As ilustrações de Jean-Michel Folon para A metamorfose, de Kafka


Em 2010, as livrarias brasileiras receberam uma edição feita pela Martins Fontes com textos de Franz Kafka em grande parte ainda desconhecidos do grande público. Além de organizar a edição, Nikolaus Heidebach compôs as ilustrações para o material (leia mais sobre aqui).

Bem, também não é de conhecimento de todo mundo, mas o próprio Kafka se aventurou em compor alguma coisa na arte do desenho (aqui), no entanto, tinha suas próprias ressalvas sobre a relação literatura e imagem, principalmente, em se tratando do seu romance A metamorfose. É conhecido, por exemplo, o pedido que o escritor faz ao seu editor para que a capa desse livro não fosse ilustrada com a figura metamorfoseada de Gregor Samsa, assim que soube que Ottomar Starke iria desenhar a capa para o romance:

“O senhor escreveu anteriormente que Ottomar Starke vai desenhar a capa para a Metamorfose. Então eu senti um pequeno susto, provavelmente desnecessário. Naturalmente eu conheço o artista de ‘Napoleon’. Eu percebi, já que Starke efetivamente faz ilustrações, que ele poderia querer desenhar o inseto mesmo. Isso não, por favor, isso não! Eu não quero restringir a autonomia dele, mas só quero pedir, devido ao meu natural conhecimento da estória, que naturalmente é melhor. O inseto mesmo não pode ser desenhado. Ele não pode nem mesmo ser mostrado à distância. Não há dúvida que se não há tal intenção, logo minha solicitação é ridícula. Melhor ainda. Eu ficaria muito agradecido ao senhor pela interseção e reforço do meu pedido. Se eu pudesse fazer sugestões para uma ilustração, eu escolheria as cenas: os pais e o procurador frente à porta fechada ou ainda melhor, os pais e a irmã em um quarto iluminado, enquanto a porta para o quarto ao lado completamente escuro está aberta. Provavelmente o senhor já recebeu todas as correções e as resenhas.”



E o pedido foi então atendido. A capa da edição primeira de A metamorfose restringiu-se a uma litogravura em que se vê um homem entrando num quarto e em estado aparente de perturbação. No que isso daria, o texto visual não mostra. De lá para cá, entretanto, muito foi dito e feito sobre a transformação de Gregor Samsa. Algumas traduções abusaram do termo “ungeziefer” (inseto) para literalizar absurdamente por “barata” e, nessa contramão, muitos ilustradores têm seguido: não estamos muito distante de quando o próprio Google no seu doodle comemorativo pelo 130º aniversário do escritor jogou logo a imagem de uma simpática baratinha de mala e tudo adentrando no seu quarto. O termo, entretanto, lembra Modesto Carone, o principal tradutor de Kafka no Brasil, “tem o sentido original pagão de ‘animal inadequado ou que não se presta ao sacrifício’, mas o conceito foi se estreitando e passou a designar animais nocivos, principalmente insetos”. Bem, toda barata é um inseto, mas o contrário não é verdadeiro.

Baratas e insetos à parte, o fato é que, alguém, algum dia, se aventurou em ilustrar o romance de Kafka. E um desses foi o artista plástico belga Jean-Michel Folon que não atentou para a irrepresentabilidade do inseto kafkiano, mas no esteio do que se espera de um  inseto inusual compôs as ilustrações que o leitor pode ver no fim deste texto. As imagens foram feitas para uma edição publicada em 1973, na Itália, mesmo ano em que Folon esteve no Brasil e participou da XXV Bienal de São Paulo, onde lhe foi atribuído o Grande Prêmio de Pintura.

Folon nasceu em 1934 em Ucle, periferia de Bruxelas. Trocou o curso de arquitetura para se dedicar ao desenho. Com esse intuito foi para Paris; distante do sucesso na cidade-luz, vai para Nova York onde se notabiliza desde suas primeiras criações ao publicar trabalhos em periódicos conceituados com a HorizonEsquire e The New Yorker. Entre os da literatura, o artista não se encantou apenas pela forma fantástica do escritor tcheco; também ilustrou trabalhos de Jorge Luis Borges, Albert Camus, e Prévert, entre outros. As ilustrações estão no catálogo a seguir:




Notas:
A citação com trecho da carta de Kafka ao seu editor foi copiada do texto "Die Verwandlung (A metamorfose): refazendo o caminho de Kafka", de Rosineia de Jesus Ferreira e publicado na revista Garrafa, n.25., set.-dez.2011.

A citação de Modesto Carone está em Lição de Kafka (São Paulo: Companhia das Letras, 2009).


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