eu também entendo a necessidade de não se criar hostilidade diante da leitura de novas possibilidades, da feitura de novos fazeres os quais podem ser feitos por meio recursos simples, mesmo um pincel e um quadro branco tão somente.

Muitas das vezes, o discurso usado em sala de aula é mais importante em si do que a metodologia aplicada, pois esta última pode conter elementos de ludicidade soltos e sem sentido concreto, não voltados para a humanização e libertação do sujeito aprendiz por meio da reflexão crítica de seus problemas sociais e pessoais. Alguns professores gostam de criticar alunos por não terem hábito de leitura, mas não entendem que sua crítica é vazia, pois eles não passam aos estudantes a sensação de serem alguém que ama a leitura. O primeiro processo para se fazer a mediação de leitura é justamente falar de leitura em um tom cheio de entusiasmo e amor, pois há uma emulação por parte de alunos que procurarão entender a essência daquele prazer e trazê-lo para suas vidas. Projetamos nos alunos um modo de ser o qual nós não somos, queremos alunos leitores sem sermos leitores.

Pior: queremos alunos motivados sempre a aprender sem entendermos a dor da fome, a raiva do mundo, da injustiça social, da falta de possibilidade de socialização e outros tantos processos que afetam a qualidade de vida e de aprendizagem do estudante. Tudo isso com um currículo engessado em saberes prontos e fechados, saberes os quais devem ser memorizados e reproduzidos perfeitamente em uma prova sem sentido algum para esses jovens. O aluno modelo é um devaneio pedagógico em meio aos constantes ataques sofridos pela educação em nosso país e em outras periferias do capitalismo mundial.

Assim como a literatura se libertou em relativo grau da imagem do leitor modelo estanque e começou a se parodiar e a brincar consigo mesma, a docência precisa se preocupar em se libertar mais da ideia de um aluno modelo exemplar bem comportado. A essência do ser humano é não ter essência, é ser puro projetar de ser, é existir se desenvolvendo e se definindo constantemente. O aluno modelo é completamente o oposto disso, pois ele apenas busca o conhecimento para “ser alguém na vida”.

O aluno ideal que devemos buscar perpassa pelo modelo de escola o qual cobiçamos. A escola deve ser um espaço de aprimoramento e por isso mesmo não pode se render à memória de curto prazo para verificar a qualidade de seus alunos. O sucateamento da educação pública nos faz sonhar não com revolução e sim com um aluno que naturaliza as opressões e faz de tudo para vencer pelo esforço próprio. Devemos buscar um aluno inquieto e as condições de trabalhar com essa inquietude, sem anular a essência viva que somos nós, seres sem essência. Do contrário, por mais progressista que seja nosso discurso, seremos mais alguns sujeitos a reproduzir o mesmo discurso tecnicista o qual tanto condenamos, reforço de todas as opressões que queremos combater e sentimos na pele por sermos trabalhadores.

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