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Marques Rebelo. Foto: Décio Mendes, dezembro de 1964. |
Bem-aventurados os escritores que
alcançam, única e exclusivamente pelo valor de sua pena, o merecido
reconhecimento e colhem em vida os louros que tão dignamente recompensam seus
dons. Afinal, parece ser este o paraíso da meritocracia literária que uma pessoa
afeiçoada às letras deve querer cultivar: escritores e escritoras com liberdade
e condições para exercitar seu ofício e um público igualmente livre e
bem-condicionado para julgar as obras.
Acontece que falar em “valor” de
uma obra, pelo menos se se quiser falar a sério sobre o valor de uma obra, é
tarefa que sempre implica um bocado de hesitações e reticências. No caldeirão
da crítica artística, ou mesmo da simples prática opinativa sobre determinado
autor, livro, filme etc., entram ingredientes contextuais que vão desde o lugar
e o tempo da dita obra até a forma como se insere no escopo de uma determinada
tradição ou, o que pode ser ainda mais decisivo, como se posiciona quanto a
tópicos e pautas da moda e quanto às novas “subversões” do momento.
Entre os que ficam de fora das
atenções, entre aqueles que não logram obter um pálido raio de luz de um
holofote cada vez mais guiado por interesses mercadológicos, constrói-se um rol
de autores “esquecidos”, “injustiçados” ou “marginais”, e com eles uma outra
multidão de críticos e acadêmicos ávidos não mais pela simples novidade, mas
pelo garimpo do mais novo esquecido, numa ânsia por ser aquele que “resgata” um
autor que permaneceu obscuro por um suposto descuido ou mesmo desprezo de seus
contemporâneos.
Em várias ocasiões, há muita
pressa nesse tipo de trabalho, muita confusão entre o reconhecimento de um
valor histórico e a construção crítica de um valor artístico. Mas há também
muito acerto quando o “descobrimento” de um escritor esquecido, por exemplo,
advém de uma reflexão madura e de pressupostos bem discutidos, o que, a
depender de diferentes variáveis (como a relevância cultural e acadêmica de
quem faz a descoberta), pode acarretar reconfigurações no que se entende como
um cânone de obras e autores.
O caso do poeta Sousândrade é um
dos mais significativos nesse aspecto. Tendo escrito sua obra no século XIX,
durante a vigência dos traços e das modas românticas no país, sua poesia só foi
resgatada na década de 1960 pelos líderes do movimento da Poesia Concreta. À
luz do aparato analítico mobilizado pelos poetas concretos, pôde-se atestar
toda a originalidade de uma poesia bastante deslocada das linhas de força da
literatura da época em que foi escrita.
A obtusa criatividade formal do
autor do
Guesa se coadunou perfeitamente com a ânsia por renovação e
pelo rompimento de estruturas tradicionais de que os concretistas padeciam. Não
se pode negar que havia também, como lembrou Roberto Schwarz
1, uma
certa vontade de imbuir o movimento da poesia concreta de uma profundidade
histórica de certo modo forjada, como se a vanguarda do grupo paulista fosse a
culminância de desenvolvimentos poéticos que remontam até mesmo à Idade Média.
Algumas perguntas logo aparecem:
por que essa valorização tardia? A poesia de Sousândrade sempre foi boa — e os
seus contemporâneos e boa parte da crítica do século XX apenas não viam isso —
ou ela só passou a ser boa e digna de consideração depois que Haroldo de Campos
e companhia assim o disseram? E da feita que o disseram, será esse juízo para
sempre tido como o mais preciso acerca da obra desse autor?
Quanto à última das perguntas,
ajuda a responder o que mencionei apenas de passagem anteriormente. A
durabilidade e a solidez de determinadas apreciações críticas dependem não só
da qualidade da argumentação em si, mas também do grau de prestígio de que gozam
os argumentadores na esfera social em que dialogam. E no caso de Haroldo de
Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari, pioneiros da vanguarda concretista
no Brasil e principais agentes do resgate de Sousândrade, é indiscutível a
estima que seus nomes detinham e detêm no âmbito da produção e da crítica
literária brasileiras. Não obstante se lhes oponham igualmente prestigiados
opositores, é evidente uma certa canonização do grupo paulista dos poetas
concretos, o que demonstra (diga-se de passagem), entre outras coisas, senão a
morte, pelo menos a fraqueza do espírito de vanguarda que os caracterizava.
Ora, sendo tão patente a
autoridade do grupo e sendo verdadeiramente rica a apreciação crítica a que se
propuseram, é compreensível que seus juízos sejam duradouros e validados como
fundamentais, mesmo quando confrontam figuras tão incontornáveis como Antonio Candido
2
e Roberto Schwarz. O exemplo serve para mostrar que nada está dado de antemão e
que a prática crítica é um caminhar mais ou menos incerto sobre balizas e
pressupostos a cada passo reafirmados.
Como certa vez imaginou o crítico
inglês Terry Eagleton, “é possível que, ocorrendo uma transformação bastante
profunda em nossa história, possamos no futuro produzir uma sociedade incapaz
de atribuir qualquer valor a Shakespeare” (Eagleton, 2006, p. 17). Por mais
absurdo que soe esse exercício imaginativo, ele nos ajuda a introduzir uma
saudável dose de relativismo em nossas concepções acerca da arte e do cânone.
Afinal foi a sucessão de transformações pelas quais passou a sociedade durante
o século XX, entre as quais se inclui fundamentalmente a sanha formalista e
estruturalista pós-saussureana, que possibilitou a valorização tardia de uma
figura como Sousândrade no Brasil.
Como o poeta maranhense do século
XIX, há casos em que um autor escapa da zona orbital que demarca os traços
peculiares de sua época, antecipando atitudes que só fariam sentido em anos ou
décadas posteriores. Entretanto, até que se prove o caráter antecipatório da
obra por uma atitude abertamente revisionista e crítica em relação ao passado,
ela permanece como uma espécie de excrescência que não se encaixa nos esquemas
definidos. Por mais “injusto” que isso possa ser a um autor ou a uma autora que
gostaria de ter seu trabalho reconhecido em vida, há um certo consolo na
autoidealização de se achar uma pessoa à frente do seu tempo, incompreensível à
massa de leitores de hábitos engessados, obscuro e hermético para os
acostumados ao filão de lugares-comuns que se produzem rotineiramente. Se o
consolo é pouco, em um mundo que preza tão obsessivamente a originalidade, há
destino pior. O destino daqueles que, não obstante tenham algo a dizer, são
percebidos como meros continuadores de tendências gastas. Aqueles cuja força da
obra não passa despercebida pelos radares culturais mais qualificados — porque
verdadeiramente tem força a obra —, mas que simplesmente não parecem atender ao
espírito da época a ponto de se tornarem os grandes destaques do tempo, os
representantes do
zeitgeist para a posteridade.
Aqui um dos exemplos brasileiros
mais interessantes é Marques Rebelo e sua estreia em 1931, o livro de contos
Oscarina.
Longe de ser considerado um escritor ruim, o carioca foi alardeado como um
grande prosador por figuras como Mário de Andrade, que via nele um grande
continuador de um realismo carioca que remontava a Manuel Antônio de Almeida,
manifestava-se em Machado de Assis e se sedimentava com Lima Barreto no século
XX. Não há porque duvidar das boas intenções do modernista paulista, mas a
verdade é que o elogio também já prenunciava um certo ostracismo a que seria
relegada a figura de Marques Rebelo no rol dos grandes nomes de nossa
literatura.
Como lembra Luís Bueno no seu hoje
imprescindível livro
Uma história do romance de 30, há uma “cristalizada
postura de ver a literatura brasileira do século XX — quando não toda nossa
tradição literária — a partir do movimento modernista” (2006, p. 43). Ou seja,
tudo que não corresponda à visão que se tem da literatura brasileira do século
XX como um desdobramento dos anseios modernistas propagados pela Semana de 1922
permanece escanteado como sobras insistentes de um período que, embora a ele se
deva uma certa veneração, está irremediavelmente defasado.
E para confirmar a tese, basta
lembrar, como faz Bueno em seu livro, que até o que vem antes da Semana e que
não parece se encaixar adequadamente em nenhum dos esquemas concebidos é
agrupado sob o rótulo do Pré-Modernismo, mostrando o caráter de paradigma do
movimento, em torno do qual se organizam um antes e um depois. E assim vão no
mesmo balaio figuras absolutamente díspares como Lima Barreto, Euclides da
Cunha e Monteiro Lobato, jogados no saco dos prenunciadores das mudanças que
viriam cerca de uma ou duas décadas depois.
Ora, nessa lógica, a década de
1930 ficou canonizada como a da segunda fase de nosso Modernismo, agora não
mais heroico, destruidor e
clown, mas mais comprometido com a denúncia
das injustiças sociais. Além disso, dois outros traços se destacam como
definidores da época para a posteridade: o deslocamento do foco de interesse de
São Paulo para a literatura nordestina e a predominância do romance em
detrimento da poesia. É a década em que se consolidam nomes como Rachel de
Queiroz, Graciliano Ramos, Jorge Amado e José Lins do Rego como verdadeiros
baluartes da literatura brasileira. Por mais que tenha havido um esforço de
revisão histórica (encabeçado por figuras como o próprio Luís Bueno, citado há
pouco) no sentido de valorização de outros romancistas menos comentados e
louvados da época, como Dyonélio Machado e Cyro dos Anjos, a imagem do todo
daquele período que nos ficou legada ainda é a do triunfo do romance, o
“romance de 30”.
Ora, lançado em pleno fervor
inicial desse momento literário, que espaço haveria, nos esquemas de época
traçados posteriormente, para um livro de contos que retomava a tradição da
literatura urbana carioca do século XIX? O olhar sintetizador que lançamos
sobre o passado, se, por um lado, é-nos imprescindível como forma de
conhecimento, como forma de estabelecer padrões que tornam a realidade
inteligível, é, por outro lado, pulverizador de especificidades. Com isso, a
tendência é não só deixar de lado nomes como o de Marques Rebelo, mas também
reduzir literaturas tão diferentes como a de Rachel de Queiroz e Graciliano
Ramos a um denominador comum, seja o do “romance social”, seja o do “romance da
seca”.
Assim, o epíteto de continuador com que frequentemente se agracia o nome
de Rebelo o filia a uma tradição respeitada e reverenciada, mas que não deixa
de remeter a um passado que muitos querem superado, como atitude fiadora de
certas coerências históricas. E nesse processo, olvida-se a lição de Pierre
Menard, do conhecido conto de Borges: inexiste a mera repetição, a transcrição
perfeita. Como leitor de Manuel Antônio de Almeida, de Machado de Assis e de
Lima Barreto em um Rio de Janeiro já todo outro na década de 1930 (e mudando
cada vez mais rapidamente), Marques Rebelo é incapaz de ser-lhes fiel, incapaz
de ser-lhes um mero repetidor. Sua escrita, em verdade, sopra novos ares, ares
que não deixam mesmo de exalar as fragrâncias do Modernismo, mas cujas
correntes não bafejam na direção das principais tendências da época. Para
Sousândrade, o mal de quem escreve 50 anos antes; para o contista de Oscarina,
o de quem escreve 50 anos depois.
A coisa não é mesmo tão simples,
como se vê: escrever bem não basta (tempos sombrios em que se pode até
prescindir disso), é preciso chegar na hora certa, atender a expectativas
presentes e futuras. Nesse jogo de interesses, houve e há injustiças reais, pessoas
cujas obras nem mesmo veem a luz do dia graças a interdições das mais diversas
ordens, seja de gênero, de raça ou sexualidade. Mas há também acusações fáceis,
vindas de quem está sempre disposto a apontar o anacrônico indicador à crítica
do passado que supostamente não teve a argúcia de enxergar o que só anos à
frente estaria patente. Os primeiros casos devem ser combatidos com afinco a
fim de se promoverem espaços cada vez mais democráticos de produção e recepção.
Para o resto, vale a máxima: “os livros são de quem os lê”.
Notas:
1 Trata-se da polêmica em torno do
poema “Póstudo”, de Augusto de Campos, criticado por Roberto Schwarz no artigo
“Marco histórico”. O crítico aproveita para reconhecer na atitude do poema um
hábito arraigado entre os concretistas: “Outros, entre os quais me incluo,
verão o poema como enésimo exemplo de um procedimento-chave dos concretistas,
sempre empenhados em armar a história da literatura brasileira e ocidental de
modo a culminar na obra deles mesmos, o que instala a confusão entre teoria e
autopropaganda, além de ser uma bobagem provinciana” (Schwarz, 1987, p. 61).
2 Refiro-me, agora, à polêmica em
torno da figura de Gregório de Matos, suscitada por Haroldo de Campos em O
sequestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de
Matos, em oposição às teses de Candido em Formação da Literatura
brasileira: momentos decisivos.
Referências
BUENO, Luís. Uma história do
romance de 30. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Campinas:
Editora da UNICAMP, 2006.
EAGLETON, Terry. Teoria
literária: uma introdução. Tradução de Waltensir Dutra. 6. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2016.
SCHWARZ, Roberto. Marco histórico.
In: SCHWARZ, Roberto. Que horas são?: ensaios. São Paulo: Companhia das
Letras. 1987, p. 57-67.
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