A ficus e a ficção especulativa de “Floresta é o nome do mundo”

Por Afonso Junior

Mas, naquele tempo, enquanto esteve intacta, tinha montanhas altas e encristadas de terra, e, quanto às planícies a que agora chamamos solo rochoso, tinha-as cheias de terra fértil. Tinha também numerosas florestas nas montanhas, de que ainda hoje há evidências manifestas, pois é nestas montanhas que atualmente existe o único alimento para as abelhas, e não há muito tempo que se cortava árvores nesse local para construir os tetos das grandes edificações — coberturas essas que ainda estão conservadas...


Ursula K. Le Guin. Foto: Benjamin Reed



No seu diálogo Crítias (111c), Platão já relata um tempo passado (uma Era de Ouro) em que as florestas da Ática viviam livres. Esses dias, um condomínio cortou uma árvore de 70 anos, cuja copa (sem manutenção da prefeitura) atravessava a rua até o prédio da frente, porque todos pagaram indenização depois que uma pessoa foi atingida pela queda de um galho. Eu, no começo, acreditei que a ficus elástica era uma ameaça ao mundo civilizado, fake news de Instagram. Logo, para mim, ficou muito claro que, se dá trabalho, os humanos vão preferir as soluções mais rápidas e baratas. O tronco gigantesco cortado pela base é uma vergonha exposta testemunhando nossa desumanização. Nosso desafio é enfrentar o caos do carbono sem governos que achem que investir é gasto inútil. 

No seu livro de 1972, Floresta é o nome do mundo (Morro Branco, 2020), Ursula K. Le Guin, escritora estadunidense, nos leva ao planeta Athshe, uma colônia de extração de madeira que está bastante longe da Terra para que se permita uma exploração extrema dos humanos “creechie” e a “derrubada do mundo”. “Matamos, estupramos, dispersamos e escravizamos humanos nativos, destruímos suas comunidades e derrubamos suas florestas”. Claro que isso tudo se completa com Noivas Coloniais e Recreadoras, “212 cabeças da melhor linhagem humana”. 

Em seu Questões incendiárias: ensaios e outros escritos, Margaret Atwood fala sobre como Le Guin, universitária em Harvard, tinha de passar, como todas as mulheres, pelo salão de jantar no qual os alunos homens jogariam pãezinhos nas alunas que levantassem a cabeça. Também que dentro do próprio movimento pelos direitos civis circulava um comentário: “A única posição para uma mulher no Movimento é deitada”. Com isso, ela criou o que Atwood chama de uma obra multifacetada, guiada pela “busca obstinada por justiça”, muita sabedoria e um “otimismo fundamental”. 

Indignada com a Guerra do Vietnã, armada e perigosa para o pensamento patriarcal colonial. Há mais de 50 anos, Le Guin nos mandou sua mensagem do futuro. Como armas, ela usou muita literatura, a antropologia, a psicologia junguiana e o taoísmo. De certa forma, soube falar daquilo que interessa em um formato que queremos descobrir. Com o capitão Don Davidson, o escravizado Selver (“filho do incêndio da floresta”) e o antropólogo Raj Lyubov, estamos vendo a crueza da nossa própria era de tecnologia e atraso espiritual. O que é “ser humano” é uma questão aqui (e nas calçadas de nossas cidades) — o que é ser vivo é uma questão nossa. Esse romance ganhou o Prêmio Hugo em 1973.



A jornalista Naomi Klein nos lembra que a extrema-direita acredita muito no fim do mundo — só sobreviverão os eleitos, é preciso estar preparado para tomar os poucos recursos que sobrarão depois da catástrofe. O extermínio e a “agressão sistemática contra nativos” criados por Le Guin dialogam com o despopular da faixa de Gaza que ocorre em frente aos nossos olhos. Capitão Davidson pensa que Lyubov é inferior. Lembrando demais o antissemitismo de um Richard Wagner, que tornou belo afirmar o racismo e abriu caminho ao demônio que retomou essas ideias escrevendo sobre o que via como “raças destruidoras de cultura”, os judeus, ciganos e negros. Server contará: “Ele a chutou para o lado como se fosse uma cobra morta”. 

Mas o mais interessante é avaliar como as lógicas de normalização explicam e acomodam tudo isso a uma mensagem palatável: “afinal, desmatar uma floresta não é criar um deserto”, dirá sr. Gosse, o “ambientalista” do Mundo 41. O grupo de escravizados será chamado de Corpo de Trabalho Autóctone Voluntário. Klein fala de “cidades-startup”, o sonho de grandes empresários de utopias privadas após a expulsão dos pobres.
 
Quando os machos “traders” parecem prestes a dominar corações e mentes com tecnologias “sociais”, porque internet é dinheiro, a domesticação da natureza parece refletir a domesticação do ser humano. O bando capaz de destruir os Três Poderes precisa apenas de um pouco de ficção especulativa para tornar-se algum estado do sul criando uma guerra de secessão para o retorno de escravidão, o que poderia tornar Le Guin jornalismo. 

Mas nunca subestimemos o sonhar... Selver diz: “Se esperarmos, seremos nós a virar fumaça e queimar. Eles querem pisar em nós como pisamos nas formigas que picam”. Le Guin nos oferece homens cobertos de pelos verdes, fumaça escura e uma Frota Terrana para nos lembrar da esperança. 

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Floresta é o nome do mundo
Ursula K. Le Guin
Heci Regina Candiani (Trad.)
Morro Branco, 2020
160p.


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