Tamanho é documento

Por Guilherme Mazzafera


Ilustração: João Fazenda.


 
Há algo que se perde em qualquer tipo de padronização, mesmo as aparentemente necessárias e menos belicosas. Tomemos a escolha de uma fonte tipográfica para uma coleção de livros. O estilo de um autor por certo transcende a letra impressa no papel, mas ele igualmente se dá através dela. Cada autor, é certo, merece sua própria fonte — e o fascínio por manuscritos, quando ainda os havia, deve-se muito à desumanização da firma autoral pela planificação tipográfica dos séculos posteriores. Mais do que isso, não seria de todo descabido pensar que tal fonte poderia ser vendida junto com os direitos autorais de uma obra, que só poderia ser comercializada se respeitasse esta demanda — naturalmente, seria algo bastante trabalhoso adaptá-la para outros alfabetos e sistemas de escrita, mas ainda acho que o autor deveria ser capaz de escolher sua aparência textual nas mais diversas traduções. A fonte, como seria de esperar, deveria ser propriedade do autor, que pode mudar de casa editorial sem abrir mão dessa marca. Do mesmo modo, a sanha da padronização, que costuma preferir livros nivelados na estante, com lombadas partícipes de uma mesma paleta de cores, tende também a privar os diversos livros de um mesmo autor de qualquer fisionomia própria, respeitando apenas eventuais variâncias de circunferência abdominal.
 
Ora, se livros são como filhos, é justo esperar que tenham a mesma altura, ainda que gerados em circunstâncias completamente distintas? Angústia me parece um livro certamente mais corpulento e atarracado do que Vidas secas, de uma proverbial magreza alongada. Mas aqui estão os dois atrás de mim, em uma mesma fonte (tipologia Melior), o que me agrada, mas quase perfeitamente niveladinhos (há, no máximo, uma leve discrepância de meio centímetro, viridente signo da luta de Fabiano, Baleia e cia. por sua independência lombar) — e, pior, o azul outrora mais forte da lombada de Angústia mostra-se cada vez mais esmaecido, tendendo ao branco de Vidas secas. Contudo, a mancha de texto deste livro, que certamente grita mais em seus silêncios do que os momentos mais delirantes daquele, desnuda-se caprichosamente mais forte diante de meus olhos expectantes.
 
Persiste, porém, outra questão. Ambos foram impressos com o mesmo corpo de letra (10/15,5), o que é compreensível dentro de uma lógica de identidade editorial para a publicação da obra completa de um autor. Mas isso ainda acaba por ocultar certas nuances. Vidas secas exemplifica com primor a profissão de fé de Graciliano sobre a arte da escrita, em seu contencioso burilamento em prol do essencial (“a palavra foi feita para dizer”), por ele famosamente aproximado ao diligente ofício das lavadeiras de Alagoas, que torcem e retorcem a roupa até que não reste uma única gota. Embora se trate de uma preceptiva geral da escrita do autor, Angústia certamente ostenta certa camada gordurosa, certo excesso vocabular que me parece demandar uma fonte um pouco menor do que a urgência da linguagem em Vidas secas, que se beneficiaria, paradoxalmente, de uma letra materialmente mais robusta.
 
Tais tipos de equanimidade se mostram, no entanto, mais perniciosos quando se busca adotar uma única fonte para conferir identidade editorial a um grupo profusamente heterogêneo de vozes encapsuladas em livros de mesma altura. Além de notáveis romancistas dos séculos XX e XXI, o que de fato Milan Kundera, José Saramago, Salman Rushdie e Philip Roth têm em comum? Mas estão todos aqui, ao lado de Italo Calvino e Franz Kafka, em uma mesma prateleira, habitada exclusivamente por exemplares da Companhia de Bolso, todos em fonte Janson Text, ainda que com leves diferenças de corpo.
 
Compulsando esses volumes é possível notar que justamente aqueles dotados de parágrafos mais extensos, no caso, os romances de Saramago, são os que ostentam menor corpo de letra, possivelmente nada mais do que um sutil gesto econômico. Agora, tamanho de letra realmente faz diferença? Se dermos a palavra a outro destes autores, Milan Kundera, um dos mais notáveis leitores de Kafka, veremos que ao menos no caso dos romances deste último, parece que sim.
Diz Kundera que “Kafka insistia para que seus livros fossem impressos em letras muito grandes”, pedido motivado não por qualquer narcisismo, mas sim por sua estética, por “sua maneira de articular a prosa”:
 
“[...] o texto que se desenrola num parágrafo infinito é muito pouco legível. O olho não encontra lugares para parar, para descansar, as linhas ‘se perdem’ facilmente. [...] Olho O castelo na edição de bolso alemã: 39 linhas lamentavelmente apertadas numa pequena página de um ‘parágrafo infinito’: é ilegível — ou, por outra, é legível apenas como informação; ou como documento; de modo algum como um texto destinado a uma percepção estética.”¹
 
A edição da Companhia de Bolso de O castelo, de dimensões 18 x 12,4 x 1,6 cm, apresenta 36 linhas em uma página cheia (contra 31 linhas de uma edição regular da Companhia das Letras das Narrativas do espólio, de dimensões 20,8 x 13,8 x 1,2 cm, por exemplo), não sendo possivelmente tão apertada quanto a alemã, mas certamente deficitária quanto aos desejos do autor.
 
A questão, porém, não para por aí, pois Kundera também denuncia a tendência editorial de esquartejar os parágrafos infinitos de Kafka, que muitas vezes incluem longas passagens dialogadas:
“No manuscrito de Kafka, o terceiro capítulo [de O castelo] está dividido apenas em dois longos parágrafos. Na edição de [Max] Brod, existem cinco. Na tradução de [Alexandre] Vialatte, noventa. Na tradução de [Bernard] Lortholary, 95. Foi imposta na França aos romances de Kafka uma articulação que não é a deles: parágrafos muito mais numerosos e, portanto, muito mais curtos, que simulam uma organização mais lógica, mais racional do texto, que o dramatizam, separando nitidamente todas as respostas dos diálogos.”²
 
Confesso que não me lembrava com nitidez dos parágrafos infinitos e da aparente confusão dialógica dos romances de Kafka, mas julguei tratar-se de um lapso de memória, afinal, Kundera diz que “Em nenhuma tradução para outras línguas, que eu saiba, mudou-se a articulação original dos textos de Kafka”, diagnosticando o gesto dilacerador como uma moléstia francesa, disseminada sem qualquer justificativa evidente mesmo na prestigiosa edição da Pléiade. 
 
Depois de uma breve inspeção, sinto fazer-te saber, caríssimo Kundera, que de alguma forma tal moléstia cruzou o Atlântico e chegou até minha edição de bolso de O castelo, a mesma com 36 linhas por página, cujo terceiro capítulo, na tradução de Modesto Carone, comporta 98 parágrafos.
 
Após um suspiro, poderíamos considerar uma prática editorial para a coleção como um todo, mas aí nos lembramos de Saramago, outro praticante do parágrafo infinito entremeador de diálogos (influenciado por Kafka, quiçá?). Por que ninguém fatiou seus parágrafos nem recompôs seus diálogos? Para além da força do Nobel e do fato de o autor ter tido chance de acompanhar boa parte da publicação de suas obras no Brasil, a falta de necessidade de traduzir seus romances certamente deve ter sido determinante – e, mais do que isso, mesmo qualquer adaptação mínima foi vetada, mantendo-se inclusive a ortografia do português europeu por desejo expresso do autor. Kafka, é claro, jamais teve a mesma a sorte, não tendo nem mesmo publicado O castelo.
 
Seria necessário analisar outras traduções de Kafka feitas por Carone, cuja competência é inquestionável, a fim de verificar se tal rearticulação é de fato parte de um projeto tradutório ou se é antes uma decisão editorial — além, é claro, de compulsar eventuais outras traduções do romance em busca de possíveis tendências editoriais mais amplas. Este, contudo, não é o itinerário deste texto.
 
Interessa-me apenas salientar aquilo que Roger Chartier vem dizendo há décadas: a importância do respeito à materialidade dos textos. Não me oponho, a princípio, a projetos editoriais que acabem por alterar a anatomia de um texto — desde que isso esteja preliminarmente justificado e, mais importante, sinalizado em todas as edições. Poder-se-ia dizer que como Kafka não publicou O castelo, não seria possível afirmar que essa era de fato a articulação final por ele almejada. Penso, contudo, que seria mais proveitoso tratar tais obras inacabadas como achados arqueológicos, ou ainda como fósseis literários, quilópodes de membros variáveis que não demandam qualquer uniformização ou normalização — já bastam as infinitas e inevitáveis permutas tradutórias.
 
Sem meandrar minúcias, penso ser hora de interromper estas linhas, e para isso recorro uma vez mais a Kundera, que assinala o fato de que, junto da veneração absoluta por tudo que Kafka tocou, seus editores (e tradutores) demonstraram inequívoco desrespeito à sua vontade estética. Ao fim e ao cabo, talvez se possa dizer que tal cinca editorial reflete a falta de algo ainda mais elementar — o respeitoso e irrefragável óbolo dos mortos:
 
“Ah, é tão fácil desobedecer a um morto. Se, apesar disso, algumas vezes, nos submetemos à sua vontade, não é por medo, por obrigação, é porque o amamos e nos recusamos a acreditar que está morto. [...] No entanto, se é impossível para mim considerar morto o ser que amo, como irá se manifestar sua presença? Em sua vontade, que conheço e à qual continuarei fiel.”³
 
Amém.
 
Notas
 
1 As citações de Kundera foram tiradas do ensaio “Uma frase”, presente em Os testamentos traídos (Tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca e Maria Luiza Newlands Silveira, Companhia das Letras, 2017, pp. 125-6).
 
2 Ibidem, pp. 124-5.
 
3 Trecho tirado do ensaio “Nisso, meu caro, você não manda”, igualmente presente em Os testamentos traídos (pp. 289-91).
 

 

 

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