Refazer a vida, revisitar o Brasil

Por Naiara Barrozo*

Museu Nacional (Todas as vozes do fogo). Foto: Elisa Mendes


 
Escrito e dirigido por Vinícius Calderoni, o novo espetáculo Museu Nacional (Todas as vozes do fogo), da Cia Barca dos Corações Partidos, se propõe a fazer, como diz em sua página do Instagram, “uma revisão crítica da história oficial no ano em que se comemora o bicentenário da independência”, a trazer à cena aspectos da memória coletiva — afinal de contas, “o Museu Nacional também é a história do Brasil”.
 
A estreia do espetáculo se deu em 14 de outubro, em São Paulo. Mas interessa aqui falar do processo apresentado no mês de setembro, na Quinta da Boa Vista, no bojo das comemorações do fim da restauração da fachada principal do Paço de São Cristóvão, incendiada em 2018. Apesar de não ser ainda o trabalho finalizado, o recorte exposto na ocasião trouxe um material bastante significativo que permitiu a tessitura de alguns comentários críticos. A Cia já apresentava bastante do que tinha sido prometido. Isto não é surpresa para quem acompanha a trajetória do grupo formado por Adrén Alves, Alfredo Del-Penho, Beto Lemos, Eduardo Rios e Ricca Barros, e que, neste novo musical, conta também com as participações dos artistas convidados Adassa Martins, Aline Gonçalves, Ana Carbatti, Felipe Frazão, Lucas dos Prazeres, Luiza Loroza e Rosa Peixoto.
 
Podemos começar pensando sobre a peculiaridade que caracteriza a montagem do processo. Ela se deve, arrisco dizer, à disposição espacial do palco, posto em frente ao prédio que havia sido corroído pelo incêndio, prédio este que, apesar de estar com a fachada nova, ainda permanece desativado, vazio. A única relação que podemos estabelecer com ele é a da observação externa, a da contemplação, ou ainda, a da rememoração do movimento, da vida que ele um dia abrigou, que permanece fixada na nossa lembrança. Durante a apresentação, contudo, o elenco põe em cena o museu como ato, como gesto, como um organismo vivo. Desse modo, ele impõe ao público uma contraposição fundamental: se, ao fundo, temos o corpo inerte do imóvel, à sua frente, vemos a vida que lhe foi extirpada pelo descaso público ser reapresentada a nós - algo que possivelmente só o teatro poderia fazer. Essa dinâmica construída por um efeito circunstancial acaba conferindo ao trabalho uma potencialidade única, impossível de ser reproduzida quando o processo finalizado for exposto no palco de um teatro qualquer.
 
Mas, se essa camada de sentido dada pela contraposição vai estar sempre ausente quando os artistas estiverem fora desse espaço, como veremos nos parágrafos seguintes, tendem a permanecer. O compromisso com a história e com a memória, que talvez constitua o eixo mais aparente desta obra, está presente em considerações diretas sobre a necessidade de trazer à cena a voz dos silenciados. Contudo, em termos cênicos, a proposta se realiza desde que o elenco sobe ao palco, e já se consolida a partir das primeiras falas.
 
O espetáculo começa com as palavras tukanas da atriz Rori Pa'kó (Rosa Dias): indígena nascida em Iauaretê-Rio Uauapes, no Amazonas, da etnia tariano do terceiro clã dyroa. O simples fato de Rosa estar no palco já nos impõe olhar para seu corpo ocupando um lugar positivo de destaque por mais tempo, muito provavelmente, do que boa parte da plateia olhou para uma pessoa indígena durante toda a vida. Mas Rosa não só está: ela fala e canta em vários momentos do musical entoando a prosódia de uma língua originária - a sua própria língua, que divide conosco a história do mesmo país, e que desconhecemos completamente, assim como os 274 idiomas nativos existentes no Brasil. Dessa maneira, com as palavras de Rosa, com o corpo de Rosa, o Museu da Barca dá a ver uma parte do início de tudo e ajuda a desencobrir elementos soterrados do nosso passado que seguimos ignorando como país, apesar de todos os esforços diários das populações originárias para que suas culturas sejam visibilizadas.
 
O compromisso com a história parece definir também a opção pela narradora que irá nos guiar pelo musical: Luzia, o fóssil humano mais antigo da América, resto mortal de uma mulher que habitou, há cerca de 11.500 anos, o território no qual hoje é o Brasil. Seu crânio ficava guardado em uma caixa de ferro no laboratório de antropologia biológica do Museu, e foi encontrado fragmentado sob os escombros. Em cena, Luzia, interpretada por Ana Carbatti, se posiciona na linha da história e justifica por qual motivo será ela a narrar. Ela é, como diz, a mãe de toda plateia, de todos nós, “fósseis do futuro” — é a única testemunha ocular de tudo o que se passou.
 
Para ajudar a dar início à história, ela pede ajuda a um coro cujo último trabalho havia sido uma montagem de Édipo. Ele, então, apresenta o Museu trazendo a etimologia grega da palavra. Luzia logo pede desculpas ao público porque seus ajudantes são bastante burocráticos e formais. Ao dizer isso, ela se refere ao fato de o grupo, posto ao centro do palco, ter um texto com maior grau de formalidade de fato, falar e se movimentar de uma maneira mais engessada. Ao longo da cena, esta atuação gera um contraste com os movimentos da própria Luzia. Mesmo coberta de cinzas e com o figurino mais estruturado que os demais personagens, o que poderia influenciar em sua mobilidade, ela se mexe sem rigidez, tem a fala fluída e aparentemente espontânea.
 
O quadro que começa a ser montado por esses elementos, é, de alguma forma, o que também permite aquele efeito de contraposição da vida do Museu da Barca ao corpo inerte do Museu Nacional. Vemos, na atuação do coro, a casca de um gênero temporalmente deslocado, julgado sob uma perspectiva contemporânea, da narradora, que aponta para certa inadequação da rigidez corporal. Desse modo, à nossa história, o espetáculo soma elementos da história do próprio teatro, vista pela perspectiva do presente. Contudo, a consequência vai além desta adição. Este apontar de Luzia é ato de um outro corpo, este sim pleno de vida, mesmo que, a princípio, seja ruína. Este jogo nos mostra pela primeira vez o que se entende no espetáculo por vida plena: constante movimento, fluido e autônomo - autônomo porque é Luzia que coordena o coro, este só cumpre o que se espera e do modo como consegue.
 
Há ainda outros assuntos que sustentam a poética da ressurreição das vozes apresentada. Talvez o mais importante esteja no que percebo como a tese básica do espetáculo - básica porque permite, por exemplo, Luzia narrar. A proposição intelectual chega a nós a partir de uma canção combinada a um jogo de cena entre Alfredo Del-Penho e Luiza Loroza. Na coreografia, ele a acompanha ao violão enquanto ela canta. Mas ele passa a perseguir, de certo modo, a parceira pelo palco, até que tenta aprisioná-la em seus braços enquanto toca o instrumento. Ela, por sua vez, se esquiva constantemente. Na letra da canção, Luiza é definida como o objeto. Ao final da coreografia, o objeto cantante (que também é uma mulher negra) consegue finalmente sair do cerco e deixa claro que não se submete.
 
Quando voltamos nosso olhar para a tradição filosófica, não é difícil reconhecer nessa construção cênica um tema bastante comum a pensadores contemporâneos como, por exemplo, Adorno e Walter Benjamin: a crítica às categorias epistemológicas de sujeito e objeto, e às relações implicadas no modo tradicional de entender essas categorias. Para Benjamin, por exemplo, em uma pesquisa, a investigação que busca conhecer o objeto é feita por um sujeito que quer dominá-lo, que vai ao seu encontro munido de pressupostos metodológicos que irão determinar de antemão a relação que será estabelecida, de posse - pressupostos que acabam por violentar e reduzir o investigado ao que o sujeito deseja e consegue apreender na consciência. Ao contrário disso, em seu livro sobre o Drama Trágico Alemão, Benjamin defende que o pensamento deve sempre voltar à própria coisa, perceber o que esta traz em si de particular, acolher principalmente o que lhe parece estranho como algo que merece atenção e deve ser considerado, aceitar os desvios como parte do caminho de busca.
 
Luiza, objeto cantante, diz com todas as letras que não será o que o outro quer. Ao fazer isso, ela assume também a posição de sujeito e nos mostra o pressuposto que sustenta o título e todo espetáculo. Os objetos aqui são um pouco como os objetos benjaminianos: têm vida, têm história e têm voz; trazem dentro deles um passado, falam este passado, e guardam em si toda possibilidade de resistência e reconstrução da história. Se o Museu Nacional hoje, por enquanto, ainda só existe como memória, é na memória das vozes do fogo que ele se deixará ver, assim como se deixará ver um pouco da história de nosso país.


Naiara Barrozo é doutora em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pelo PPGL  UERJ (2021), mestra em Filosofia (Estética e Filosofia da Arte) pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFF (2014). É jornalista com bacharelado em Comunicação Social pela PUC-Rio, bacharel e licenciada em Filosofia pela UFF, e possui graduação em Letras-Português/ Literaturas pela UERJ.

 

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