Do imponderável em Haruki Murakami: algumas considerações sobre Crônica do pássaro de corda

Por Paula Luersen

Haruki Murakami. Foto: Richard Dumas


 
Começo por citar uma palavra que intermeia repetidas vezes o livro Crônica do pássaro de corda, demarcada sempre em itálico: algo. De início, algo que escapa ao leitor. Mas que, desconfio, seja o que o faça, ao mesmo tempo, altamente envolvido com a trama. Algo perturba. Embora as rotinas da vida sejam apresentadas na narrativa de maneira costumeira e até mesmo trivial, algo está em ação noutra ordem das coisas. Uma ordem bem menos aparente, por certo, mas que também habita o mundo e está em franco desenrolar. Trago aqui um exemplo de como essas perturbações são dadas a ver, em meio a um diálogo: “Sozinha na escuridão, senti que algo que havia dentro de mim passou a crescer. Tive a impressão de que esse algo cresceria cada vez mais dentro do meu corpo, até me partir, como a raiz de uma árvore que cresce demais até quebrar o vaso. O que não se manifestava dentro de mim durante a luz do dia começou a crescer em uma velocidade assustadoramente rápida na escuridão, como se sugasse nutrientes especiais”.

Murakami sugere e manipula a presença do indefinido com maestria. Se em algumas de suas obras há um evento que vem mobilizar decisivamente o mundo ficcional e é a partir dele que surge esse universo que perturba com uma força pulsante, em Crônica do pássaro de corda é a partir de um fato fortuito – o sumiço de um gato – que a história começa a revelar o entrecruzar da realidade comum com o imponderável. É como se fôssemos levados pela mão a imergir, aos poucos, na rotina dos personagens, em suas biografias e emoções, para depois começar a acompanhar o lento transformar desse invisível que assombra.

Quando trato da palavra algo em específico, não me refiro a uma questão de código ou de esquema metafórico no qual buscar os significados da literatura do autor. Falo de uma escolha que reconhece a força que há em não definir, deixando em aberto para o leitor a construção do que se passa nesse plano intersticial. A busca está em não nominar e mostrar como tal força passeia pela trama e afeta as relações entre eventos e personagens. Isso atrai a atenção mais do que os fatos em si, porque só se mostra por indícios.

Essa via de abordagem quem sabe seja a mais abstrata das chaves de leitura do romance de Haruki Murakami, mas seguirei na tentativa de pensá-la. Considerando livremente alguns dos sentidos que o livro me sugeriu, parece que esse algo é às vezes feito da mesma substância que nos atrai ou repele intensamente na relação com um recém-conhecido, sem que saibamos ao certo o porquê. Outras vezes, porém, parece ser a sensação que emana de gestos e decisões de outrem, atitudes que nos parecem destituídas de sentido, mas que ganham significado pleno se estivermos dispostos a habitar o modo de ser do outro, entrando em sua rotação. Há, ainda, os momentos em que esse algo é posto como atemporal, um tipo de tensão que perpassa diferentes épocas e corpos, ligando acontecimentos e personagens por rastros. Só temos acesso aos seus vestígios. Algo perturba e estabelece entre os eventos e os personagens uma profunda ligação.




Uma das perguntas colocadas no início da trama em Crônica do pássaro de corda começa a descortinar o que virá: “será que é possível uma pessoa entender completamente a outra? Quando tentamos compreender alguém e dedicamos muito tempo e esforço sincero, até que ponto podemos nos aproximar da essência do outro? Será que sabemos mesmo a parte que realmente importa de quem acreditamos conhecer bem?”. Aqui se coloca de maneira muito clara o impasse entre o que podemos perceber, identificar, definir, tipificar e enquadrar para entender o outro; e aquilo que nele nos é invisível, impreciso, podendo parecer inexplicável. Há algo que só se mostra por rastros, lapsos.

A pergunta sobre o que sabemos sobre quem acreditamos conhecer reverbera e vai se recolocando em vários níveis para o casal protagonista: primeiramente, chegamos a uma resposta simplista com a descoberta de uma traição, como a confirmar que mesmo convivendo de perto, podemos estar alheios à rotina e às escolhas daquele que julgamos próximo; depois, a pergunta se aprofunda e há o reconhecimento de que, mesmo com anos de vida conjunta, sempre existirão lacunas na história de vida das pessoas, mesmo aquelas mais íntimas de nosso convívio. O nível mais interessante, porém, em que a pergunta volta a ecoar é também o mais abstrato: ele trata da capacidade de conhecermos o que o outro sente, deseja, teme, sonha. De sabermos do que é capaz. E é aí que Murakami surpreende, porque além de contrariar a máxima de que o outro nos é insondável, ele aponta para uma instância de comunicação, onírica, que sugere uma outra ordem. Fora da lógica das explicações. Fora da relação causa e efeito. Indefinida, porém real.

A manipulação dessa força imprecisa que cerca os fatos – por falta de expressão melhor – é inebriante em Murakami.  A experiência de leitura nos coloca em uma posição ativa: como se quiséssemos reler trechos de páginas antes de tê-las terminado, e, ao mesmo tempo, nos sentíssemos impelidos a avançar o mais rápido possível tamanha a curiosidade em desvendar fatos. Em Crônica do pássaro de corda o autor se vale de eventos históricos, pensando o incidente de Nomonhan, confronto armado entre a URSS e o Império Japonês decorrido na região da Manchúria. O incidente acabou levando, por uma combinação de acontecimentos, ao início oficial da Segunda Guerra Mundial. Em paralelo, narra-se o desenvolvimento de uma cena política que, mesmo diegeticamente passada na década de 80, traz inegáveis relações com o que vivemos hoje – a expansão de personalidades políticas que colocam seu interesse individual por poder acima de quaisquer ideias. Há um parear engenhoso entre os personagens que habitam cada um dos tempos, ligados por indícios se manifestam nos corpos, espaços, objetos simbólicos e encontros. Com o avanço da história, é como se percebêssemos, porém, que mais do que os lugares, objetos, animais e pessoas, o que promove tais ligações é algo que repousa em cada uma dessas coisas ou delas emana.

Como outros criadores desse início de século – para dar um exemplo mais próximo esteticamente cito David Lynch – Murakami parece interessado em aventar sobre o mal. Em perguntar sobre essa força-motriz que nos levou a duas grandes guerras mundiais, ao lançamento de bombas atômicas e outras atrocidades. Mas não é desse registro que se parte – uma realidade macro, dominada por explicações históricas, sociais e políticas. Parte-se do mal que circula e encarna corpos e épocas, interrompendo fluxos. Esse movimento toma a figura de muros, paredes, casas abandonadas, terrenos baldios, tampas. Em Crônica do pássaro de corda é poço escuro e fechado onde a água deixou de fluir; um pássaro de pedra, incapaz do voo. Parte-se de símbolos para chegar à vontade do mal, às forças que são mobilizadas para que essa vontade de torne possível. O conflito passa pelo inconsciente, por pulsões e atmosferas que conferem a esse tipo de força uma dimensão de imponderável.

Trato aqui, obviamente, de uma interpretação muito particular do que julgo interessar Murakami e atuar como base em suas narrativas. Há um sem fim de personagens que expressam outros tipos de força. Os mais interessantes, para mim, contudo, são aqueles que conseguem se comunicar com essa outra ordem, com uma força indefinida que só se mostra a partir dos sonhos e de supostas coincidências. Personagens um tanto disfuncionais em relação à ideia de normalidade estabelecida por um mundo capitalista que tende ao padrão. Personagens dedicados a vivenciar estranhamentos, em estabelecer ligações entre si que estão nos gestos, no compartilhamento desse universo onírico, em algo mais fundo para onde a narrativa aponta.

Daí vem a dificuldade de escrever sobre o que se passa no livro: o que há de mais instigante não se explica pelos fatos, mas numa teia de relações entre os acontecimentos do mundo retratado e o plano onírico trazido à cena por alguns dos personagens. Ambos motores igualmente capazes de movimentar a história, ainda que respondam a lógicas completamente distintas. A fronteira entre esses dois planos é o lugar a ser conquistado pelo personagem principal, numa atitude ativa que, entretanto, se confunde com o sono:

“Enquanto tentava me concentrar no som, adormeci sem perceber, sem ter aquela sensação gradual. Apaguei instantaneamente, como se caminhasse por um corredor e, sem perceber, fosse puxado por alguém para dentro de um quarto desconhecido. Não sei dizer por quanto tempo durou esse estado de inconsciência que parecia uma camada profunda de barro. Acho que não foi muito, apenas por um momento. No entanto, quando recuperei a consciência, ao sentir a presença de algo, soube que estava em outra escuridão. O ar estava diferente, assim como a temperatura e a densidade das trevas. [...] Levantei o rosto, olhei em volta e prendi a respiração. Consegui atravessar a parede.”

O mistério não está para ser solucionado nos escritos de Murakami. Como na vida, muitas vezes ele é parte das relações e interações com o mundo, ainda que com ele pouco saibamos lidar.
 
 

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