Tu mostrarás: a tradução da Bíblia Hebraica por Robert Alter

 
Por Tal Goldfajn

Detalhe de capa da nova tradução para a Bíblia Hebraica por Robert Alter.


 
A nova tradução de Robert Alter para a Bíblia Hebraica, o Antigo Testamento, é um belo exemplo de não apenas por que a tradução importa mas também de como a tradução importa.

Traduções da Bíblia para o inglês proliferaram no século XX, com cada tradutor (ou grupo de tradutores) tendo geralmente em vista um público denominacional, mas também partilhando de um objetivo comum: prover uma versão sensível às mudanças que o inglês experimentou desde a época do Rei James. O eminente crítico literário e tradutor Robert Alter recentemente completou, após mais de duas décadas de trabalho individual, uma nova tradução da Bíblia Hebraica para o inglês que abrange três volumes (totalizando 3.500 páginas) e inclui um aparato crítico essencial. A nova Bíblia inglesa de Alter é marcada e influenciada pela notável presença de suas predecessoras, em particular a Bíblia King James de 1611, mas também pelas traduções mais modernas que ele repetidamente critica. São estas versões recentes que ele de fato se propõe a resistir e confrontar. Ao fazer isso, Alter estabeleceu uma nova direção para as traduções da Bíblia como um todo.

A tradução da Bíblia suscita muitas questões – questões grandes, sobre a relação entre tradução e fé, mas também questões mais específicas, sobre o contexto e motivações imediatas dos tradutores. Nas muitas entrevistas que Alter deu sobre seu projeto monumental, a primeira pergunta feita quase inevitavelmente é por quê? De fato, o próprio Alter inicia sua introdução perguntando por que, após tantas versões para o inglês, uma nova tradução da Bíblia Hebraica se faz necessária. Qual é exatamente o problema com as centenas de outras traduções para o inglês já existentes?

Em The Art of Bible Translation [A Arte da Tradução Bíblica] (2019), um livro esclarecedor de Alter sobre sua experiência, diz ele: “Tentei fazer em minha versão para o inglês o que outros tradutores em geral não viram como necessário porque tinham, no melhor dos casos, apenas uma noção irregular dos aspectos literários do hebraico.” Em outras palavras, traduções surgem em resposta a diferentes necessidades, e a necessidade específica no centro da nova tradução de Alter é a de apresentar o rico e nuançado estilo literário da Bíblia Hebraica que, se não de todo ignorado em traduções precedentes  para o inglês, jamais recebeu o tratamento merecido. Alter aborda a Bíblia primeira e principalmente como grande literatura – uma abordagem quase inconcebível antes de meados do século XX. Os vários capítulos em The Art of Bible Translation ilustram com precisão a convicção principal de Alter de que o estilo literário da Bíblia, tanto em poesia quanto em prosa, não é mero “embelezamento da ‘mensagem’ das Escrituras”, uma elegante e dispensável bijuteria, mas efetivamente “o meio vital por meio do qual a visão bíblica sobre Deus, natureza humana, história, política, sociedade e valores morais é transmitida.” E esta ideia de que trocadilhos, ritmo e sintaxe são elementos vitais na forjadura da perspectiva moral e religiosa da Bíblia Hebraica mostra-se um tanto subversiva.

Deixe-me ilustrar isso por meio do exame de uma famosa passagem, Gênesis 7,17-18, na qual o dilúvio vem e a arca de Noé é erguida sobre a terra. O exemplo envolve a tendência sintática do hebraico de iniciar cada frase narrativa com “e”, de ordenar as palavras em orações paralelas por meio da coordenação (“e” + “e” + “e”) em vez da subordinação (“porque”, “então” ou “embora”). Este elemento sintático bíblico, conhecido como parataxe, afeta o ritmo do texto, sua interpretação temporal, suas camadas de coesão e ambiguidade. Eis como Alter verte esta passagem: “And the Flood was forty days over the earth, and the waters multiplied and bore the ark upward and it rose above the earth. And the waters surged and multiplied mightily over the earth, and the ark went on the surface of the water.” [“Durante quarenta dias houve o dilúvio sobre a terra, e as águas se multiplicaram e ergueram a arca e ela se elevou acima da terra. E as águas subiram e se multiplicaram poderosamente sobre a terra, e a arca permanecia na superfície da água”]

Ao pôr as conjunções aditivas em primeiro plano, Alter permite que o ritmo das orações coordenadas faça o tempo mover-se adiante em cenas distintas. Este efeito é reforçado pela simplicidade de “the flood was” [“houve o dilúvio”] (em contraste com os “kept coming” [“seguia vindo”], “lasted” [“perdurava”] ou “continued” [“continuava”] que encontramos em outras versões) e “the ark went on” [“a arca permanecia”] (em contraste com “drifted away/upon” [“estava à deriva”] ou “floated” [“flutuava”]). Alter também insere estrategicamente o verbo “multiply”, de modo a ecoar o “be fruitful and multiply” [“sede fecundos, multiplicai-vos”], entrelaçando deste modo a história do Dilúvio com a história da Criação e evocando o binarismo proliferação/destruição. Som, ritmo, sintaxe e dicção, trabalhando em conjunto, enformam uma textura literária distintiva. Outras traduções modernas para o inglês costumam elidir as conjunções, evitam repetições lexicais, transformam verbos simples em verbos mais complexos e simplificam a sintaxe a fim de aclarar ou enobrecer o texto em inglês. Alter, por sua vez, tem fé no original, e o resultado é tanto revigorante como belo.

A escolha de palavras, é claro, pode ter grandes implicações teológicas. Vejamos “soul” [“alma”] no Salmo 23 da King James: “The Lord is my sheperd [...] He restoreth my soul” [“O Senhor é o meu pastor (...) Ele restaura minha alma”]. Alter, que já se tornou famoso por arrancar a alma da Bíblia Hebraica, nos dá: “The Lord is my sheperd [...] My life He brings back” [“O Senhor é meu pastor (...) Minha vida Ele traz de volta”] Para onde foi a alma? A resposta é que, em primeiro lugar, o hebraico não a oferece. A palavra “nefesh” é mais concreta, significando “breath” [sopro], “life-breath” [“sopro de vida”], “essential self” [“eu essencial”] e também “throat” [“garganta”]. Ela sugere a matéria, o corpóreo, ou, como propõe o estudioso da Bíblia James Barr, “não é uma essência separada e sim mais como o princípio da vida que anima a pessoa, agindo em suas ações, e sendo tocado por aquilo que a toca”.

Como o exemplo do Salmo 23 acima mostra, apesar da pletora de traduções da Bíblia para o inglês atualmente disponíveis, é a linguagem da Bíblia King James que a maioria dos falantes de inglês identifica como “inglês bíblico”. Novas traduções estão menos sujeitas à comparação com as línguas originais do que com esta majestosa predecessora. A versão de Alter não é exceção – veja a antiga resenha antiga de John Updike para The Five Books of Moses [Os Cinco Livros de Moisés], na qual ele vê defeitos nos “massivos comentários que acompanham o texto”, no “inglês excêntrico”,  na “pontuação irritante” e na sintaxe que “sai dos trilhos”, quase sempre em contraste com a King James.

Mas o vínculo entre a tradução de Alter e a King James é mais complicada e produtiva do que a leitura de Updike sugere. A versão de Alter não apenas contrasta e compete com sua mais formidável predecessora; ela também a ecoa conscientemente, absorvendo seu ritmo e assimilando sua sintaxe. O apurado domínio daquele ritmo e sintaxe é evidenciado pelos seus lúdicos 10 mandamentos para tradutores da Bíblia:

1. Não farás da tradução uma explicação do original, pois o autor hebraico abomina explicações.
2. Não calandrarás a eloquente sintaxe do original ao buscar modernizá-la.
3. Não misturarás registros linguísticos de forma ignominiosa.
4. Não multiplicarás sinônimos por tua conta onde o hebraico sabia e nitidamente fez uso de termos repetidos.
5. Não substituirás a expressiva simplicidade da prosa hebraica por uma linguagem supostamente elegante.
6. Não trairás a bela compacidade da poesia bíblica.
7. Não farás a Bíblia soar como se escrita no dia de ontem, pois isto, também, é abominação.
8. Buscarás diligentemente por alternativas em inglês para os jogos de palavras e os jogos sonoros do hebraico.
9. Mostrarás aos leitores a vivacidade e sutileza dos diálogos.
10. Deverás ter continuamente diante de ti a precisão e o propósito das escolhas lexicais em hebraico
 
Fique próximo à fonte, estes mandamentos parecem dizer, e deste modo renove a tradução. Aferre-se à estrutura, estilo e vocabulário do original hebraico. Não perca o caráter alheio da fonte, e permita a introdução de formas de discurso alheias na língua-alvo. Recrie.

Diversas traduções bíblicas para outras línguas nos séculos XX e XXI seguiram alguma versão destas normas tradutológicas, embora tendo diferentes objetivos e estando inseridas em diferentes contextos. A tradução alemã de Martin Buber e Franz Rosenzweig, cujo primeiro volume apareceu em 1925, por exemplo, buscava refletir os aspectos linguísticos do original hebraico. O preceito central da tradução francesa de Henri Meschonnic, que foi lançada em 1970, é “mais do que aquilo que um texto diz, é o que um texto faz que precisa ser traduzido”. A tradução de livros bíblicos individuais para o português brasileiro, feita por Haroldo de Campos na década de 1990, tinha a intenção de “hebraicizar o português”.

A proximidade do original pode assumir diferentes formas em diferentes traduções. No caso de Alter, proximidade significa a apresentação meticulosa e ousada da dimensão literária da Bíblia, a tentativa de recriar em inglês a rica experiência literária do hebraico, antes mostrar do que contar. De forma irônica e compensadora, ao manter-se próximo do texto-fonte, Alter torna palpável a imensa e fascinante distância cultural entre nós e os autores da Bíblia.


* Tradução livre de Guilherme Mazzafera para “Thou Shalt Show: on Robert Alter’s Translation of the Hebrew Bible”, publicado aqui no Los Angeles Review of Books em 2 jun. 2020: 

 

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