Ferdydurke, de Witold Gombrowicz



Por Pedro Fernandes



Basta percorrer o olhar desde o século de aparição e consolidação do romance até os dias vigentes para compreender o domínio da forma no imaginário criativo da literatura universal. Essa influência levou pensadores como György Lukács a pretendê-lo a epopeia da civilização ocidental. As razões para tanto não estão apenas na atualização do protótipo grego, mas na presença do romance na configuração dos modelos sociais vigentes e, claro está, na predominância seja entre criadores literários, seja entre leitores. Embora questionável à luz das leituras posteriores sobre as suspeitas da predominância da épica entre os gregos, a tese do pensador húngaro guarda implicações fundamentais para se pensar essa forma literária, sobretudo pela compreensão do romance enquanto tentativa de alcance de uma totalidade perdida. É esse movimento um dos responsáveis pela força da forma, manifesta no contínuo retrabalhar da sua estrutura e no contínuo esforço dos escritores em subvertê-la. O resultado da subversão não terá surtido qualquer efeito, ao menos no sentido de morte do romanesco (como algumas vezes se chegou a acreditar). É que o antirromance é ainda um romance. Assim, sua abrangência parece integrá-lo à breve lista das coisas cujas fronteiras do mundo residem em si próprias e por isso resultam a impossibilidade da sua negação total: a linguagem, o discurso, o poder, a ideologia etc. O romance de Witold Gombrowicz é um exemplo disso.

Ferdydurke performa uma broma. Filia-se a já longínqua tradição de desmantelamento do romance e não deixa de sê-lo. Ou melhor. Só é possível enquanto antiforma porque apenas ao romance se permite esse tratamento. O tipo utilizado no procedimento do escritor polonês é o do Bildungsroman; assim, o que comumente encontramos nos romances desse tipo é desmontado aqui pelo avesso ou o seu contraditório. Esse impasse seduz o leitor pelo estranhamento; é como se o escritor se interessasse em denunciar o romance enquanto pura forma, maquinaria engendrada por sua capciosa criatividade, desfazendo-se da estreita relação dos conteúdos ficcionais com os factuais originados desde o apego dos primeiros romancistas com o material biográfico (no caso do Bildungsroman) ou o material histórico, no caso geral do romanesco.

O impasse reparado logo à primeira vista está entre o título e o conteúdo narrativo. Comumente, o romance que expõe de forma pormenorizada o processo de desenvolvimento físico, psicológico, moral de uma personagem intitula-se com o nome dessa figura. “Ferdydurke” é um termo original cuja tradução nunca alcançou seu real sentido, porque este, propositalmente, parece não existir. Na nota redigida pelo tradutor Tomasz Barcinski e que acompanha a edição brasileira de Ferdydurke publicada pela Companhia das Letras é citada a possibilidade de que o substantivo seja uma corruptela de “Freddy Durkee”, personagem de Babbitt, de Sinclair Lewis, livro de muito sucesso na Polônia dos anos 1920. No entanto, justifica, “nada tem a ver com Babbitt nem com Lewis”. Essa conclusão é facilmente desmontada. Não é o caso de aceitar a explicação oferecida por esse especialista da obra de Gombrowicz citado por Barcinski e não identificado como uma verdade: corruptela ou não, o termo é original. Mas, Ferdydurke tem sim muito do romance estadunidense, na medida em que se oferece como uma sátira da vida cotidiana numa Polônia, sobretudo da classe média, que quer seguir os modismos vigentes no modelo social vendido como moderno e da pressão social para a conformidade. Ou mesmo, a clara denúncia que se oferece das implicações entre classes, numa sociedade cujas fundações se constituiu, como na extensa formação dos povos, da sobreposição de uns mais abastados sobre outros feitos para servi-los.

Por mais que possamos ler esse romance como o mais legítimo da literatura modernista polonesa, não podemos deixar de vê-lo enquanto pastiche do novismo, símbolo da modernidade, e, ao mesmo tempo, séria matéria sobre os costumes de um povo. Isto é, o escritor executa aqui a lição básica vigente nas bases de constituição do romance moderno; qual Cervantes, que constrói uma novela de cavalaria para rir-se da novela de cavalaria, Gombrowicz constrói um romance com todas as parafernálias da literatura moderna para rir-se da modernidade (e, por consequência, do romance moderno). Se Babbitt se tornou uma palavra que significa um homem em conformidade com os padrões de sua classe, Ferdydurke designa o seu oposto, um homem em contínuo estranhamento com os padrões e alheios a esses, fortemente desapegado dos modelos, sejam antigos ou modernos.



Assim, a escolha pelo pastiche ao Bildungsroman não é gratuita. Centrado no processo de desenvolvimento interior do protagonista no confronto com acontecimentos que lhe são exteriores, ao tematizar o conflito entre o eu e o mundo, esse tipo de romance dá voz ao individualismo, ao primado da subjetividade e da vida privada perante a consolidação da sociedade burguesa, cuja estrutura econômico-social parece implicar uma redução drástica da esfera de ação do indivíduo – esta definição é do E-Dicionário de Termos Literários. Isto é, o Bildungsroman é o tipo de romance que melhor se adéqua aos moldes modernistas, uma vez ser esta uma estética advinda do modo burguês, e este, por sua vez, se constitui enquanto reforma pela ampliação da noção de indivíduo advinda do romantismo. Ferdydurke se apropria, dessa maneira, de um modelo romanesco com azo de melhor denunciar o dessentido das coisas num mundo feito de incongruências.

O que leitor acompanha é um pretenso escritor que decide contar sua entrada na maturidade. O projeto ganha outras dimensões ao apontar justamente para o avesso do seu interesse original, como é notável em qualquer circunstância mediada pela escrita; o que escrevemos é produto de uma ideia e esta nunca é executada tal como a idealizamos, há algo, exterior ou interior a escrita, que desloca nossos interesses originais, estes que, no final de tudo, não sabemos mais quais eram. Assim é que, ao invés de relatar o que seria a maturidade, o que se revela para Józio é o seu avesso: vê-se, fatalmente reduzido à condição infantil e, incapaz de tomar quaisquer decisões, deixa-se levar por um mundo de adultos que se encontra entre o impasse das velhas tradições e modelos e as novas convicções e modos de ser. Nesse mundo duplicado, o cotidiano é corriqueiramente povoado pelo absurdo e só por ele alcança alguma explicação. Quer dizer, o trabalho de desmontagem proposto desde um título sem sentido determinado se oferece na própria feitura do romance e na constituição de uma cosmovisão iluminada exclusivamente pelo fabular.

Por isso, não é o caso de ser “Ferdydurke” uma palavra sem sentido; a compreensão de não-sentido só se manifesta fora do contexto de manifestação da palavra. Esta, entretanto, designa original e propriamente o universo fabulado por Gombrowicz: absurdo e existente apenas enquanto produto de um imaginário. Isso não significa que seus sentidos se determinem tão-somente pelo conteúdo ficcional; este torna-se elemento através do qual o leitor pode perceber o factual. Afinal, o mundo de Józio se oferece como uma leitura do nosso mundo revelado aqui em sua multiformidade, não na sua ordem e sim na contínua deformação propiciada pelos sentidos, incapazes estes de captá-lo em sua totalidade. Ferdydurke amplia, assim, a tese segundo a qual o real é pura alucinação; forma constituída sobre forma, forma fragmentar alinhavada pela imaginação, tal como se demonstra pelo universo multidinâmico de sua personagem, este consecutivamente reparado pela sua condição de escritor.

A crítica tem comparado Józio a Gregor Samsa; mas não é personagem de A metamorfose que melhor lhe diz. Exceto certa impossibilidade da personagem de Witold Gombrowicz em fugir da imaturidade, nada mais nela é kafkiano. Józio é sim uma Alice. É arrastado casualmente para o mundo escolar do Sr. Piórkowski pelo professor Pimko que reconhece sua incapacidade para a vida adulta por não ter o domínio do Latim como a personagem de Lewis Carroll é arrastada pelo coelho para o mundo de fantasias que ela está prestes a perdê-lo à entrada para a vida adulta. Depois por uma tia que também o percebe incapaz para os enfrentamentos da vida adulta. Os dois mundos revelam para suas personagens o inusual e o absurdo, respectivamente: o dela sustentado pela condição infante, o dele pela negação dessa condição. As relações não são apenas entre figuras. O romance de Gombrowicz qual o livro de Carroll também se apropria de situações, escritores, obras e referências da cultura literária de seu país e retrabalha isso na construção da narrativa. E, da mesma maneira que Alice significa a ruptura entre a vida infantil e a vida adulta, perfazendo o apagamento da imaginação entre um mundo e outro, significa para Józio. Este descobre nesse apagamento o desmoronamento da leveza de existir. O peso do adultecimento é transformar em sério todos embates cujos sentidos quase sempre resultam os mesmos poucas horas depois, isto é, suas ingenuidades é não se perceberem faces de uma mesma moeda: a incapacidade de fugir do peso auto/imposto pelos ideologemas.

Assim, nada escapa das garras de Ferdydurke. Nem mesmo o romance. Ferdydurke é um romance que se ri do romance. Este tantas vezes descrito como a forma da maturidade e, por isso a forma procurada por Józio a fim de se compreender. Ou seja, o modus vivendi centrado na ilusória vida liberta prometida pela modernidade e o seu oposto são os motores do satirizado, mas processam-se os embates literários de natureza diversa; não apenas a desqualificação do romance enquanto forma da maturidade, mas aqueles que contribuíram para a própria história da literatura, tais como os embates entre realistas e fabulistas, tradicionais e modernos, idealistas e racionalistas, conservadores e reacionários etc. O leitor não deixará de encontrar pelo riso de tudo o mais amargo dos risos: o riso de si, nossa maturidade revelada sobretudo daquilo que não percebemos porque até então nos achávamos a mais madura das criaturas.

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