Palavras cansadas da gramática, de Yao Feng (Parte I)


Por Pedro Belo Clara



É natural que o nome do autor hoje apresentado desperte a curiosidade do nosso fiel leitor, quem sabe se um estado de espírito deveras intrigado. Afinal, a nomenclatura remete-nos para o universo oriental. E não seria este espaço um lugar de debate sobre autores portugueses e suas obras? Ou, em última instância, doutros que, de algum modo, se relacionam visceralmente com o país em causa?

Na verdade, é a segunda pergunta, retoricamente colocada, que vem justificar a abordagem desta obra e do respectivo autor.

Yao Feng, pseudónimo de Yao Jingming, nasceu em Pequim, China, no ano de 1958. Actualmente, lecciona na Universidade de Macau, Departamento de Português, sendo daí desde já óbvias as ligações a Portugal (recordamos que a dita região chinesa esteve sob administração portuguesa por mais de quatrocentos anos). Mas não se limitarão as concordâncias a tão pouco.

Sendo tradutor e autor de diversos projectos poéticos e cronistas, é no exercício desta actividade criativa que ambos os universos se interligam. Pois, com oito obras de poesia editadas, dentre elas poderemos encontrar algumas escritas exclusivamente em português. E o livro que trazemos à discussão é, em parte, mais uma obra que ao rol adicionaremos com a devida segurança.

Convém por isso sublinhar o importante papel do autor como ponte entre os dois velhos extremos: ocidente e oriente. A respectiva aproximação é até interessante de se verificar, de modo mais efectivo e palpável, na poesia que produz. Fortalecendo essa mesma ideia, advém ainda o facto de ter assumido a coordenação da revista Poesia Sino-Ocidental

A extrema dedicação levada a cabo pelo autor encontrou em 2006 um novo patamar de gratidão junto da facção competente: o outorgamento da medalha da Ordem Militar de Santiago de Espada, por parte do Estado português. Em todo o caso, Yao Feng é um homem de total entrega às artes. E o presente trabalho vem de diversas maneiras confirmar tal premissa.

Se falámos anteriormente em “artes” e em “confirmações de intenção” por parte da obra em causa, será admissível prever que mais de um veio de expressão artística nela se reúne. De facto, o livro combina de modo bastante aprazível a palavra e a imagem. Tanto os poemas como as fotografias que amiúde os acompanham, sem se despojarem, como convém nestes casos, de uma certa medida poética, são da autoria de Yao Feng.

O livro está repartido em três secções distintas, com certas disparidades ao nível da estética e da temática, mas de modo geral é possível extrair diversos pontos em comum, moldando o universo de Feng à sua forma mais sumária.




A obra ergue-se a partir de inúmeras subtilezas, todas elas fruto de uma sensível captação, seja meramente sensorial ou reflexo de um momento mais introspectivo. Contudo, ainda que se mostre capaz de em palavras imortalizar a singular beleza de um efémero momento, a poesia presente nesta obra não se abstém de assumir um cariz realista mais abrangente. Ou seja: esqueçamos a metáfora modelada para perfumar o corpo do texto ou o retrato minucioso de instantes passíveis de admiração. Existe uma veia mais autêntica neste livro, capaz de revelar, tal como se apresenta, a decadência e a ruína do Homem e do mundo que o ampara – uma degradação comportamental e física.

Na primeira parte do livro, que recebe o nome de Meu sonho tem a altura da noite, tal como um dos poemas que contém (completado apenas pelo trecho “e o peso da solidão”), a exposição anterior ainda não se verifica no seu total esplendor. Isto é, a sua existência é visível, mas de modo ainda diluído se comparada com as etapas vindouras. Antes, é neste capítulo que os poemas produzidos mais se aproximam das tradições orientais. Pela sua clareza, carácter conciso e beleza peculiarmente retratada, evocam-se aqui os traços naturais do haiku, ainda que a estética apresentada se afaste em muitas ocasiões daquela que os assiste.

Logo numa primeira impressão, compreendem-se e de muito bom grado se aceitam as palavras de Fernando Pinto do Amaral, que assina o prefácio da obra. Sobre a poesia de Feng, escreve: “(...) iluminadas revelações ou epifanias (…) transformam alguns poemas em experiências únicas (…) em que o pensamento (…) atinge fulgurantes momentos de insight». Antes de se referir à mesma como sendo a «poesia que mais me interessa ler nos dias de hoje”.

O poema que abre o volume dá o mote do modo mais justo possível:

pela janela vê-se desfolhar
outubro

num ramo ainda como flor
o cantar de um pássaro

Reparemos desde já, além da evocação do espírito de Bashô, querendo implodir à medida que o olhar percorre as linhas impressas, como os versos se expurgam de pontuação, como o começo do poema dispensa a maiúscula da praxe, como a epígrafe se omite, como a palavra invoca a imagem, como o estilo de escrita se assume fluido e liberto de restrições formais.

É, pois, importante recordar o título deste trabalho e transpô-lo para a realidade do livro. Nele, pela irregularidade constante, as palavras só poderão se encontrar, efectivamente, “cansadas da gramática”. Note-se, contudo, o modo cuidadoso como o autor tece estes trabalhos, opção essa que desde já louvamos. Ao contrário de muitos outros autores que igualmente se decidem pela supressão pontual, Feng reparte harmoniosamente os versos pelas estrofes que compõem cada poema, evitando assim equívocos de maior ou somente a habitual confusão que no leitor se gera ao ler um trabalho desprovido de pontuação. Assim, a dita exclusão não parece ter a sua génese numa qualquer revolta que se deseja veemente, sendo antes um gentil modo de expressão – leve, limpo e livre. 

Nuno Júdice, em análise à poesia do autor em causa, concluiu: “a imagem cristaliza na palavra”. Tal evidência é sobejamente conseguida e trabalhada em níveis de excelência por parte de Feng, fazendo dela a principal valência, quer-nos parecer, da produção poética que assina. Contudo, apesar das semelhanças, em essência, com o mais fino exemplar da poesia oriental, sabemos que os poemas de Feng também se preenchem de contemporaneidade. Eis um exemplo, onde o autor parece nos transportar para o universo das eternas noites de Macau, no seio daquela existência contínua de afagos comprados, jogos de azar e bebidas em quadruplo consumidas:

a noite tão iluminada
deixou de ser o endereço da noite

escrevo-te um verso de amor
num dado, à mesa do casino

A ligação com a natureza e seus elementos, apesar de existir, não se mantém de modo constante, como agora se constata, ela que é apanágio, como sabido, das formas poéticas antes referidas. Marca-se assim o afastamento do poema relativamente à sua muito provável base de inspiração.

Mas ainda subsiste espaço para a reflexão, ironia e até uma certa crítica religiosa proposta de modo bastante jovial e subtil. Todos os aspectos expostos compõem o retrato pleno daquilo que Feng nos oferece. Vejamos:

tanto usei o rosto
que agora já não me ama

cinquenta e seis anos depois
o rosto tornado máscara


ao sábado, a igreja cheia
Deus tão sozinho no céu
precisa de companhia terrestre


ele morreu no vigésimo quinto andar
ainda assim tem de ser metido na terra
para subir ao paraíso

Paisagem ao longe, epígrafe do segundo volume do livro, a dissecar na segunda metade deste artigo, vem fomentar uma breve revolução no que tinha sido exposto e lido, embora a fidelidade aos trâmites gerais segundo os quais Feng labora seja garantida. Em suma, apenas a extensão dos poemas se verifica, bem como a inclusão de títulos e uma maior abundância de sinais gramaticais. Não que a mesma, a gramática, aqui se subverta por alguma obscura razão e regularize, de forma a reclamar a sua justa presença. Nada disso. Apenas se torna mais frequente. Sem, contudo, lesar de modo estrondoso o carácter visualmente (e geralmente) leve da poesia proposta. Em todo o caso, o silêncio reinante nas anteriores exposições mingua-se significativamente, sendo amiúde substituído, mesmo que nem disso tenha tido o autor intenção, por um melancólico aroma capaz de permear as palavras, delas se exalando, depois, como perfume de flor selvagem.

Quanto queria eu que esta areia a brilhar
não escapasse tão fugazmente,
roubando-me as mãos
roubando-me o corpo

(excerto de Grãos de areia)

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