Algumas notas sobre “Poemas”, de Pier Paolo Pasolini


Por Pedro Fernandes



No Brasil, Pier Paolo Pasolini é uma figura, ao mesmo tempo, conhecida e desconhecida. Apesar de autor de um cinema integralmente situado fora dos chamados circuitos comerciais, é pouco provável que alguém não tenha deixado de ao menos ouvir falar em títulos como Salò ou os 120 dias de Sodoma, talvez o seu filme mais conhecido. Se estreitarmos ainda mais o público, é possível lembrar outros títulos, quais Medeia, Teorema ou Os contos de Canterbury. Desses títulos, o leitor deste texto que nunca tenha assistido nenhum deles, não deixará de perceber a estreita relação que o cinema do italiano mantém com o universo literário. E isso não é em nada gratuito.

Romancista que se preocupou em construir uma obra interessada em revelar a periferia proletária da Itália de seu tempo – país com o qual desenvolveu intenso, e nem sempre cordial, (para dizer nunca) diálogo – ele próprio considerava-se acima de tudo um poeta. E não faltará quem também assim o reconheça quando toma contato com o seu rico universo que não encerrou suas fronteiras na prosa ou no cinema. A capacidade criativa para a invenção e a anarquia das formas artísticas é um elemento que pesa favoravelmente na justificação da opinião dos leitores (e propriamente na do escritor) sobre sua esta condição que em Pasolini ultrapassa os meros limites da criação para se assumir como uma condição de ver o mundo, as formas, as situações e as coisas.

Mas, se o cinema do italiano primeiro e depois sua prosa (se considerarmos textos como A hora depois do sonho, Caos, Meninos da vida, Teorema – este traduzido apenas um ano depois da publicação em Itália – entre outros, o que é uma amostra razoável da circulação da sua literatura nesta forma no Brasil), quase ninguém, saberá da sua poesia. E é claro, muda-se a acepção até agora apresentada porque a posição-Pasolini ante a realidade e a criação encontra na forma uma confluência que poderá corresponder ou não. Isso porque pensar poeticamente não é motivo suficiente para se dizer que alguém é poeta. Quer dizer, embora não se tenha notícias de um poeta que não pense poeticamente, o contrário não é verdadeiro. E, claro, o que aqui se conceitua enquanto poética diz respeito a uma maneira inovadora e inusual de ver, que ora destoa do vigente ora o amplia em suas fronteiras e sentidos.

Como dizíamos, é quase desconhecido de nós o trabalho de Pier Paolo Pasolini com a forma textual poema. Sabe-se pouco ou alguma coisa sobre o roteirista, o romancista e mesmo o cronista, mas abre-se um silêncio sobre sua poesia – o gênero, não a expressão de criação. Quem assim percebe não é o leitor comum que pouco sabe da obra de Pasolini; é uma constatação registrada pelos que se dedicam estudá-la. O esforço mais recente para subverter essa ordem foi a aparição no fechar das portas de uma editora de uma antologia que constitui – mesmo aos olhos de leitores leigos como os de quem escreve estas notas – o melhor panorama, se não o único porque outros poderão vir, o primeiro  significativo sobre a poesia de Pasolini.

É quando ficamos sabedores que sua obra poética é tão ou mais rica que as outras expressões que Pasolini cultivou ao longo dos seus breves e ininterruptos vinte anos de efervescência criativa. Não mais do que isso, porque o destino, sempre armado de crueldade, quis e interrompeu o andamento da vida do poeta que foi assassinado em 1975. Nesta antologia bilíngue, preparada por Alfonso Berardinelli e Maurício Santana Dias, este último responsável pelas traduções e notas explicativas dos poemas, Maria Betânia Amoroso (portanto não é deste texto ou uma suposição gratuita de leitor mediano) esclarece sobre a brevíssima recepção brasileira à obra poética de Pasolini. No posfácio “Nós e ele: Pasolini no Brasil” ela sublinha que as duas únicas tentativas até então foram a publicação esfacelada do poema “As cinzas de Gramsci”, lido depois por Otto Maria Carpeaux, e “O PCI aos jovens!!”. Nada mais. Ante tais silêncios sempre não deixará de circular uma pergunta – por quê?

O posfácio de Poemas não responde esta questão, mas como leitor podemos estabelecer nossas suspeitas e elas não se referem apenas ao nosso pouco interesse em ler poesia. Parece que diz respeito a um conservadorismo – para não chamar à primeira entrada de hipocrisia – nosso para com determinadas expressões literárias. Ora, as duas introduções da poesia de Pasolini respondem uma por certo apelo (é o que a leitura apressada de um título e de um poema cuja tradução não deixou de exumar as partes mais, digamos assim, pudorentas) comunista. E isso nos alvores das primeiras inclinações pró-golpe no Brasil. E a outra, já no regime militar, apresentada como posição contrária aos movimentos estudantis e (apressadamente de novo) pró-comunista. Como vingar poesia em solo tão árido? Restam rosas no asfalto.



A poesia de Pasolini, entretanto, questões políticas à parte, embora seja sempre impossível escamoteá-las da discussão (e essas notas tentarão dizer o porquê até à sua conclusão) não o nega enquanto poeta. E sim o integra. A poesia serve, nestas observações porque fora delas é algo maior, à comprovação do olho poético que determina o universo criativo de Pasolini. Quer dizer, em contato com sua poesia compreendemos melhor sua posição afeita ao pensar poeticamente. Como é movido por um espírito irrequieto e sempre tendencioso para o retórico, esse lugar parece funcionar como ponto de equilíbrio capaz de não deixar ruir suas criações para a vazia condição de um panfletismo em prol de sua ideologia que é (para salvar mais incautos para quem toda ideologia é obrigatoriamente de esquerda-marxista-comunista-vermelha) a de questionadoras das deidades assumidas pelas posições de poder.

Força apaziguadora? Jamais! Parece que tudo é incendiário na obra de Pasolini, a começar por fazer das criações sempre espaços de liberdade, no sentido de constituírem objetos ora questionadores de suas próprias determinações ora de apresentarem enquanto artefatos que desafia as determinações, como dizíamos. Sua poesia é pura experimentação, extenso catálogo no qual guardam-se ideias e questões reaproveitadas noutros espaços de dizer e de fazer artístico. Pasolini, assim, consciente e inconsciente, se associarmos a condição de ver e agora a do fazer (que também a ela se integra) reconecta-se com o princípio original da poesia: poiesis.

Alfonso Berardinelli, no prefácio aos Poemas considera que, enquanto atividade de liberdade e libertadora escrever poesia era, para Pasolini, a coisa mais natural, um exercício de rotina, ora pra uma proximidade consigo ora para uma conexão com o aperfeiçoamento de sua visão das coisas e da maneira de dizê-las: “uma espécie de prática propiciatória, devocional, higiênica, da qual não podia abrir mão se quisesse manter ou reencontrar a fé em si mesmo”. Mas, se este é o lugar de alguém por se realizar não é possível acreditar que este homem não tenha, em algum momento, o lúcido interesse de renovação da arte. Nada é casual. Maria Betânia Amoroso recorda a primeira paixão poética de Pasolini: Arthur Rimbaud, e justamente quando se vê alguém “distante do oficialismo, do academicismo e do provincianismo que dominavam a escola italiana. Mas, o que ficou do poeta francês foi uma atitude – isto que se vê na originalidade da sua obra e do seu pensamento.

Há muitos traços inovadores na poesia de Pasolini. O principal deles é certa inconstância estilística que é, no tom, ricamente moderna e, nos interstícios, fortemente influenciada pelas estéticas clássicas. É sua maneira de fazer coexistir numa mesma circunstância as múltiplas possibilidades de manifestação poética. O mesmo se pode dizer dos usos de linguagem assumidamente trânsito entre a língua popular, periférica, e a erudita, oficial. A integração das diversidades de formas discursivas, o caráter retórico-narrativo que se nota alguns poemas, são marcas disponíveis à primeira vista que reafirmam o caráter profundamente moderno da poesia. Embora repetisse que era um homem do passado, que não havia nele qualquer vontade de se adequar, de ser moderno, não é o que se observa na sua prática criativa.

Quando dissemos que Poemas é a melhor introdução à poesia de Pasolini, vale buscar alguns elementos para justificar a afirmativa para além do feito inédito em tão longa data. A antologia cobre o tempo integral do trabalho do italiano com o poema, escolhendo cuidadosamente os principais textos da extensa variedade de temas que explorou ao longo de criação: “A melhor juventude” reúne poemas de traço meditativo sobre si e aponta para uma formação do olhar-social do poeta; “O rouxinol da igreja católica”, o diálogo estreito entre corpo e religião; “Diários (1943-53)”, narrativas sobre figuras de alguma maneira próximas ao poeta (em dimensões diversas, da familiar à coletividade na qual se hospeda todo artista) e desaparecidas em tempos de exceção; o famoso “As cinzas de Gramsci”, de teor indubitavelmente político encontrado em vários de outros de seus textos, como os de “A religião do meu tempo”, “Transumanar e organizar” ou o de “Empirismo herético”, o já referido “O PCI aos jovens!!”; o cotidiano e a trivialidade enxergada por certo olhar cronista em alguns poemas de “Poesia em forma de rosa”; suas próprias vivências.

Por que é impossível escamotear ou ignorar a questão política na poesia de Pier Paolo Pasolini? A condição inovadora da sua obra e o mesmo o experimentalismo de sua poesia – sempre no limiar, de formas, temas mais ou menos poéticos, linguagens – significam, antes de qualquer apelo meramente formal e estético, uma atitude do criador sobre o mundo. É sua maneira de fazer o discurso romper a barreira do meramente idealizado para, enquanto forma-objeto, angariar o status de questionador da ordem e dos sistemas de governança e de poder – se considerarmos que determinados lugares forjados para realização da obra de arte estão a serviço de determinados regimes ideológicos que em sua grande parte deslegitimam produções tão ou mais significativas que as consideradas pelo cânone. De alguma maneira essa é também uma condição do poeta perante o mundo e por isso sua condição está sempre colocada à margem, desde Platão. Sorte nossa, entretanto, que existem os poetas, se não, onde ainda estaríamos? No grunhido? 

***

E, porque nosso tempo é este, tão distante e tão próximo do que cantou este italiano, acrescento um pequeno apêndice às essas notas, o poema “À minha nação”.

Não povo árabe, não povo balcânico, não povo antigo,
mas nação vivente, mas nação europeia:
e o que és? Terra de infantes, famintos, corruptos,
governantes a soldo do latifúndio, prefeitos reacionários,
advogadinhos sebentos de brilhantina e pés imundos,
profissionais liberais canalhas como tios corolas,
um quartel, um seminário, uma praia livre, um bordel!
Milhões de pequenos burgueses como milhões de porcos
a pastar empurrando-se sob intactos palacetes,
entre casas coloniais já descascadas feito igrejas.
É justo porque exististe, agora não existes,
justo porque foste consciente, és inconsciente.
E só porque és católica, não podes pensar
que teu mal é todo o mal: culpa de todo mal.
Naufraga em teu mar maravilhoso, liberta o mundo.

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