Itinerários da poesia de Zila Mamede

Ayao Okamoto. Arado 1997



Arado

Arado cultivadeira
rompe veios, morde chão
Ai uns olhos afiados
rasgando meu coração.

Arado dentes enxadas
lavancando capoeiras
Mil prometimentos,juras
faladas, reverdadeiras?

Arado ara picoteira
sega relha amanhamento
me desata desse amor
ternura torturamento.

(Zila Mamede, O Arado)

Zila Mamede e Câmara Cascudo. Foto da década de 1960.

Zila Mamede sentiu a voz irresistível da Terra, chão de trabalho anônimo onde vivem os marujos sem mar dos campos semeados, e encheu-se de versos votivos em louvor do esforço antepassado.
[...]
A moça da cidade, do rio e do mar, foi seduzida pelo silencio das searas, a labuta do amanhecer, os bois adormecidos, o cavalo branco abandonado, as visões avoengas da casa-grande, plantada no meio do mundo vegetal e resistindo na perpetuação dos invernos e das esperanças.
Todos os poemas nasceram do chão sagrado, com chuva do céu e suor dos rostos vigilantes, surgidos na inspiração provocadora de uma inegável vivência emocional.

(Notas de Câmara Cascudo à edição de O Arado, de Zila Mamede)


Zila Mamede – itinerário e exercício da poesia (parte III): O arado – chegada à infância, à terra-mãe e à plenitude poética 

por Paulo de Tarso Correia de Melo*


“Meu avô, minha avó, os milharais
não tendo mais infância, tenho-a mais”


Em resenha crítica sobre O Arado, publicado no Rio de Janeiro, pela Livraria São José, 1959, começa Osman Lins:

“É estranho como traz a criatura humana, bem dissimulado sob os mil acontecimentos da sua vida, exatamente o que possui de mais valioso e mais forte. O motivo maior dos seus poemas. Sua mais densa maneira de amar. ‘Ainda não mereces – é o que parece dizer tal dissimulação. Estás ainda verde, ainda ácido’ e vivemos então sem o sabermos – pois como viver se o soubéssemos? – de esperas e substituições.

A doçura do fruto, em que incerto lugar aguarda que ele amadureça, para fazer parte de seu sumo? Em que recanto do homem permanece, através de sua infância, adolescência, primeira juventude, uma doçura cujo misterioso acordo com as estações jamais penetramos – e que embora muitas vezes se anuncie, só na hora propícia se revela” (Op. Cit., p. 1)

Ninguém disse mais e melhor que o romancista pernambucano, a respeito do que ele considera “sem nenhuma dúvida o melhor, o mais vivo, e o mais belo dos livros de Zila Mamede, com poemas nos quais a terra se impõe com um vigor, um esplendor, uma verdade, que raramente encontramos na poesia brasileira, sobretudo em poesia de mulher” (idem, idem). 

A respeito da última ressalva concordou Brito Broca, em sua coluna literária no Correio da Manhã: “Preferimos chamá-la poeta, porque nada distinguimos de caracteristicamente feminino na sua poesia” (BRITO BROCA [?] O AradoCorreio da Manhã, Rio de Janeiro, 6 de fevereiro 1960. Livros da semana).

Como explicar O Arado nas suas qualidades de testemunho de um amadurecimento poético inteiramente original, principalmente no que se refere à renovação sintática e a uma total integração de expressões e situações dos sertão nordestino, a um timbre pastoral, característico das vozes universais mais altas?

Desde a publicação de Rosa de Pedra, Manuel Bandeira assim se expressara para Zila Mamede: [...] “a Rosa de Pedra merece ficar nas estantes ao lado dos melhores livros de versos brasileiros: você é poeta até debaixo da água do Capiberibe. Mas olhe, deixe de bobagem e trate de estudar latim. Não se importe muito com a gramática, rosa, rosae, amo, amas, amat, etc. Compre os livros de tradução justalinear que chamam “burro” e leia os poetas latinos. Comece com Catulo, que uma delícia” [...] (Op. Cit., p. 1459, Carta 109).

O fato, além de ratificar a percepção e preocupação de Bandeira quanto às possibilidades da linguagem poética de Zila Mamede, talvez explique a “limpidez virgiliana” percebida por Osman Lins, nos “perfis de avós, paisagens, instrumentos de cultivo, cabras, bois dormindo, seiva e sangue, velha terra de infância” que surgem em O Arado (Op. Cit., p. 2)

Um dos poemas do livro, o primeiro soneto da dupla “Bois Dormindo”, é um instante de iluminação. O poema tem uma aparência de simplicidade vocabular e facilidade vocal, decorrentes de uma também aparente ausência de vigamentos de fatura; um tom que parece deslizar contínuo, sereno e pacífico, de uma maneira como só os mestres conseguem. Na verdade, muito se deve ter custado a absoluta integração entre a linguagem nordestina e a mais perfeita linguagem bucólica:

A paz dos bois dormindo era tamanha
(mas grave era a tristeza do seu sono)
e tanto era o silêncio da campina
que se ouviam nascer as açucenas.

No sono os bois seguiam tangerinos
que abandonando relhos e chicotes
tangiam-nos serenos com as cantigas
aboiadeiras e um bastão de lírios.

Os bois assim dormindo caminhavam
destino não de bois mas de meninos
libertos que vadiassem chão de feno;

e ausentes de limites e porteiras
arquitetassem sonhos (sem currais)
nessa paz outonal de bois dormindo.

Considere-se, no poema, a inclusão de palavras do falar sertanejo como relho, chicote, aboiadeiras, porteiras, além da belíssima palavra tangerinos, que no poema se integram perfeitamente a campina, cantiga, lírios, feno e outonal, que visam a criação do clima bucólico. E note-se que o poema não se sustenta em rimas, mas em uma única música interior aos versos brancos, digna da poesia clássica latina.

Em O Arado, Zila Mamede, poeta madura, consegue ao mesmo tempo expressar a infância, “este mistério humano: o das verdades que se escondem em nós até que nos tornemos dignos de sua grandeza” (LINS, Osman, Op. Cit., p. 2)


ANEXOS

O alto (o avô)

Dum anteavô tivera na colina
os alicerces, que de avô ganhara
açude, pastos, farinhada, chão.

Guardara na cacimba os aguaceiros
E de seu sono sacudira ovelhas,
Meninos, maravalhas, plantação.

Multiplicara à mesa concha e mel:
moinhos que teceram do amarelo
de tanta espiga, madrugada e pão.

Em campo arado repartira mudas
que mãos infantes modelaram sob
plantio manso e vesperal de grão.

De terra e de meninos comporia
(na velha bolandeira da tapera)
essa marca de suor numa canção.

(Zila Mamede, O Arado)


O alto (a avó)

A adolescer ainda novo teto
ganhara, conduzindo nos cabelos
abandonados, um tranqüilo sol.

Acrescentara ao dote a flauta azul
(com que saudara tardes e rebanhos)
e seu chinelo feito de flor de lã.

De fibras de algodão, por entre dedos,
no fuso aconchegara brancos fios
de que tecera rendas infantis

e varandal de redes. Camarinhas
cercaram-lhe mistérios maternais:
espera, medo, alumbramento, amor.

Mas seu cantar desfez-se no caminho
Sem chegar mais que aos nasciturnos filhos
- estrela, uma de agosto a viu morrer.

Herdei a deslembrança de seus olhos
e dessa flauta que tocara à noite
vertendo paz e sono a meu avô.


* Paulo de Tarso Correia de Melo é professor do Departamento de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Texto do autor publicado em MAMEDE, Zila. Navegos; A herança. Natal, 2003, p. 24 – 27.


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