Visões de Joseph Conrad

Por Antonio Muñoz Molina



Quanto mais o tempo passa, mais contemporâneo nosso é Joseph Conrad. Vivemos num mundo de identidades culturais tão heterogêneas que o último escritor que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura é um japonês que escreve em inglês e é autor de um dos romances mais densos e premeditadamente ingleses que alguém poderia escrever – Os vestígios do dia. Mas, essa tradição de entrecruzamento a que pertence Kazuo Ishiguro quem a iniciou foi Joseph Conrad, o primeiro romancista transnacional de que temos notícia: nascido na Ucrânia, filho de pais poloneses, educado em alemão, francês e russo – só começou a mergulhar na língua inglesa a partir dos 20 anos, quando se alistou como marinheiro num batalhão britânico. Um dos filmes mais universais das últimas décadas, Apocalipse Now, procede de O coração das trevas. O romance de Conrad é tão poderoso que se deixa adaptar sem perder nada de sua atmosfera nem de seu sentido desde o rio Congo nos primeiros anos da colonização belga ao rio Mekong dos finais da guerra do Vietnã. Francis Ford Coppola acrescentou a Conrad o barulho dos helicópteros militares, as alucinações do ácido, uma canção apocalíptica de Jim Morrison: mas quando se lê em silêncio as páginas do romance, a sensação de fúria e desastre é a mesma. A incandescência da imigração é provocada exclusivamente pelas palavras.

Conrad é nosso contemporâneo apesar dos anátemas ideológicos que caíram sobre ele nesta época de simplificações virtuosas em que a leitura dos romances do passado se exerce muitas vezes, sobretudo nas universidades, com um propósito exclusivo de delação política, com um êxtase retrospectivo de reprovações. Joseph Conrad era um homem branco que ganhou a vida na marinha mercante ao longo das rotas comerciais e militares do colonialismo europeu. Sua lucidez intelectual, sua disposição compassiva, a amplitude de sua experiência, o fizeram compreender os sem sentidos de determinadas atitudes infelizmente classificadas como humanas e o horror da exploração colonial exercida com todo descaramento em nome do progresso e da missão civilizadora da Europa. Mesmo assim, era, então, um homem de seu tempo, igual a nós no nosso. Nos anos setenta, um romancista nigeriano, Chinua Achebe, escreveu um ensaio célebre dizendo, entre outras coisas, que O coração das trevas era “um livro ofensivo e totalmente deplorável”, cheio de “estereótipos degradantes sobre a África e os africanos”, e Joseph Conrad um completo racista. Até a pessoa mais admirável que viveu noutra época pode ser acusada de partilhar alguns dos erros comuns entre seus contemporâneos; ao invés de celebrar e agradecer se rebelar com valentia e solidão contra os demais – ainda assim nos legará um exemplo de inteireza moral que nos chama atenção. É preciso ver que, além de tudo, Joseph Conrad se atreveu a escrever em finais do século XIX que a celebrada tarefa civilizadora das potências europeias consistia sobretudo em escravizar e dilapidar a cultura das pessoas de pele mais escura e de nariz mais achatado.

Um grande romance é mais que uma crônica ou que um manifesto político. A imaginação generosa de Conrad continha uma riqueza de experiências com que talvez nenhum outro romancista poderia competir. Até os 40 anos se estabeleceu numa casa de campo inglesa e se dedicou a escrever com uma regularidade quase administrativa. Mas o que havia vivido até então deu-lhe subsídios para várias biografias, todas elas aventureiras e peregrinas. Maya Jasanoff, professora de História em Havard, especialista nas conexões entre os fatos históricos e as criações literárias, acaba de publicar um estudo em que ressalta a contemporaneidade permanente de Conrad nas vidas diversas que conheceu e nos tempos excepcionais em que alcançou vivê-las. Seu livro, intitulado The Dawn Watch: Joseph Conrad in a Global World, é um catálogo de situações e problemas diversos que o escritor conheceu em primeira mão e são em grande parte fases iniciais do que só agora vivemos: a globalização da economia, o terrorismo ampliado pela universalidade das comunicações, as rupturas em cadeia que provocam nas formas de viver e de trabalhar as modificações tecnológicas.

Conrad viu como em poucos anos as tradições centenárias da navegação à vela, nas quais ele próprio havia se formado, eram varridas pela rapidez e a eficácia dos novos barcos à vapor. Os combustíveis fósseis substituiriam o vento e ao mesmo tempo as rotas comerciais se expandiam até abarcar o mundo inteiro. Agora, tal como antes, explica Jasanoff, a imensa maior parte do transporte de mercadorias se faz por embarcações e pelas mesmas rotas nas quais navegava Conrad. Conexões inusitadas alteravam o mundo. A inovação tecnológica das bicicletas nos finais do século XIX provocava mudanças fulminantes na maneira de viver e de vestir e novas demandas econômicas que teriam consequências nos lugares aparentemente mais isolados do mundo: para que pudesse se fabricar a borracha dos pneus que circulariam por Londres ou Paris, centenas de milhares de trabalhadores viviam e morriam em condições de escravidão nas selvas da Ásia e da América Latina onde crescia a árvore da borracha.

Por trás dos hinos e dos discursos sobre o progresso, Conrad havia visto a capacidade genocida dos colonizadores belgas enviados ao Congo pelo Rei Leopoldo II, que soube construir à base de dinheiro e propaganda um prestígio internacional de filantropo. Por trás dos ideais de pureza ideológica e utopia social podia-se ouvir um instinto de pura destruição. Em O agente secreto, Joseph Conrad conta o complô de um grupo que quer voar com explosivos o observatório de Greenwich, com um ânimo de vingança e proselitismo não muito diferente do que um século mais tarde impulsionaria os islâmicos que atentaram em Nova York contra as Torres Gêmeas. Conrad dizia que sua aspiração havia sido sempre “uma narrativa meticulosa da verdade dos pensamentos e dos fatos”. É essa verdade o que nos estremece quando num romance seu alcançamos a consciência de um terrorista, ou a de um fugitivo tomado pela vingança, ou a de um traficante de marfim ou de seres humanos, ou ainda a de um veterano do mar que deixou de navegar há muitos anos e agora converte cada laboriosamente em palavras escritas na composição de um arquivo sem fundo da sua memória.

* Este texto é uma tradução de "Visiones de Joseph Conrad", publicado no jornal El País.


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