Breve consideração sobre a literatura intempestiva

Por Henrique Ruy S. Santos


Marques Rebelo. Foto: Décio Mendes, dezembro de 1964.



Bem-aventurados os escritores que alcançam, única e exclusivamente pelo valor de sua pena, o merecido reconhecimento e colhem em vida os louros que tão dignamente recompensam seus dons. Afinal, parece ser este o paraíso da meritocracia literária que uma pessoa afeiçoada às letras deve querer cultivar: escritores e escritoras com liberdade e condições para exercitar seu ofício e um público igualmente livre e bem-condicionado para julgar as obras.
 
Acontece que falar em “valor” de uma obra, pelo menos se se quiser falar a sério sobre o valor de uma obra, é tarefa que sempre implica um bocado de hesitações e reticências. No caldeirão da crítica artística, ou mesmo da simples prática opinativa sobre determinado autor, livro, filme etc., entram ingredientes contextuais que vão desde o lugar e o tempo da dita obra até a forma como se insere no escopo de uma determinada tradição ou, o que pode ser ainda mais decisivo, como se posiciona quanto a tópicos e pautas da moda e quanto às novas “subversões” do momento.
 
Entre os que ficam de fora das atenções, entre aqueles que não logram obter um pálido raio de luz de um holofote cada vez mais guiado por interesses mercadológicos, constrói-se um rol de autores “esquecidos”, “injustiçados” ou “marginais”, e com eles uma outra multidão de críticos e acadêmicos ávidos não mais pela simples novidade, mas pelo garimpo do mais novo esquecido, numa ânsia por ser aquele que “resgata” um autor que permaneceu obscuro por um suposto descuido ou mesmo desprezo de seus contemporâneos.
 
Em várias ocasiões, há muita pressa nesse tipo de trabalho, muita confusão entre o reconhecimento de um valor histórico e a construção crítica de um valor artístico. Mas há também muito acerto quando o “descobrimento” de um escritor esquecido, por exemplo, advém de uma reflexão madura e de pressupostos bem discutidos, o que, a depender de diferentes variáveis (como a relevância cultural e acadêmica de quem faz a descoberta), pode acarretar reconfigurações no que se entende como um cânone de obras e autores.
 
O caso do poeta Sousândrade é um dos mais significativos nesse aspecto. Tendo escrito sua obra no século XIX, durante a vigência dos traços e das modas românticas no país, sua poesia só foi resgatada na década de 1960 pelos líderes do movimento da Poesia Concreta. À luz do aparato analítico mobilizado pelos poetas concretos, pôde-se atestar toda a originalidade de uma poesia bastante deslocada das linhas de força da literatura da época em que foi escrita.
 
A obtusa criatividade formal do autor do Guesa se coadunou perfeitamente com a ânsia por renovação e pelo rompimento de estruturas tradicionais de que os concretistas padeciam. Não se pode negar que havia também, como lembrou Roberto Schwarz1, uma certa vontade de imbuir o movimento da poesia concreta de uma profundidade histórica de certo modo forjada, como se a vanguarda do grupo paulista fosse a culminância de desenvolvimentos poéticos que remontam até mesmo à Idade Média.
 
Algumas perguntas logo aparecem: por que essa valorização tardia? A poesia de Sousândrade sempre foi boa — e os seus contemporâneos e boa parte da crítica do século XX apenas não viam isso — ou ela só passou a ser boa e digna de consideração depois que Haroldo de Campos e companhia assim o disseram? E da feita que o disseram, será esse juízo para sempre tido como o mais preciso acerca da obra desse autor?
 
Quanto à última das perguntas, ajuda a responder o que mencionei apenas de passagem anteriormente. A durabilidade e a solidez de determinadas apreciações críticas dependem não só da qualidade da argumentação em si, mas também do grau de prestígio de que gozam os argumentadores na esfera social em que dialogam. E no caso de Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari, pioneiros da vanguarda concretista no Brasil e principais agentes do resgate de Sousândrade, é indiscutível a estima que seus nomes detinham e detêm no âmbito da produção e da crítica literária brasileiras. Não obstante se lhes oponham igualmente prestigiados opositores, é evidente uma certa canonização do grupo paulista dos poetas concretos, o que demonstra (diga-se de passagem), entre outras coisas, senão a morte, pelo menos a fraqueza do espírito de vanguarda que os caracterizava.
 
Ora, sendo tão patente a autoridade do grupo e sendo verdadeiramente rica a apreciação crítica a que se propuseram, é compreensível que seus juízos sejam duradouros e validados como fundamentais, mesmo quando confrontam figuras tão incontornáveis como Antonio Candido2 e Roberto Schwarz. O exemplo serve para mostrar que nada está dado de antemão e que a prática crítica é um caminhar mais ou menos incerto sobre balizas e pressupostos a cada passo reafirmados.
 
Como certa vez imaginou o crítico inglês Terry Eagleton, “é possível que, ocorrendo uma transformação bastante profunda em nossa história, possamos no futuro produzir uma sociedade incapaz de atribuir qualquer valor a Shakespeare” (Eagleton, 2006, p. 17). Por mais absurdo que soe esse exercício imaginativo, ele nos ajuda a introduzir uma saudável dose de relativismo em nossas concepções acerca da arte e do cânone. Afinal foi a sucessão de transformações pelas quais passou a sociedade durante o século XX, entre as quais se inclui fundamentalmente a sanha formalista e estruturalista pós-saussureana, que possibilitou a valorização tardia de uma figura como Sousândrade no Brasil.
 
Como o poeta maranhense do século XIX, há casos em que um autor escapa da zona orbital que demarca os traços peculiares de sua época, antecipando atitudes que só fariam sentido em anos ou décadas posteriores. Entretanto, até que se prove o caráter antecipatório da obra por uma atitude abertamente revisionista e crítica em relação ao passado, ela permanece como uma espécie de excrescência que não se encaixa nos esquemas definidos. Por mais “injusto” que isso possa ser a um autor ou a uma autora que gostaria de ter seu trabalho reconhecido em vida, há um certo consolo na autoidealização de se achar uma pessoa à frente do seu tempo, incompreensível à massa de leitores de hábitos engessados, obscuro e hermético para os acostumados ao filão de lugares-comuns que se produzem rotineiramente. Se o consolo é pouco, em um mundo que preza tão obsessivamente a originalidade, há destino pior. O destino daqueles que, não obstante tenham algo a dizer, são percebidos como meros continuadores de tendências gastas. Aqueles cuja força da obra não passa despercebida pelos radares culturais mais qualificados — porque verdadeiramente tem força a obra —, mas que simplesmente não parecem atender ao espírito da época a ponto de se tornarem os grandes destaques do tempo, os representantes do zeitgeist para a posteridade.
 
Aqui um dos exemplos brasileiros mais interessantes é Marques Rebelo e sua estreia em 1931, o livro de contos Oscarina. Longe de ser considerado um escritor ruim, o carioca foi alardeado como um grande prosador por figuras como Mário de Andrade, que via nele um grande continuador de um realismo carioca que remontava a Manuel Antônio de Almeida, manifestava-se em Machado de Assis e se sedimentava com Lima Barreto no século XX. Não há porque duvidar das boas intenções do modernista paulista, mas a verdade é que o elogio também já prenunciava um certo ostracismo a que seria relegada a figura de Marques Rebelo no rol dos grandes nomes de nossa literatura.
 
Como lembra Luís Bueno no seu hoje imprescindível livro Uma história do romance de 30, há uma “cristalizada postura de ver a literatura brasileira do século XX — quando não toda nossa tradição literária — a partir do movimento modernista” (2006, p. 43). Ou seja, tudo que não corresponda à visão que se tem da literatura brasileira do século XX como um desdobramento dos anseios modernistas propagados pela Semana de 1922 permanece escanteado como sobras insistentes de um período que, embora a ele se deva uma certa veneração, está irremediavelmente defasado.
 
E para confirmar a tese, basta lembrar, como faz Bueno em seu livro, que até o que vem antes da Semana e que não parece se encaixar adequadamente em nenhum dos esquemas concebidos é agrupado sob o rótulo do Pré-Modernismo, mostrando o caráter de paradigma do movimento, em torno do qual se organizam um antes e um depois. E assim vão no mesmo balaio figuras absolutamente díspares como Lima Barreto, Euclides da Cunha e Monteiro Lobato, jogados no saco dos prenunciadores das mudanças que viriam cerca de uma ou duas décadas depois.
 
Ora, nessa lógica, a década de 1930 ficou canonizada como a da segunda fase de nosso Modernismo, agora não mais heroico, destruidor e clown, mas mais comprometido com a denúncia das injustiças sociais. Além disso, dois outros traços se destacam como definidores da época para a posteridade: o deslocamento do foco de interesse de São Paulo para a literatura nordestina e a predominância do romance em detrimento da poesia. É a década em que se consolidam nomes como Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos, Jorge Amado e José Lins do Rego como verdadeiros baluartes da literatura brasileira. Por mais que tenha havido um esforço de revisão histórica (encabeçado por figuras como o próprio Luís Bueno, citado há pouco) no sentido de valorização de outros romancistas menos comentados e louvados da época, como Dyonélio Machado e Cyro dos Anjos, a imagem do todo daquele período que nos ficou legada ainda é a do triunfo do romance, o “romance de 30”.
 
Ora, lançado em pleno fervor inicial desse momento literário, que espaço haveria, nos esquemas de época traçados posteriormente, para um livro de contos que retomava a tradição da literatura urbana carioca do século XIX? O olhar sintetizador que lançamos sobre o passado, se, por um lado, é-nos imprescindível como forma de conhecimento, como forma de estabelecer padrões que tornam a realidade inteligível, é, por outro lado, pulverizador de especificidades. Com isso, a tendência é não só deixar de lado nomes como o de Marques Rebelo, mas também reduzir literaturas tão diferentes como a de Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos a um denominador comum, seja o do “romance social”, seja o do “romance da seca”. 

Assim, o epíteto de continuador com que frequentemente se agracia o nome de Rebelo o filia a uma tradição respeitada e reverenciada, mas que não deixa de remeter a um passado que muitos querem superado, como atitude fiadora de certas coerências históricas. E nesse processo, olvida-se a lição de Pierre Menard, do conhecido conto de Borges: inexiste a mera repetição, a transcrição perfeita. Como leitor de Manuel Antônio de Almeida, de Machado de Assis e de Lima Barreto em um Rio de Janeiro já todo outro na década de 1930 (e mudando cada vez mais rapidamente), Marques Rebelo é incapaz de ser-lhes fiel, incapaz de ser-lhes um mero repetidor. Sua escrita, em verdade, sopra novos ares, ares que não deixam mesmo de exalar as fragrâncias do Modernismo, mas cujas correntes não bafejam na direção das principais tendências da época. Para Sousândrade, o mal de quem escreve 50 anos antes; para o contista de Oscarina, o de quem escreve 50 anos depois.
 
A coisa não é mesmo tão simples, como se vê: escrever bem não basta (tempos sombrios em que se pode até prescindir disso), é preciso chegar na hora certa, atender a expectativas presentes e futuras. Nesse jogo de interesses, houve e há injustiças reais, pessoas cujas obras nem mesmo veem a luz do dia graças a interdições das mais diversas ordens, seja de gênero, de raça ou sexualidade. Mas há também acusações fáceis, vindas de quem está sempre disposto a apontar o anacrônico indicador à crítica do passado que supostamente não teve a argúcia de enxergar o que só anos à frente estaria patente. Os primeiros casos devem ser combatidos com afinco a fim de se promoverem espaços cada vez mais democráticos de produção e recepção. Para o resto, vale a máxima: “os livros são de quem os lê”.
 
Notas:
1 Trata-se da polêmica em torno do poema “Póstudo”, de Augusto de Campos, criticado por Roberto Schwarz no artigo “Marco histórico”. O crítico aproveita para reconhecer na atitude do poema um hábito arraigado entre os concretistas: “Outros, entre os quais me incluo, verão o poema como enésimo exemplo de um procedimento-chave dos concretistas, sempre empenhados em armar a história da literatura brasileira e ocidental de modo a culminar na obra deles mesmos, o que instala a confusão entre teoria e autopropaganda, além de ser uma bobagem provinciana” (Schwarz, 1987, p. 61).
 
2 Refiro-me, agora, à polêmica em torno da figura de Gregório de Matos, suscitada por Haroldo de Campos em O sequestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Matos, em oposição às teses de Candido em Formação da Literatura brasileira: momentos decisivos.


Referências
BUENO, Luís. Uma história do romance de 30. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Campinas: Editora da UNICAMP, 2006.
EAGLETON, Terry. Teoria literária: uma introdução. Tradução de Waltensir Dutra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2016.
SCHWARZ, Roberto. Marco histórico. In: SCHWARZ, Roberto. Que horas são?: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras. 1987, p. 57-67.
 

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