Miacontear - A carta de Ronaldinho


“Uns aprendem a andar. Outros aprendem a cair. Conforme o chão de um é feito para o futuro e o de outro é rabiscado para sobrevivência.”

“O pulo é o desajeito humano de ensaiar o voo.”

“A carta de Ronaldinho” é mais um conto de O fio das missangas que reitera o tom anedótico. Estamos outra vez diante de um típico personagem. Filipão Timóteo. Assim nomeado pelo mesmo distintivo próprio do antigo técnico da Seleção Brasileira. Como técnico, Filipão Timóteo também se põe a elaborar estratégias de jogo num papel velho, depois de sua cerveja, para traduzi-las na falsa tela do televisor disposta à sua frente.

Falsa porque o que se vê não passa de um desenho “rabiscado a carvão”. “Filipão desenhara o televisor com detalhe de engenheiro. E ali estavam compostos com perfeição os botões, a antena, os fios.” Pela tela imaginária este homem vive as grandes emoções do futebol, coordena os jogos e comemora os gols com a mesma veemência de alguém que estivesse de frente a um televisor de verdade.

Novamente, esse é um conto que desestabiliza as fronteiras entre o real vivido e o real imaginado que são apresentados aqui não como planos opostos, mas interpostos, isto é, ambos se dependem mutuamente, sendo o real imaginado tão ou mais necessário que o real empírico. Ao transportar-se para partidas imaginárias, o velho Filipão Timóteo tem a oportunidade de fabricar para si um espaço real em que ele seja não apenas o centro das atenções, mas sujeito de seu mundo, oportunidades negadas no mundo vivido.

Não se tratará como poderemos ver de um caso de esquizofrenia ou coisa do tipo porque ele tem a consciência de ambos os mundos. Quando o filho tenta entrar nesse universo imaginário do pai e vem com uma carta falsa de convocação da Federação Nacional de Futebol convidando-o para o descanso, Filipão logo nega o pedido e apresenta de imediato uma contra-carta, esta mais verdadeira do que carta do filho. “Tinha selo do Brasil e estava assim endereçada: Senhor Filipão Timóteo, Bar do Munhava. Assim, sem emenda nem gatafunho. Em baixo, a assinatura bem desenhada: Ronaldinho Gaúcho.” Adentrar nesse outro mundo imaginado não requer apenas a construção de uma mentira, há que saber as regras do jogo imaginado, reiterando a epígrafe posta no início do conto - “O problema não é se mentira. É ser mentira desqualificada.

“- E já agora, meu filho...
 - Sim? - o filho perguntou, sem se virar.
 - Você pode-me trazer lá da cidade um pauzinho de giz para eu desenhar um televisor novinho?” (p.102).

Afinal, onde reside mesmo aquela linha (imaginária também) que separa imaginação e realidade? 

Ligações a esta post
>>> Acompanhe aqui a leitura dos contos de O fio das missangas.


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